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A deturpação na aplicação da Lei de Arbitragem no Brasil

O instituto da arbitragem constituiu-se como instrumento legítimo e alternativo a jurisdição e tem como objetivo solucionar conflitos que versem sobre bens patrimoniais disponíveis .

1/2/2005

A deturpação na aplicação da Lei de Arbitragem no Brasil


Inez Balbino*

O instituto da arbitragem constituiu-se como instrumento legítimo e alternativo a jurisdição e tem como objetivo solucionar conflitos que versem sobre bens patrimoniais disponíveis1. No Brasil, sua regularização é feita através da Lei nº 9.307/962, que dentre outras coisas, traz no seu bojo a previsão do tão amplamente discutido “Tribunal Arbitral”3, que é o foco principal deste artigo. Portanto, se faz necessário discorrer sobre a arbitragem, propriamente dita e sua história, antes de adentrar no assunto específico que nos propomos.

É com muita satisfação que acompanhamos a evolução deste instituto, que se tornou matéria obrigatória em um grande número de universidades de direito no mundo. Nestes 8 anos de vigência da Lei em nosso país, a evolução não poderia ser diferente, pois a cada ano que passa maior é a divulgação e a utilização da arbitragem, não somente nas grandes metrópoles mas também nas pequenas cidades do interior.

Com a ratificação pelo Brasil da Convenção de Nova Iorque de 19584, que trata do reconhecimento e execução de sentenças arbitrais estrangeiras, surge um novo impulso na arbitragem, fato que, por muitos anos, foi um enorme entrave ao sucesso do instituto, pois dificultava o cumprimento das sentenças arbitrais, uma vez que gerava insegurança, por parte dos usuários, quanto a sua eficácia e execução.

Independentemente da utilização especifica da denominação “arbitragem”, desde os tempos mais remotos, esse método é considerado um dos métodos, mais eficazes, de solução de conflito. E importante ressaltar que “no começo, a arbitragem era exercida pelos sacerdotes, pois acreditava que estes tinham ligação com os deuses (...). E em segundo momento, a arbitragem foi exercida pelos anciãos que. Por serem as pessoas mais antigas da comunidade, possuíam o respeito desta, que os considerava dotados da sabedoria dos ancestrais, e conhecedores de todos os costumes”.5

Baseado em diversos escritos de séculos passados, desde os mais remotos relatos bíblicos, coletados e transcritos com muita propriedade pelos professores, Jacob Dolinger e Carmen Tiburcio, no livro de arbitragem internacional6, percebemos a constante influência de terceiros na solução dos litígios:

“Não sou eu logo o que te faço injúria a ti, mas tu és o que ma fazes a mim, declarando-me uma guerra injusta. O Senhor, que é árbitro, decida hoje isto entre Israel e os filhos de Amon.”7

Ainda, exemplificando:

“Questões econômicas se decidem por três. Cada parte escolhe um julgador e ambas as partes escolhem um terceiro, esta a opinião de Rabbi Meir. Os sábios (chachamim) sustentam que os dois julgadores escolhem mais um julgador.”8

Nos tempos atuais, a arbitragem ocupa um nobre espaço em âmbito nacional, por estar auxiliando o judiciário de uma forma célere, sigilosa e com custos compatíveis a proporção de trabalho que é gerado em seus casos. A arbitragem tem notável destaque em países como a França, vide o sucesso desde 1923 da International Chamber of Commerce – ICC9; a Inglaterra - através da London Court of International Arbitration10 que foi fundada em 1985 e nos Estados Unidos uma das mais utilizadas é American Arbitration Association – AAA, que está a mais de 75 anos no mercado americano.11

No cenário brasileiro, apesar de ainda não existirem câmaras com a vasta experiência das acima mencionadas, elas estão surgindo, se fixando e se multiplicando por o todo país. Com isso, estamos consolidando uma nova cultura jurídica, que veio somente para beneficiar a todos, através da aplicação deste instituto, na solução de conflitos.

