Algumas considerações sobre a nova lei do mandado de segurança
Fernando A. M. Canhadas*
Nessas breves linhas procuraremos fazer justamente um "balanço" da nova lei, abrindo os debates – que certamente serão muitos – sobre o modo com que ela deverá ser recebida pela comunidade jurídica e ressaltando aqueles que, a nosso ver, são alguns de seus aspectos positivos e negativos.
Alguns aspectos positivos
A nova lei tem um mérito evidente e primeiro, concernente à compilação e atualização da matéria, anteriormente tratada por uma lei principal, com quase 60 (sessenta) anos de idade, e algumas outras também com algumas décadas de vida. Assim, foram dirimidas várias das dúvidas que ainda não estavam expressas no direito posto e, por essa razão, volta e meia ressurgiam em debates doutrinários e sobretudo jurisprudenciais. Falemos, então, desses e de outros méritos da novidade legal.
Vale destacar, inicialmente, a previsão contida no artigo 1º, § 1º, que equipara expressamente à autoridade coatora "os dirigentes de pessoas jurídicas ou as pessoas naturais no exercício de atribuições do poder público", fazendo a ressalva pertinente de que essa equiparação dá-se apenas "no que disser respeito a essas atribuições". A previsão é mais ampla do que a redação literal do artigo 5º, LXVIII da CF/88 (clique aqui) e merece encômios, já que, a nosso ver, atende ao espírito do mandamento constitucional de que o remédio em questão protege o direito líquido e certo contra todo e qualquer ato coator, seja quem for que venha a praticar o abuso de autoridade (inclusive pessoas naturais), desde que tal ato envolva, de alguma forma, função originalmente atribuída ao Poder Público.
Outra previsão bastante feliz é a autorização para que titulares de direito líquido e certo decorrente de direito de terceiro ingressem com a ação, se aquele terceiro não o fizer no prazo de 30 (trinta) dias da notificação (artigo 3º, caput, da nova lei). Nessa medida, não se comete os erros da legislação anterior, que fazia menção a um "prazo razoável" e exigia prévia notificação judicial desse terceiro. Tal como redigida a previsão, protege-se de maneira precisa o direito líquido e certo independentemente da ação daquele que, originariamente, deveria ter agido em primeiro lugar e não o fez por omissão.
Talvez a previsão que mais mereça aplausos, dentre todas, é a constante do § 1º do artigo 7º, que prevê expressamente o cabimento de agravo de instrumento contra decisão do juiz de primeiro grau "que conceder ou denegar a liminar". Com isso, derruba-se anos de uma inexplicável corrente jurisprudencial, que insistia em pregar o não cabimento do agravo contra decisões denegatórias de medida liminar em primeira instância. Uma vitória não apenas dos operadores do direito, mas do devido processo legal.
Outra novidade interessante é a previsão de prazo (de 30 dias) para que os juízes prolatem a sentença, a contar do recebimento dos autos do Ministério Público (artigo 12, parágrafo único). No regime anterior esse prazo era de irrisórios cinco dias; de tão exíguo, há muito a previsão havia caído em "desuso". Agora, com um prazo mais condizente com a realidade forense atual, esperamos que a novidade legislativa seja respeitada e contribua para uma maior celeridade dos julgamentos.
Reputamos relevante, também, a iniciativa de se normatizar expressamente o mandado de segurança coletivo, que até então vinha sendo integralmente tratado por meio de analogias e adaptações da lei 1.533/51 (clique aqui), do CPC (clique aqui) e até mesmo de legislações esparsas concernentes a outros remédios coletivos. Contudo, ao se ler os artigos 21 e 22 da nova lei, logo se percebe que o legislador perdeu uma boa oportunidade de sanar dúvidas relevantes acerca da matéria. E pior do que isso, como veremos abaixo, cometeram-se algumas falhas importantes pertinentes ao tema.
Por fim, embora a matéria já estivesse pacificada há muito tempo, louvamos a previsão expressa de afastar a condenação ao pagamento de honorários advocatícios (artigo 25). Nunca é demais ressaltar a necessidade de atribuir amplo acesso ao remédio constitucional em comento e a restrição condenatória é garantia muito bem vinda.
Alguns aspectos negativos
Infelizmente, como passaremos a abordar rapidamente, parece-nos que a nova lei mais errou do que acertou.
A nosso juízo, o primeiro erro cometido foi o de manter um rol (pequeno, é verdade) de supostas hipóteses de não cabimento do mandamus. Sempre achamos que se a CF não limitou o espectro de alcance do direito líquido e certo amparado por esse remédio, não caberia ao legislador inferior fazê-lo. Contudo, no artigo 5º da nova lei verificamos a manutenção das hipóteses de não cabimento contra "ato do qual caiba recurso administrativo com efeito suspensivo", "de decisão judicial da qual caiba recurso com efeito suspensivo" e de "decisão judicial transitada em julgado". Ao menos, retirou-se desse rol a previsão anterior relativa a atos disciplinares, o que é positivo.
