Alienação fiduciária
Mateus Cassoli*
Em 2007, a lei 11.481 (clique aqui), desdobrou o antigo parágrafo único do citado Art. 22, deixando bem claro, no §1º, que a alienação fiduciária pode ser utilizada por qualquer pessoa física ou jurídica:
"A alienação fiduciária poderá ser contratada por pessoa física ou jurídica, não sendo privativa das entidades que operam no SFI (...)".
Outrossim, o art. 38 da lei 9.514/97 dispõe: "Os atos e contratos referidos nesta Lei ou resultantes da sua aplicação, mesmo aqueles que visem à constituição, transferência, modificação ou renúncia de direitos reais sobre imóveis, poderão ser celebrados por escritura pública ou por instrumento particular com efeitos de escritura pública."
Logo, muito embora a alienação fiduciária tenha sido introduzida em nosso ordenamento jurídico pela lei que dispõe sobre o Sistema Financiamento Imobiliário, seu alcance foi substancialmente ampliado, de maneira que ela se transformou em uma nova modalidade de garantia real, que paulatinamente deverá tomar o lugar das hipotecas. Neste sentido, também é a lição do Prof. Sílvio de Salva Venosa1. Vejamos:
"No tocante à alienação fiduciária, ao contrário de outras modalidades do sistema, o legislador expressamente possibilitou qualquer pessoa física ou jurídica contratá-la, não sendo privativa das entidades que operam o Sistema Financeiro Imobiliário. Desse modo, constrói-se mais um mecanismo jurídico fomentador da alienação fiduciária de imóveis, com estrutura simplificada cuja tendência será substituir em muitas oportunidades a hipoteca e compromisso de compra e venda. Dúvida era saber se essa modalidade de negócio pode garantir qualquer negócio jurídico, uma vez que a lei não faz restrição. Em princípio, embora o instituto tenha sido criado com a finalidade de aquisição de imóveis, nada impedirá que a garantia fiduciária seja utilizada para outros negócios paralelos, pois não existe proibição na lei."
No mesmo sentido temos ainda a opinião de Sergio Eduardo Martinez2:
"Segundo as regras da lei 9.514/97, o devedor fiduciante é o contratante que aliena a coisa imóvel com a finalidade de garantir uma obrigação principal. O credor fiduciário, por sua vez, é o sujeito que, por força do pacto, adquire a propriedade enquanto subsistir a obrigação que lhe é acessória.§ A alienação fiduciária de bem imóvel não é exclusiva de operações realizadas no âmbito do SFI, podendo ser livremente utilizada por pessoas físicas ou jurídicas ainda que tal prática não esteja no seu objeto social. (...) § Não é, portanto, privilégio de bancos ou instituições financeiras utilizarem-se da propriedade fiduciária imobiliária como forma de garantia de empréstimos financeiros."
O Ilmo Registrador Mário Pazutti Mezzari3, uma das maiores autoridades em direito registral imobiliário pátrio, ilustra a utilização da alienação fiduciária em duas situações:
Situação típica:
• "A", proprietário pleno do imóvel, vende-o para "B";
• parte ou todo o pagamento será feito a prazo;
• "C", um terceiro, pessoa física ou jurídica, empresta dinheiro para "B" pagar a "A";
• "B", proprietário pleno pela aquisição feita naquele momento, aliena fiduciariamente o imóvel para o credor "C", em garantia da dívida.
Situação atípica:
• "A", devedor por qualquer título (contrato imobiliário ou não);
• "B", credor;
• "A" aliena fiduciariamente seu imóvel para "B", como garantia do mútuo.
O mencionado especialista em direito registral ainda admite a possibilidade da figura do interveniente fiduciante, dando como exemplo a seguinte situação:
Situação atípica:
• "A", devedor por qualquer título (contrato imobiliário ou não);
• "B", credor;
• "C", proprietário do imóvel e interveniente fiduciante;
• "C", aliena seu imóvel fiduciariamente em garantia da dívida de "A", em favor de "B".
Portanto, se o contrato cumprir com os todos requisitos legais dispostos no art. 24 da lei 9.514/97, qualquer transação econômica poderá ser garantida pela alienação fiduciária e não somente o financiamento para aquisição de imóvel.
