Borboleta, na cabeça
Mauro Caramico*
Naquela empresa da Vila Carioca, que vendia autopeças para a Volks e para a Ford, o vendedor de bilhetes era um sorridente paulistano, filho de uma improvável mistura de migrantes do Paraná e da Bahia. Tinha uma pequena corcunda e uma perna pouco mais comprida que a outra, o que fazia com que tivesse que dar um chutinho a cada passo. Penteava seus cabelos bem pretos para o lado, com uma risca à direita. Sua pele era de cor indefinida, bem amorenada pelo sol diário das ruas. Na boca enorme, despontavam os dentes um pouco tortos e a voz, canora, decerto treinada no comércio ambulante, usava-a sem parcimônia: quando chegava, todos sabiam. Não havia quem não gostasse de ouvir dele a última piada, ou uma fofoca de algum artista da TV ou político, a quem, jurava, vendia bilhetes toda semana. Chamava-se Emmanuel, mas era conhecido como Mané Pastinha, porque sempre trazia os bilhetes numa surrada pasta de couro.
Seu freguês preferido era o senhor Artêmio, velho diretor comercial da companhia, cuja alma estava mais que amaciada, pelo contato diário, ao longo de meio-século, com vendedores e compradores de todos os tipos. Seus pacientes olhos verdes, já com os primeiros sinais de catarata, esperavam tudo, de todos; nada os poderia surpreender. Homem de família e de gostos frugais, não julgava ninguém e a todos recebia com um sorriso discreto, em que se podia confiar. Era nada menos que amável.
Era dezembro, e o Pastinha estava certo de que o seo Artêmio, ainda mais benevolente pelo espírito do Natal, compraria, pelo menos, um bilhete inteiro da federal. Depois de filar um café amargo com a Dona Lourdes, secretária do seo Artêmio, ele mesmo se anunciou, com a melhor empostação que tinha:
- Ô, seo Artêmio, vim hoje até aqui só para lhe trazer o bilhete da borboleta. É extração especial, prêmio dobrado. Esse Natal, o senhor passa mais milionário do que já é!
- Que milionário o quê, Mané Pastinha... Se tivesse dinheiro, estava na Argentina com a Nica e com as minhas dez netas. Me dê cá esse bilhete que o treze, hoje, vai me dar sorte.
Sempre se lembrava daquela viagem a Buenos Aires: tinha fretado um ônibus e levou a Nica, sua única e eterna esposa, as filhas e o filho, os genros e a nora, todas as netas, o seu sobrinho e toda a sua família. Pagou tudo: hotéis, restaurantes, passeios. E nunca foi tão feliz: se tivesse dinheiro, repetiria.
Comprou logo dois bilhetes – a borboleta, final 13, e o touro, 82. Um, enfiou, com cuidado para não dobrar, na maletinha que sempre carregava. Chamou a Dona Lourdes e pediu para pôr o outro no cofre: era para os seus funcionários. Dividiria o prêmio, se tirasse a sorte grande.
Na empresa, era conhecido pela sua benevolência – até seu sócio, que cuidava do caixa com ciúmes de amante, dizia: “Deixa de ser besta, Artêmio. Tira umas férias, leva a família, que a empresa agüenta. Depois, é só trazer umas notinhas, que eu reembolso tudo – e ainda descontamos do Imposto de Renda!”
Mas, qual o quê. Para o seo Artêmio, tirar dinheiro qualquer da empresa, sem que fosse seu pro labore mensal, era sacrilégio. Ia, por isso, adiando o sonho argentino.
Quando saía da empresa, no fim daquele dia, todos, já devidamente avisados pela indiscrição da Dona Lourdes, agradeciam o bilhete e riam, dizendo que iam pedir ao Papai Noel que sorteasse os números certos.
Aquela noite, sonhou que passeava sob a lua cheia, numa montanha verde, da Itatiba de sua infância. Quando acordou, tinha certeza que ia dar borboleta: sonhar com montanha, com árvores, com lua, só podia ser borboleta, na cabeça.
Era véspera de Natal, a extração ia acontecer depois do almoço do dia seguinte, ao vivo, pela televisão. Tinha que trocar os bilhetes, o quanto antes.
