A Rosa Púrpura
Edson Vidigal*
Essa tendência a sonhar, a se agarrar nas esperanças, a não fazer nada e ficar só na crença das promessas, é engenharia do cérebro, na defensiva.
O sonho muitas vezes se expande em constâncias renitentes ao ponto de quase suplantar as esperanças. É quando o desespero desponta apressado em silêncios sufocantes, sem chance de trégua à meditação.
O processo civilizatório em todos os seus estágios dependeu, e muito, dos pensadores. O que teria sido do mundo, desde as cavernas, se uns poucos não tirassem um tempo para observar as coisas calmamente, pensando ?
Há que se estar muito esperto sempre que a vista alcança a linha demarcatória imaginária entre a realidade e a fantasia. A realidade não engana, pode ser incômoda, mas não engana.
A tendência a fantasiar as coisas, a ultrapassar a fronteira que separa o verdadeiro do imaginário, é um sintoma forte do alheamento que acomete aos que acostumados a receber tudo na boquinha não conseguem ir à luta.
Não sei se alguém de vocês viu um filme do Wood Allen chamado a Rosa Púrpura do Cairo. Se já viu, vale a pena ver de novo.
O enredo do filme diz muito sobre o que se passa com algumas figuras da nossa contemporaneidade, embora nem tanto assim com o charme mal ensaiado e o discurso canastrão.
O cenário da historia de Allen tem como pano de fundo a grande depressão norte-americana, quando milhões de pessoas perderam o emprego e muitos, anestesiados pela pobreza, foram se ancorar alguns na bebida, outros nas ilusões.
Uma dessas pessoas atiradas à vala comum da grande depressão é Cecília, a heroína representada por Mia Farrow, uma garçonete, cujo marido desempregado, vivia bêbado e lhe batendo.
Solitária e cansada, em dúvidas sobre o rumo da sua vida, ela refugia-se num cinema onde se dana a assistir sempre a um mesmo filme, A Rosa Púrpura do Cairo, que na sua leitura tem tudo a ver com as suas válvulas de escape.
A cada vez que vê o filme mais ela sonha com aquele mundo alegre e de gente tão feliz ali pertinho dela, na tela. Numa tarde, Cecília se vê sozinha no cinema, vendo o filme pela quinta vez, quando de repente o mocinho do filme sai da cena, rasgando a tela, e começa a falar com ela.
Rompe-se ali, naquele instante, a linha divisória entre a fantasia e a realidade. E as duas passam a conviver. A Cecília de verdade se apaixona pelo príncipe encantado de mentira, o mocinho do filme, e os dois apaixonados, um pelo outro, saem do cinema e ganham a cidade vivenciando o seu amor.
O mocinho quer se mostrar o bom e, pródigo, começa a comprar coisas para ela pagando tudo com o dinheiro da produção do filme, que é falso.
O filme fica parado e os produtores saem atrás do mocinho e o encontram metido em grandes encrencas. É o inevitável conflito entre o mundo da ficção e o mundo da realidade.
Tudo o que se faz na ficção tem uma lógica e um sentido. O que se faz ou se deixa de fazer na realidade tem outra lógica e outro sentido.
Não é possível misturar personagem midiática com pessoa real e querer que os dois convivam na vida real e ainda querendo que o Povo acredite que fantasia e realidade é a mesma coisa.
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*Ex-Presidente do STJ e Professor de Direito na UFMA
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