O TJ/SP4, em recente decisão relatada pelo Des. Pedro Baccarat, firmou seu posicionamento neste sentido:
"A lei não exige que o contrato de alienação fiduciária de imóvel se vincule ao financiamento do próprio imóvel. Neste sentido: "Presumivelmente, a aplicação da propriedade fiduciária de bens imóveis em garantia há de se fazer com mais freqüência no mercado de produção e de comercialização de imóveis com pagamento parcelado, dado que é ai que se verifica a concessão de crédito imobiliário em maior escala. Isso não obstante, a lei que regulamenta essa garantia não tem sentido restritivo, permitindo, ao contrário, que a propriedade fiduciária de bem imóvel seja constituída para garantia de quaisquer obrigações, pouco importando o fato de ter sido regulamentada no contexto de uma lei na qual prepondera a regulamentação de operações típicas dos mercados imobiliário, financiamento e de capitais. São nesse sentido as disposições do §1º do art. 22 da lei 9.514/97, pelo qual a alienação fiduciária pode ser contratada por qualquer pessoa, física ou jurídica, não sendo privativa das entidades que operam no sistema de financiamento imobiliário, e o art. 51 da lei 10.931/2004 (clique aqui), que permite a constituição de propriedade-fiduciária para garantia de quaisquer obrigações, em geral (Merhim Namem Chalhub, Negócio Fiduciário, Renovar, 4ª Ed., fls. 221)"" (grifos nossos)
Na ação principal desse agravo de instrumento, os devedores pedem a anulação de contrato de alienação fiduciária de bem imóvel, dada em garantia ao pagamento de notas promissórias. As partes do contrato são pessoas físicas e a obrigação garantida é um mutuo representado por notas promissórias. O TJ/SP aceitou a legalidade da utilização da alienação fiduciária neste negócio jurídico.
Como decorrência lógica, qualquer credor poderia, portanto, utilizar-se da alienação fiduciária para, por exemplo, garantir uma confissão de dívida ou mesmo um crédito rotativo a ser concedido a seu cliente, podendo o imóvel ser do próprio devedor ou de terceiro.
Quanto à forma do contrato, o art. 38 da lei 9.514/97 estabelece que o negócio jurídico poder ser celebrado por instrumento público ou particular com efeitos de escritura pública.
Tal contrato deve ser levado a registro junto ao competente Registro de Imóveis, para que a propriedade fiduciária seja constituída (art. 23 da lei 9.514/97). Com a constituição da propriedade fiduciária, dá-se o desdobramento da posse, tornando-se o fiduciante possuidor direto e o fiduciário possuidor indireto da coisa imóvel.
Em breve síntese, inadimplida a obrigação contratual garantida pela propriedade fiduciária, o credor tem o direito de promover a execução extrajudicial do contrato, cujo procedimento é todo realizado perante o Cartório de Registro de Imóveis onde foi registrada a propriedade fiduciária. O procedimento consiste em:
(i) O Cartório de Registro de Imóveis, a pedido do credor, intimará o devedor a satisfazer, no prazo de 15 dias, a parcela vencida e as que se vencerem até a data do pagamento, acrescidas dos encargos contratados;
(ii) Purgada a mora no Cartório de Registro de Imóveis, o contrato continuará em vigor, sendo a quantia entregue ao credor pelo Oficial do Registro de Imóveis;
(iii) Do contrário, se o devedor não efetuar o pagamento, o Oficial certificará o ocorrido na matrícula do imóvel, consolidando a propriedade fiduciária em nome do credor, que deverá pagar o imposto de transmissão inter vivos (ITBI) para tanto;
(iv) Após a consolidação da propriedade em seu nome, o credor deverá realizar a oferta pública do imóvel em duas oportunidades consecutivas;
(v) O primeiro leilão deverá ser realizado trinta dias após a consolidação da propriedade, cujo valor mínimo para venda será o estipulado previamente pelas partes no contrato;
(vi) Não havendo licitantes para o primeiro leilão, nos quinze dias subseqüentes será realizado o segundo leilão. Nesta oportunidade, será aceito o maior lance oferecido, desde que igual ou superior ao valor da dívida, acrescida de todas as despesas;
(vii) Não havendo licitantes também para o segundo leilão, estará plenamente consolidada a propriedade em nome do credor fiduciário. Nesta hipótese, considerar-se-á extinta a dívida e exonerado o credor de entregar qualquer quantia em favor do devedor. No entanto, deverá o credor, nos cinco dias subseqüentes, a contar do leilão, entregar ao devedor o termo de quitação da dívida; e
(viii) É assegurado ao credor ou ao adquirente do imóvel por força do leilão público, a reintegração na posse do imóvel, que será concedida imediatamente, para desocupação em sessenta dias.
