Migalhas de Peso

Mudemos os hábitos, rejeitando a tecnologia demoníaca ou enxergaremos o verdadeiro fim da linha

A felicidade, nesta época, também é medida e quantificada por economistas, reduzindo-a a gráficos, em que ela é comparada com a renda per capita. Isso é levado a extrapolações visuais ou cartográficas, com fórmulas sofisticadas de avaliação da felicidade com o nível de renda pessoal; da situação dos desempregados involuntários com os infelizes, com os suicidas, com os parasuicidas e com os aposentados.

5/1/2005


Mudemos os hábitos, rejeitando a tecnologia demoníaca ou enxergaremos o verdadeiro fim da linha

Jayme Vita Roso*

“ ‘Você não é ninguém, se não tem utilidade para você mesmo e para os outros. Cada um se esforça para ter uma ocupação’.

‘Uma ocupação? Eu consegui uma ocupação’, respondeu Jacques.

‘Qual é?’

‘Inspetor das loucuras humanas, não conhecendo quem seja tão ocupado como eu’ ”.

(Eugene Nus, Nos Bétises,1882)1.

A felicidade, nesta época, também é medida e quantificada por economistas, reduzindo-a a gráficos, em que ela é comparada com a renda per capita. Isso é levado a extrapolações visuais ou cartográficas, com fórmulas sofisticadas de avaliação da felicidade com o nível de renda pessoal; da situação dos desempregados involuntários com os infelizes, com os suicidas, com os parasuicidas e com os aposentados; com o nível de melhoria de vida aumentando, quando relacionado a um período antecedente à 2ª Guerra Mundial, em termos de oportunidade, não de felicidade; com os efeitos da expandida felicidade, com os ganhadores de prêmios lotéricos e, passado o momento da euforia, a brutal queda com a satisfação de “bem-estar subjetivo” e assim por diante2.

Essa avaliação, que relaciona a vida humana à quantidade de bens auferidos, recebidos, percebidos, sentidos, vividos, oferecidos, encontrados, buscados, necessitados, para mim, aponta para uma sociedade enferma, que resulta no homem desfibrado, que balança sua vida, como adequadamente coloca Enrique Rojas, numa teratologia nihilista: hedonismo + consumismo + permissividade + relatividade, logo, materialismo3.

Vieram-me essas reflexões, com aparência de sinistras, quando li, n’“O Estado de S. Paulo”4, a reprodução de um artigo publicado num hebdomadário norte-americano, sobre um tal PSP, que não é a sigla do partido populista dos anos 40/50, de Ademar de Barros, mas um aparelho com a dimensão de uma barra de chocolate, que é, ao mesmo tempo, um videogame portátil de última geração, um vídeo, um telefone, internet, máquina fotográfica e aparelho de áudio.

O criador desse monstro tecnológico, no referido artigo, disse textualmente: “Tenho música, fotos, filmes, games, não tenho tempo para fruir de tudo isso em casa. Introduzimos este produto para mudar o mundo...”

Realmente, depois de reler o artigo, várias vezes, não posso deixar de ficar perplexo diante de tanta maldade, crueldade ou insanidade, ou tudo ao mesmo tempo. A empresa, à qual esse monstro presta serviço, para vender 3 milhões dessa arma, tão letal quanto um Smith Weston Magnum, ou como o crack, o ecstasy ou qualquer anfetamina hard, ao preço unitário de 200 dólares, ou 590 reais, lucrando uma brutalidade, porque seu preço de custo de fabricação não deverá ser 30% do de sua venda, aplicará outros 30%, pelo mundo, em publicidade, para embriagar ou drogar os adolescentes.

Com essa arma, que cabe na palma da mão, sobretudo o jovem terá a síntese de uma tecnologia diabólica, o mundo em suas mãos, quando, sequer, nele ingressou, pelo alçapão do sótão ou pela porta dianteira, menos pelas mãos dos seus pais.

Como ficam as relações deles com os pais, se é que as têm ou se é que os pais se interessam pela saúde cultural, psíquica, emocional, afetiva e moral de seus filhos?

Serão esses jovens, que, ao terem essas armas nas mãos, tão poderosas, vão pretender mudar o mundo, quando, jogando, os modelos violentos, passarão a adaptá-las aos seus ambientes? Ao contrário do que alguns idiotas dizem, que os games fazem os jovens colocarem sua agressividade para fora, positivamente, eles servem para banalizar a violência, não a controlam, desrespeitam as leis e as regras de convivência social, quebram os parâmetros sociais, aumentam a desobediência com os pais, emulam com os colegas, egoisticamente, servem para estimular contatos com gangues especializadas em aliciamento de menores, impelem a ganhar dinheiro fácil por meio de intermediações criminosas, ajudam gangsters a executar empreitadas à distância e outros tantas atividades anti-sociais.

Será que os pais modernos, ou moderninhos, se apercebem o que estão fazendo, quando compram, facilitam, emprestam ou incentivam seus filhos a usar esse arma monstruosa? Será que esses pais, durante uma semana, dedicaram-lhes, ao menos, uma hora de seu tempo? Será que alguma vez, nos últimos seis meses, conversaram com seus filhos, sobre a vida?

Será que os desprovidos de recursos materiais não serão mais incitados a praticar delitos para comprar esse artefato bélico?

Voltando a Rojas, apelo aos meus eventuais e bondosos leitores que larguem a mania de serem bem informados e pragmáticos, triviais ligeiros e frívolos, que incentivem seus filhos a terem compromissos com ideais não econômicos, ensinando-os que o verdadeiro progresso humano não é o desenvolvimento econômico tout court, se não for sustentado num alicerce de fundo moral. Deixemos a superficialidade, a indiferença, a permissividade, a assepsia.

Comprometamo-nos com a vida, com a família, com os semelhantes e com a pátria e façamos da proteção à natureza o mote de nossas vidas. Essa é a verdadeira finalidade de uma revolução social e política e seu projeto, que tornará a vida possível de ser vivida. Essa é a verdadeira felicidade.
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1
Van Boxsel, Matthijs. The Encyclopaedia of Stupidity. Londres: Reaktion Books, 2003. Traduzido do holandês por Arnold e Erica Pomerans. p. 19-20. Citação do texto de Eugene Nus, Nos Bétises,1882.

2 GIANNETTI, Eduardo. Felicidade. São Paulo: Companhia das Letras, 2003. 5ª reimpressão. p. 59-100.

3 ROJAS, Enrique. El hombre light: una vida sin valores. Buenos Aires: Planeta, 2002. 3ª ed. p. 11.

4 LEVY, Steven. Sony: todas as mídias em seu bolso. O Estado de São Paulo, 6/12/2004. Caderno Link, Seção Saiba como, p. L-6.
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* Advogado do escritório Jayme Vita Roso Advogados e Consultores Jurídicos









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