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CTB: embriaguez ao volante e excesso de velocidade como indícios de culpa, não de dolo eventual

Em sede de acidentes de trânsito com vítima fatal costuma ser pequena a margem de discussão quanto a fatos, principalmente quando existem indícios de que o motorista-acusado estaria embriagado e em excesso de velocidade no momento da ocorrência. É que tais circunstâncias têm sido tratadas como absolutamente suficientes para a caracterização da prática de crime doloso contra a vida, pois seriam claros indicativos de que o malsinado condutor teria agido com dolo eventual.

29/7/2009


CTB: embriaguez ao volante e excesso de velocidade como indícios de culpa, não de dolo eventual

André Boiani e Azevedo*

Eric Ribeiro Piccelli**

Em sede de acidentes de trânsito com vítima fatal costuma ser pequena a margem de discussão quanto a fatos, principalmente quando existem indícios de que o motorista-acusado estaria embriagado e em excesso de velocidade no momento da ocorrência. É que tais circunstâncias têm sido tratadas como absolutamente suficientes para a caracterização da prática de crime doloso contra a vida, pois seriam claros indicativos de que o malsinado condutor teria agido com dolo eventual.

Ocorre que, para além de violar institutos da teoria geral do delito, essa espécie de entendimento acaba por contrariar frontalmente as diretrizes interpretativas do CTB (clique aqui), e portanto merece duras críticas.

Dito isso, não se nega que o chamado dolo eventual é de difícil conceituação e identificação. Em linhas gerais, difere da chamada culpa consciente em função de fatores de certo modo fluídos, e por isso vem sendo objeto de refinadas construções dogmáticas.

Dentre as diversas teorias que, ao longo das últimas décadas, foram formuladas com o objetivo de estabelecer uma compreensão mais precisa acerca da natureza e das características do dolo eventual, destaca-se aquela que foi abraçada pelo Legislador de 1984, notadamente a Teoria do Consentimento – que não pode ser olvidada pelo operador da lei penal.

Segundo essa proposição – repita-se, adotada pelo CP (clique aqui) em sua nova Parte Geral -, o dolo eventual deve ser examinado sob dois ângulos: o cognitivo e o volitivo.

No primeiro se enquadram as circunstâncias objetivas do comportamento humano e o seu possível conhecimento por parte do agente, enquanto no segundo se encontra a sua vontade.

Assim é porque, ainda que eventual, o dolo eventual não deixa de ser dolo, como ensina Alberto Silva Franco1, e portanto não pode prescindir de um elemento volitivo.

Essa questão já foi examinada pelo Augusto STJ em diversas oportunidades, do que decorreu a sedimentação de jurisprudência no seguinte sentido: "A doutrina penal brasileira instrui que o dolo, ainda que eventual, conquanto constitua elemento subjetivo do tipo, deve ser compreendido sob dois aspectos: o cognitivo, que traduz o conhecimento dos elementos objetivos do tipo, e o volitivo, configurado pela vontade de realizar a conduta típica"2.

É dentro dessa moldura dogmática, então, que devem ser avaliados acidentes de trânsito com vítima fatal, para que seja respondida uma pergunta simples: o motorista-acusado, afinal, pode ou não ter agido com dolo eventual no acidente em que se envolveu?

A resposta positiva é em geral justificada pela invocação de apenas dois elementos que são, eminentemente, objetivos: embriaguez e excesso de velocidade. E é fato que esses ambos costumam coexistir, de modo que resta aparentemente satisfeito o primeiro dos requisitos – notadamente o cognitivo – para a possível constatação da presença dolo eventual.

Todavia, esquece-se de que, por imposição da Teoria do Consentimento que rege a interpretação do artigo 18, inciso I, do CP, não basta apenas isso para a caracterização do dolo eventual. Na verdade, uma resposta desse tipo trata de apenas uma das facetas do instituto, desprezando a outra – nomeadamente o elemento volitivo -, cuja importância não se deve negligenciar.

Não se discute que, sob o ponto de vista cognitivo, embriaguez e excesso de velocidade podem ser indicativos da ocorrência de dolo eventual. Porém, à luz do elemento volitivo destacado pela doutrina, lembrado pela jurisprudência e prestigiado pelo Legislador, incumbe à acusação fornecer ao menos indícios de que o acusado teria consentido em causar os resultados danosos descritos na inicial, sob pena de ficar inviabilizada a argumentação acusatória.

