Defensoria Pública Municipal. É possível?
Luiz Felipe Hadlich Miguel*
O texto constitucional, dando cumprimento à diretriz estabelecida logo no seu Título II, tratou de atribuir a uma instituição do Estado tal obrigação. Assim, "a Defensoria Pública é instituição essencial à função jurisdicional do Estado, incumbindo-lhe a orientação jurídica e defesa, em todos os graus, dos necessitados" (art. 134, caput).
A necessidade de auxílio jurídico aos necessitados não é algo inerente à realidade brasileira contemporânea. Desde a antiguidade já se percebe a preocupação dos povos em manter certa isonomia de atuação em juízo entre as partes em litígio, sob pena de impossibilitar o real conhecimento das razões afeitas à causa, e transformar o ideal de justiça em utopia.
Na linha do acima exposto, Humberto Peña de Moraes e José Fontenelle T. da Silva1 observam: almejada desde as épocas pré-cristãs do Estado, são fartos os vestígios da preocupação pelos carentes, já em legislação como o Código de Hamurabi, nas normas vigorantes em Atenas e em Roma. É atribuída a Constantino (288-337) a primeira iniciativa de ordem legal, ao depois incorporada na legislação de Justiniano (483-565). Consistia em dar advogado a quem não possuísse meios de fortuna para constituir patrono.
No Brasil, como observa Celso Ribeiro Bastos2, o primeiro diploma a registrar a preocupação com a representação dos menos abastados foi as Ordenações Filipinas (que vigorou até 1916): em sendo o aggravante tão pobre que jure não ter bens móveis, nem de raiz, nem por onde pague o aggravo, e dizendo na audiência uma vez o Pater Noster pela alma del Rey Don Diniz, ser-lhe-á havido, como que pagasse os novecentos réis, contanto que tire de tudo certidão dentro no tempo, em que havia de pagar o aggravo.
Com o passar do tempo a desigualdade foi aumentando, e hoje é primordial à administração da justiça a existência de órgãos que representem os menos abastados, nos termos da lei. Antes, porém, de analisar a possibilidade da criação de Defensorias Públicas pelos Municípios, cabe uma rápida diferenciação entre os institutos da assistência judiciária e da justiça gratuita (lei 1.060/50 (clique aqui), que disciplina a assistência judiciária, acabou por gerar certa confusão entre os conceitos). Para tanto, as lições de Pontes de Miranda3 são conclusivas:
Assistência Judiciária e benefício da justiça gratuita não são a mesma coisa. O benefício da justiça gratuita é direito à dispensa provisória de despesas, exercível em relação jurídica processual, perante o juiz que promete a prestação jurisdicional. É instituto de direito pré-processual. A Assistência Judiciária é organização estatal, ou paraestatal, que tem por fim, ao lado da dispensa provisória das despesas, a indicação de advogado. É instituto de direito administrativo. (sem ênfase no original)
Estamos aqui a tratar da Assistência Judiciária, instituto de Direito Administrativo, pois implica na criação de órgãos do Estado, para que seja efetivamente disponibilizada àqueles que comprovem a ausência ou insuficiência de recursos para custear eventual representação privada.
A própria Carta da República, em seu art. 24, inciso XIII, outorgou competência à União, aos Estados e ao Distrito Federal, para, concorrentemente, legislarem sobre assistência jurídica e defensoria pública. Os Municípios, portanto, não tem esta competência.
Contudo, apesar de instituídas e estruturadas, é cediço que as Defensorias Públicas da União e de alguns Estados (em sua grande maioria) não conseguem atender todas as pessoas que as procuram, cidadãos detentores do referido direito à assistência judiciária. Ou então alguns municípios longínquos, onde a Defensoria do Estado ainda não alcança, quem irá socorrer os necessitados?
Surge assim um paradigma, que nos foi posto à análise: poderia um Município instituir e estruturar uma denominada "Defensoria Pública Municipal", com o intuito de suprir a deficiência dos órgãos dos Estados e da União? Em se tratando de direito fundamental, o Município, como ente da Federação, não estaria obrigado a dar cumprimento ao mando constitucional, mesmo não tendo competência legislativa para tanto? A efetivação dos direitos fundamentais, seja lá por qual esfera do poder, não suplanta a alegação de usurpação de competências dos Estados pelos Municípios que se propõe a direcionar parte de seus recursos a dar cumprimento àquilo que as Defensorias Estaduais não conseguem?