O campo da arbitragem, ainda é desconhecido de diversos advogados e empresários no Brasil mas, em muito pouco tempo, será o meio mais utilizado de solução alternativa de litígios, fora da esfera do judiciário, tendo em vista a sua eficácia, celeridade e baixo custo.

A arbitragem, difere enormemente dos outros métodos alternativos de solução de controvérsias, pois as partes obtêm a solução de seu conflito, através de uma sentença imposta pelo árbitro e na conciliação e mediação as pendências existentes entre as partes não são resolvidas somente por terceiros, mas pela vontade comum dos litigantes, com a ajuda de um facilitador.

Chamamos a atenção para o ordenamento jurídico nacional, que em diversas épocas, contemplou a arbitragem:

Constituição Imperial do Brasil de 182412:

“Art. 160 – Nas cíveis e nas penas civilmente intentadas poderão as partes nomear juízes árbitros. Suas sentenças serão executadas sem recurso, se assim o convencionarem as mesmas partes.”

Tratava da arbitragem obrigatória, o Código Comercial de 1850 e o Regulamento 737, sendo portanto, imposta a arbitragem como meio de solução de determinados litígios e independentemente da vontade das partes. Com o advento da Lei nº 1.350 de 1866, essa disposição deixou de existir. O juízo arbitral foi previsto em 1867, através do Decreto nº 3.900 que disciplinou também a cláusula compromissória, que somente veio ser regulada em 1916 pelo Código Civil.

Com a promulgação, em 23 de setembro de 1996, da Lei nº 9.307, conhecida também como Lei Marco Maciel, ficaram equiparados, tanto no plano interno como no internacional, a cláusula compromissória e o compromisso arbitral.

A Lei Marco Maciel, introduziu importantes modificações no âmbito arbitral, dentre elas, a possibilidade de execução específica da cláusula compromissória e a equiparação do laudo arbitral a uma sentença judicial, dispensando, portanto, a homologação pela autoridade judiciária.

A esse propósito, na seção plenária, do Supremo Tribunal Federal de 3.5.2001, que apreciou o Agravo Regimental na Sentença Estrangeira nº 5.206-7 – Reino de Espanha, transcrevemos o voto do Ministro Marco Aurélio de Mello:

“É desejável que se tenha o entendimento que pode estar voltado à submissão de conflitos de interesses não ao Judiciário, mas à arbitragem, mesmo que esta não esteja profundamente arraigada na cultura brasileira, em face de uma desconfiança maior. O brasileiro reclama do Judiciário - isto é, aqueles que não apostam na morosidade do Judiciário, porque há os que nesta se fiam -, mas praticamente só acredita nessa forma de solução. A Lei nº 9.307/96, um diploma moderno, a abranger dispositivos que acautelam certos direitos das partes, viabiliza - e isso interessa muito àqueles que investem, principalmente os estrangeiros, em espaço de tempo razoável, curto - o afastamento de situações ambíguas do cenário jurídico. Alguém está obrigado a simplesmente adotar, sempre e sempre, a arbitragem? Não.”

Com o intuito de divulgação e propagação da cultura arbitral, o Centro de Mediação do Conselho de Câmaras do Comércio do Mercosul, com sede no Brasil na Confederação Nacional do Comércio – RJ, promoveu nos últimos três anos, palestras mensais, proferidas pelos mais ilustres experts no assunto. Com isso, tivemos o privilégio de estabelecer um constante intercâmbio de informações sobre o crescimento e desenvolvimento da arbitragem em nosso país.

Apesar de o instituto da arbitragem ter criado corpo e força no Brasil, é preocupante a forma como vem sendo aplicado, possibilitando deturpação e até mesmo, desvio da finalidade.

Por participar como membro da Subcomissão de Investigação de Denúncias contra Entidades Arbitrais da Comissão de Arbitragem da OAB/RJ14 e do Conselho de Ética do Comitê Brasileiro de Arbitragem15, recebemos constantemente denúncias de pessoas lesadas e profissionais revoltados com a forma deturpada que vem sendo empregada a Lei 9.307/96 por muitos cidadãos, que muitas vezes interpretam equivocadamente o nome Tribunal Arbitral, para confundir o leigo, com a justiça comum.