Pelo que se observa, a execução extrajudicial prevista na lei 9.514/97 é muito mais célere e pro credor da que a execução judicial de hipoteca. Por conta disso, sua constitucionalidade foi questionada nos tribunais, que firmaram posicionamento no seguinte sentido:
PROPRIEDADE FIDUCIÁRIA – Bem imóvel – Ação cautelar com o objetivo de pronta suspensão da execução extrajudicial de garantia real de propriedade fiduciária, promovida com fundamento na lei 9.514/97 – Liminar indeferida – Manutenção – Recorrentes que fazem uma série de alegações genéricas de violações processuais e constitucionais que não encontram amparo nas provas e em sedimentada jurisprudência do STF e Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo – Recurso não provido. (AI 612.223-4/0-00 – 4ª Câmara de Direito Privado – Des. Rel FRANCISCO LOUREIRO – j. 4/12/2008)
O art. 39, II, da lei 9.541/97, expressamente estabelece que se aplicam no que couber a essa lei, as disposições do Decreto-Lei 70/1966 (clique aqui), que dispõe sobre execução extrajudicial.
O STF já se manifestou no sentido de que a execução extrajudicial não afronta os princípios do devido processo legal, da ampla defesa e do contraditório:
EXECUÇÃO EXTRAJUDICIAL. Recepção, pela Constituição de 1988, do Decreto-Lei 70/66.
- Esta Corte, em vários precedentes (assim, a título exemplificativo, nos RREE 148.872, 223.075 e 240.361), se tem orientado no sentido de que o Decreto-Lei 70/66 é compatível com a atual Constituição, não se chocando, inclusive com o disposto nos incisos XXXV, LIV e LV do artigo 5º desta, razão por que foi por ela recebido. (STF – RE 287.453-1 – RS, Relator Min Moreira Alves. DJ 26.10.2001)
Superada a constitucionalidade da lei 9.514/97, impende esclarecer que a alienação fiduciária difere da hipoteca basicamente em:
(i) A hipoteca é ônus em coisa alheia, sendo que a alienação fiduciária consiste em ônus em coisa própria;
(ii) Em caso de falência do devedor, na hipoteca o bem é arrecadado pela massa, devendo o credor habilitar seu crédito na falência. Já na alienação fiduciária, o bem não é arrecadado, pois o bem não está no patrimônio do devedor; e
(iii) O credor de garantia hipotecária está sujeito aos efeitos da recuperação judicial do devedor, já o credor fiduciário foi expressamente excluído pela lei de Falências e Recuperação de Empresas (lei 11.101/2005 - clique aqui, Art. 49, §3º).
Em face da lei, doutrina e atual jurisprudência, parece-nos que a alienação fiduciária é bem mais benéfica ao credor do que a hipoteca. No entanto, sua utilização não impede que o devedor tente questionar qualquer excesso ou ilegalidade da execução extrajudicial do contrato no judiciário, o que é natural e próprio do Estado Democrático de Direito.
_______________
1 Direito Civil – Volume 5º: Direitos Reais. 9ª Edição. Editora Atlas S.A. – 2009. NOTA: Silvio de Salvo Venosa foi juiz no Estado de São Paulo por 25 anos. Aposentou-se como membro do extinto Primeiro Tribunal de Alçada Civil, passando a integrar o corpo de profissionais de grandes escritórios jurídicos brasileiros.
2 ALIENAÇÃO FIDUCIÁRIA DE IMÓVEIS – Norton Editor – Porto Alegre, 2006 – Pág 45.
3 ALIENAÇÃO FIDUCIÁRIA DA LEI 9.514, DE 20.11.1997, São Paulo, ed. Saraiva, 1998, pag.
4 TJ/SP, Agravo de Instrumento 1239637-0/7 – 36ª Câmara. Data do julgamento: 14/05/2009.
________________
*Sócio do escritório Noé Araujo Advocacia
____________