A questão é tormentosa e qualquer posição que se defenda é polêmica. Temos por certo que os Defensores Públicos (da União ou dos Estados) tendem a afirmar que as "Defensorias Municipais" não podem existir porque o Município, em legislando sobre a matéria, estará usurpando a competência legislativa de outros entes da federação. Alguns argumentarão que aspectos orçamentários inviabilizariam sua gestão. Por fim, seriam invocadas inconstitucionalidades, formais e materiais, todas no sentido de mostrá-las inviáveis no contexto da ordem jurídico/constitucional atual.
Alguns Municípios se aventuraram na tentativa de constituir órgão cuja atribuição seria a de oferecer assistência jurídica aos desafortunados. À título de exemplo, no Estado de São Paulo algumas cidades tentaram instaurar defensorias municipais (é o caso de Santos, Ilha Comprida e Marília). A Associação Paulista de Defensores Públicos entende ser "cabalmente inconstitucional e, portanto, inefetiva" tal iniciativa, apesar de reconhecê-la como nobre.
A efetividade guarda relação lógica direta com a eficiência, alçada à princípio constitucional por força da EC 19 (clique aqui). Não vemos como conseqüência de suposta inconstitucionalidade a ineficiência de uma medida. Eventualmente uma Defensoria Pública Municipal pode ser eficiente, efetiva e eficaz, até o instante em que um Tribunal declare a iniciativa inconstitucional. Portanto, o argumento dado pela Associação acima citada, para nós, é desprovido de conteúdo jurídico. E a questão continua: eventual usurpação de competência se sobrepõe ao dever do Estado de oferecer aos necessitados assistência judiciária, especialmente em localidades onde os órgãos afeitos a tal prestação são incapazes de se fazerem presentes e/ou suportarem o volume de pessoas que os procuram?
Assim, parece-nos que a solução está na própria constituição. Para nós, os argumentos de inconstitucionalidade (especialmente a questão da usurpação de competência estadual), mesmo quando analisados frente a eventuais situações de total desamparo do cidadão necessitado, hão de prosperar. Não se integra a ordem com infrações à própria ordem!
Portanto, temos por impossível a instauração de Defensorias Públicas Municipais, em respeito à distribuição de competências legislativas dadas pela Constituição Federal. Percebe-se que os Municípios não são dotados de Poder Judiciário Municipal, nem de Órgão Ministerial (Ministério Público Municipal?!), e mesmo em Municípios que não são comarcas, não se fez possível a atribuição desta atividade à esfera Municipal.
Os esforços dos municípios devem ser no sentido de que os Estados capacitem suas Defensorias, aparelhem e estruturem-nas, tornando-as capazes de atenderem a todos os necessitados, independentemente donde se encontram. Cremos ser possível, no caso de inexistência de estrutura do órgão para atendimento, que o cidadão lesado recorra ao judiciário pleiteando atendimento, o que nos levaria à situação tautológica, pois se o cidadão já carece da assistência de defensor, também carecerá para pleiteá-la em juízo.
Enfim, os chefes dos executivos Municipais, não obstante estarem imbuídos de nobre e louvável espírito público ao vislumbrarem a criação de Defensorias Públicas Municipais, incorrerão em grave afronta à ordem constitucional. Não cabe aos Municípios a prestação deste tipo de atividade, devendo nós, cidadãos brasileiros, empenhar esforços no sentido de dar condições às Defensorias Públicas da União, dos Estados e do Distrito Federal, de dar efetividade aos direitos elencados em nossa Carta Magna.
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1 MORAES, Humberto Peña de; SILVA, José Fontenelle T. da. Assistência judiciária: sua gênese, sua história e a função protetiva do Estado. 2. ed. Rio de Janeiro: Liber Juris, 1984, p. 201.
2 BASTOS, Celso Ribeiro. Curso de direito constitucional. 20. ed. São Paulo: Saraiva, 1999, p. 423.
3 MIRANDA, Francisco Cavalcanti Pontes de. Comentários ao código de processo civil. T. 1. Rio de Janeiro: Forense, 1978, p. 460.
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*Professor dos Cursos de Extensão em Direito da Universidade São Judas Tadeu. Professor da Escola Preparatória de Direito – EPIUS. Sócio do escritório Advocacia Luiz Felipe e Carvalho Filho
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