A pior inovação de todas, porém, vem logo no artigo 7º, especificamente em seu inciso III. De acordo com essa nova redação, a concessão de medida liminar pode passar a ser condicionada à exigência de "caução, fiança ou depósito, com o objetivo de assegurar o ressarcimento à pessoa jurídica". Consoante pensamos, trata-se de expressa violação a diversos dispositivos constitucionais, especialmente aqueles contidos nos incisos LIV, LV e o próprio inciso LXVIII da Carta Magna. Condicionar a proteção liminar do direito líquido e certo a qualquer forma de garantia é restringir violentamente um remédio constitucional de suma importância. Esperamos, ardorosamente, que o legislador corrija esse erro o mais breve possível, ou que ao menos nosso Judiciário atente-se rapidamente para a violação que representa e passe a reputar de inconstitucional referido dispositivo, que obviamente o é.
É de se lamentar, também, o rol de matérias impassíveis de serem objeto de concessão de medida liminar, previsto no mesmo artigo 7º, § 2º. Por esse dispositivo, a nova lei passa a negar a medida para matérias envolvendo "compensação de créditos tributários", "entrega de mercadorias e bens provenientes do exterior", além dos casos já anteriormente previstos na lei 4.348/64 (clique aqui), referentes a "reclassificação ou equiparação de servidores públicos" e "concessão de aumento ou a extensão de vantagens". Assim como mencionado acima, em relação às hipóteses de não cabimento da ação, a nosso juízo não cabe ao legislador dizer se e quando o direito líquido e certo pode ser protegido liminarmente, se disso não cuidou o Constituinte.
Não julgamos correta, também, a manutenção do instituto da suspensão da segurança, tal como previsto no artigo 15 da nova lei. Em que pese respeitáveis entendimentos contrários da doutrina e da jurisprudência, vemos nesse instrumento um ranço nitidamente autoritário e incompatível com o sistema processual atual. A publicação da nova lei teria sido uma ótima oportunidade para sepultá-lo de uma vez por todas, mas infelizmente não foi o que ocorreu.
Por último, no que diz respeito à pobre normatização do mandado de segurança coletivo, entendemos que a nova lei andou mal em dois momentos:
a) quando restringiu a sua aplicação aos direitos coletivos e individuais homogêneos, excluindo-se, portanto, os direitos difusos (artigo 21), na medida em que, tomando como premissa essencial para a exegese jurídica a necessidade de se interpretar sistematicamente o texto constitucional, sempre acompanhamos parte da doutrina que estendia a aplicação do mandado de segurança coletivo às matérias de direito difuso, já que a CF não veda essa aplicação; e
b) quando, no artigo 22, § 1º, passou a prever que "os efeitos da coisa julgada não beneficiarão o impetrante a título individual se não requerer a desistência de seu mandado de segurança no prazo de 30 (trinta) dias a contar da ciência comprovada da impetração da segurança coletiva".
Reputamos essa última novidade duplamente infeliz: em primeiro lugar, porque ninguém é obrigado a "arriscar" o seu direito, como se estivesse diante de um jogo de azar. Ao titular do direito líquido e certo deve ser dada a oportunidade de ser representado da forma que melhor atender a esse direito, seja individual ou coletivamente. E assim como ocorre na ação civil pública, é aos efeitos da melhor sentença que ao final ele deve sujeitar-se, não havendo nenhum cabimento em se exigir a desistência da ação individual para que possa aproveitar dos efeitos da decisão coletiva. E em segundo lugar, também não há como se exigir uma "ciência comprovada" da impetração coletiva. Em termos práticos, esse dispositivo abre margem para interpretações das mais variadas e corre-se o risco de, em breve, depararmo-nos com o entendimento de que uma publicação em diário oficial será suficiente para dar essa ciência, o que certamente significaria uma evidente restrição a remédio constitucional dos mais relevantes.
Conclusão
Em suma, infelizmente nossa primeira impressão é de que a nova lei mais errou do que acertou. Era uma excelente oportunidade para corrigir uma série de erros históricos, ampliando ao máximo o acesso ao remédio constitucional por excelência, que é o mandado de segurança, tal como desenhou o Constituinte. Há acertos marcantes, dignos de nota. Mas há, sobretudo, violações e restrições inconcebíveis ao exercício do direito líquido e certo, circunstâncias estas que merecem rápida e eficaz atenção de todos.
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*Advogado do escritório Lima Gonçalves, Jambor, Rotenberg & Silveira Bueno Advogados.