Inventou à Nica que tinha que comprar um presente de última hora, para o vizinho do lado direito, e acelerou a velha perua Veraneiro para a empresa, onde entrou sem que ninguém o visse: tinha a chave do portão de entrega de mercadorias. Deixou o carro na rua, desarmou o alarme, foi à sua sala, abriu o cofre e, com um suspiro de alívio, trocou os bilhetes. Conseguiu sair, ainda, sem que ninguém o visse - naquela época, ainda não existiam as câmeras de vigilância. Mas, quando ainda estava com a chave na porta do carro, teve um sobressalto que quase o fez cair duro: o Mané Pastinha subia a rua, com seus chutinhos, assobiando o “Jesus Cristo”, do Roberto Carlos.
- Ô, seo Artêmio, que boa fortuna, a minha! Ver o senhor na véspera do Natal é uma alegria! Pena que já vendi todos meus bilhetes...
Sem saber o que responder, Artêmio sorriu para o corcundinha, tentando pensar. Tremia tanto que mal conseguiu terminar de abrir a porta, pegar um panetone no banco do passageiro, e entregar para o Mané:
- Toma Mané, leva para os teus meninos. Não sei se te avisaram, mas a empresa entrou em férias coletivas: só voltamos dia 15 de janeiro.
- Foi bom o senhor me dizer; não sabia não. Assim não perco a viagem. Um bom ano prô senhor e pra toda a família.
E foi se afastando, alegre com o presente inesperado, e agora cantando: “Jesus Cristo, Jesus Cristo, Jesus Cristo, eu estou aqui...”
- Jesus Cristo! pensou o velho Artêmio, suando frio, dando partida na Veraneiro.- Quase me pegam. Mas acho que até o dia 15, ele já esqueceu.
Voltou para casa, não sem antes comprar outro panetone e uma garrafa de espumante, para o vizinho da direita.
Passou o Natal com toda a família, que ia aumentando, à medida que sua netas começavam a trazer os primeiros namorados. Se fosse levar todos para a Argentina, desta vez, tudo ia ficar mais caro...
Dormiu tranqüilo e, desta vez, sonhou com borboletas mesmo: não precisava nem interpretar, para ter certeza do resultado da extração.
No dia seguinte, sorria ao ver todas as suas netas, falando e rindo todas juntas, numa tagarelice feminina, muito familiar, exibindo os presentes que ganharam. Depois do almoço de Natal, recostou-se na sua poltrona e esperou, confiante, o resultado da extração, pela TV.
Não se espantou nem um pouco, não mexeu uma sobrancelha, quando a atriz-e-modelo, de gorrinho com pompom, bustiê e microssaia vermelha, tirou a primeira bola, com o número 8.
Depois, uma mais loirinha, também à la Noel, sorriu para a tela, com o número 3 nas mãos. Uma mulatinha apresentou o 4. Outra morena tirou o 1 e, enfim, o próprio apresentador, saltitando entre as noeletes, exibiu o último número: 3. “Oitentetrês-mil, quatrocentos e treze: borboleta, na cabeça!”, berrava às câmeras, bendizendo o felizardo ganhador.
Só uma das dez netas percebeu o sorriso no canto da boca do avô. Achou melhor não comentar: ele, decerto, olhava para as pernas das mocinhas.
No dia seguinte, voltou à empresa – que, claro, não estava em férias coletivas. Chamou a Dona Lourdes e, seguindo o script que mentalizara, pediu a ela que pegasse, no jornal, as dezenas sorteadas. Ela se animou: só agora lembrara do bilhete comprado antes do Natal.
- Será que estamos ricos, seo Artêmio? O prêmio é de quinze milhões!
- Abra o cofre, Dona Lourdes, abra o cofre. Vamos ver o que é que deu.
A secretária deixou cair os óculos, antes de se pendurar aos berros no pescoço do seo Artêmio, que já ria, como criança. O bilhete que estava no cofre era o do primeiro prêmio: borboleta, na cabeça!
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* Advogado do escritório Jayme Vita Roso Advogados e Consultores Jurídicos