A Subcomissão de Investigação, por sua vez, tem promovido representações junto ao Ministério Público, contra esses Tribunais que agem em descaso com a lei e podemos assegurar, que muitos deles já foram autuados e devidamente fechados.

Vejamos o que reza o art. 19 da Lei 9.307/96:

“Art. 19. Considera-se instituída a arbitragem quando aceita a nomeação pelo árbitro, se for único, ou por todos, se forem vários.

Parágrafo único. Instituída a arbitragem e entendendo o árbitro ou o tribunal arbitral que há necessidade de explicitar alguma questão disposta na convenção de arbitragem, será elaborado, juntamente com as partes, um adendo, firmado por todos, que passará a fazer parte integrante da convenção de arbitragem”.

Este artigo fixa a competência e previsão do Tribunal Arbitral que, como já mencionado, é um colegiado de árbitros. Infelizmente, o texto do artigo, deixa margem para as mais diversas interpretações. Com isso, vem sendo disseminadas as instituições fraudulentas que se autodenominam - “Tribunais Arbitrais”, “Supremo Tribunal Arbitral do Estado...”, “Superior Tribunal Arbitral”, “Sindicatos Nacional dos Juízes Arbitrais do Brasil”, “Associação Brasileira dos Juízes Arbitrais”-, procurando equivalência aos órgãos do poder público municipal, estadual e federal.

Afora isso, existe um intenso marketing veiculado em anúncios nos jornais de grande circulação do país, que oferecem ao leigo e ao desinformado, oportunidades “magníficas” de ascensão profissional, ludibriando-os a acreditar que possam ser autoridade com “carteira de Juiz Arbitral” que inclusive garante o “porte de arma” e salários ilusórios. Com isso, diversas pessoas vem sendo diariamente enganadas pelos anúncios maliciosos que somente visam o lucro comercial. Tudo isso é deplorável pois além de envergonhar os profissionais que acreditam e utilizam a arbitragem, enfraquece sua credibilidade acarretando muitos problemas para os que trabalham de uma forma correta, íntegra e constante para difundir uma cultura moderna de solução de conflitos fora da visão clássica do judiciário.

Vejamos materialmente o seguinte caso concreto:

O Ministério Público Federal abriu inquérito civil público para investigar, nos municípios de Resende, Itatiaia, Porto Real e Quatis, no Estado do Rio de Janeiro, possíveis violações dos direitos dos consumidores, através de Tribunais Arbitrais em conluio com estabelecimentos comerciais, no sentido de compulsoriamente condicionar a concessão de créditos à celebração de cláusula compromissória.

O Procurador da República no município de Resende acolhendo a ação do Ministério Público, Diário da Justiça, seção I, nº 204 em 22/10/2004, fls. 762, diz mais: “que os funcionários do Tribunal Arbitral de Resende usam uniforme com o brasão da República”. Ora, a Constituição Federal de 1988, no seu art. 13, parágrafo 1º veda o ato e a Lei 5.700 de 01/09/1971, classifica-o de doloso, passível de séria sanção por induzir o consumidor a erro.

E, para ironizar, na fachada do Tribunal de Justiça Arbitral em causa, localizado ao lado do Forum da Justiça Federal, encontra-se a seguinte chamada:

“Justiça Arbitral: A única justiça na qual você escolhe o Juiz”.

Infelizmente, pelo que podemos constatar, não somente no caso deste despacho que foi proferido pelo Exmo. Procurador da República, notamos que ainda existe carência de informação sobre o que é a arbitragem e como aplicá-la devidamente.

No website do Conselho Nacional das Instituições de Mediação e Arbitragem - CONIMA16 pode ser encontrado um manifesto público, que denota a preocupação da instituição com relação aos ilícitos “tribunais arbitrais” que estão atuando em todo Brasil.

A título de sugestão:

1. Não utilize as denominações abaixo para entidade administradora da arbitragem: Tribunal Arbitral, Suprema Corte Arbitral, Superior Tribunal Arbitral, ou qualquer outra denominação que leve o leigo associar a Câmara ou Centro de Arbitragem a denominação do poder público;

2. Não utilize os símbolos ou insígnias oficiais da República Federativa do Brasil.

É imperioso combater as irregularidades para evitar que o instituto caia em descrédito, uma vez que só traz benesses para a sociedade e desafogamento do judiciário. Sejamos analíticos, cautelosos e meticulosos, quando escolhermos a instituição que irá administrar a arbitragem, observando com muita cautela o regulamento e regimento interno da Câmara de Arbitragem.

A título de informação, a partir deste ano, será encontrada, no site da OAB/RJ, a relação das Câmaras Arbitrais do Estado do Rio de Janeiro/RJ.

Estamos certos de que, a exemplo do que já foi alcançado em outros países, o sucesso da arbitragem, como método eficaz de solução de conflitos, entre nós, é irreversível. O caminho é longo e árduo, porém conta com laboriosos profissionais engajados no processo de consolidação do instituto que, além de promover uma forma atual de solucionar os conflitos, traz no seu âmago benefícios incontáveis a comunidade.
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1São considerados como direitos patrimoniais disponíveis todos aqueles que, por serem suscetíveis de valoração econômica, integram o patrimônio das pessoas e que possam ser objeto de transação, renúncia, ou cessão.

2Lei nº 9.307, de 23 de setembro de 1996 (https://www.planalto.gov.br/ccivil_03/Leis/L9307.htm).

3Tribunal Arbitral é um colegiado de árbitros durante o curso de uma arbitragem que automaticamente se dissolve quando proferida a sentença arbitral.

4Decreto nº 4.311 de 23 de julho de 2002.

5MORGADO, Isabele Jacob. A Arbitragem nos conflitos do trabalho São Paulo: LTr, 1998, p.26.

6DOLINGER, Jacob TIBURCIO, Carmen. Direito Internacional Privado. Arbitragem Comercial Internacional. Rio de Janeiro. Editora Renovar, 2003

7idem nota 7 – página 12

8idem nota 7 – página 12

9International Chamber of Commerce - webpage: https://www.iccwbo.org/home/menu_international_arbitration.asp

10London Court of International Arbitration - webpage https://www.lcia-arbitration.com/

11American Arbitration Association – AAA - webpage https://www.adr.org/

12Idem nota 6, página 12.

13Confederação Nacional do Comércio - https://www.cnc.com.br/

14Ordem dos Advogados do Brasil /RJ - https://www3.oab-rj.org.br/institucional/comissao/comissao.php#

15Comitê Brasileiro de Arbitragem – https://www.cbar.org.br

16Conselho Nacional das Instituições de Mediação e Arbitragem – webpage https://www.conima.org.br/
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*Advogada da Confederação Nacional do Comércio. MBA em Direito Empresarial pelo IBMEC-RJ. Especialização em Arbitragem, Mediação e Negociação pela FGV/RJ. Membro titular do Comitê dos Métodos Alternativos de Solução de Controvérsias do Conselho de Câmaras do Comércio do Mercosul. Mediadora capacitada pela Federal Mediation and Conciliation Service – USA. Professora da disciplina Mediação, Arbitragem e Negociação do curso de Pós Graduação de Negociação Internacional da Universidade Cândido Mendes. Membro da Comissão de Arbitragem da OAB/RJ. Membro da Subcomissão de Investigação de Denúncias contra Entidades Arbitrais da Comissão de Arbitragem da OAB/RJ. Membro do Florida Bar – sessão internacional - USA. Membro do Comitê Brasileiro de Arbitragem – CBAr. Membro designado para Comissão de Ética do Comitê Brasileiro de Arbitragem.






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