Quando inexistem indicativos de que o motorista-acusado soubesse, de antemão, que poderia sobrevir um acidente exatamente no local em que houve, torna-se inviável, mesmo em tese, a afirmação de que ele teria aceitado como válida a opção de, independentemente das prováveis conseqüências de sua conduta, continuar a praticá-la. E se ele não representa em sua mente a concreta possibilidade de matar alguém, não fica preenchido o segundo requisito para verificação do dolo eventual, nomeadamente o volitivo.

Somente seria diferente se o motorista-acusado, ciente de que seu comportamento provavelmente causaria um acidente determinado, com vítimas concretas, ainda assim prosseguisse em seu curso de ação – e eventuais indícios nesse sentido não podem ser substituídos pela mera alegação da presença de embriaguez e de excesso de velocidade em seu agir.

O Ministério Público do Estado de São Paulo, em um emblemático caso, recentemente se pronunciou com correção no sentido de que o binômio embriaguez + excesso de velocidade não é sinônimo de dolo eventual, como se vê da seguinte afirmação: "A imprudência do denunciado consistiu em dirigir o veículo automotor sob a influência de álcool, em velocidade excessiva, incompatível com o local, e trafegar na contramão de direção"3.

Para além disso, também a doutrina é incisiva ao rechaçar o mau uso do dolo eventual em acidentes automobilísticos: "Uma palavra sobre a conduta de dirigir embriagado. A embriaguez não é somente um problema social, mas também um complexo problema jurídico. As soluções são diferenciadas nas legislações. Temos para nós que atribuir responsabilidade penal ao motorista causador de um acidente, fundado na embriaguez e na velocidade excessiva, constitui uma indisfarçável adoção da responsabilidade objetiva. Uma opção pela responsabilidade penal pelo evento passa, no nosso entendimento, pela inequívoca aceitação de um comportamento anímico de comprovação quase impossível, ou por uma embriaguez pré-ordenada. Mas nesta última hipótese, de actio libera in causa, já nos encontramos no terreno do dolo direto; na segunda, de uma confissão que no nosso direito é sempre insuficiente para uma condenação. Válida a observação de André Luís Callegari, de 'que não será a embriaguez, o número de vítimas ou excesso de velocidade, entre outros motivos, que delinearão a imputação ao acusado, mas tão-somente, o seu consentimento para a produção ou não do resultado típico'. Em outro trabalho, André Luís Callegari escreve: O 'nosso Direito Penal é o da culpabilidade, e culpabilidade nada mais é do que censurabilidade, reprovabilidade, juízo de pura censura e reprovação sobre a conduta do réu. Então, quando mais censurável for a conduta do réu (embriaguez, excesso de velocidade, número de vítimas), maior poderá ser a reprimenda penal imposta pelo juiz ao aplicar a pena, dentro do delito culposo, ou seja, se a conduta do réu for extremamente censurável, aplica-se a pena máxima do delito culposo, não se falando, neste caso, em dolo eventual. A pena aplicada é a do delito culposo, devendo ser dosada de acordo com a culpabilidade do acusado'"4.

E o que é mais importante: o próprio Legislador não entende de modo diferente. Ao alterar a redação do artigo 291 do CTB, deixou claro que não perde o caráter culposo o delito de trânsito cometido por motorista embriagado e em excesso de velocidade:

"Art. 291. Aos crimes cometidos na direção de veículos automotores, previstos neste Código, aplicam-se as normas gerais do CP e do CPP (clique aqui), se este Capítulo não dispuser de modo diverso, bem como a lei 9.099, de 26 de setembro de 1995 (clique aqui), no que couber.

§ Aplica-se aos crimes de trânsito de lesão corporal culposa o disposto nos arts. 74, 76 e 88 da lei 9.099, de 26 de setembro de 1995, exceto se o agente estiver:

I - sob a influência de álcool ou qualquer outra substância psicoativa que determine dependência;

II - participando, em via pública, de corrida, disputa ou competição automobilística, de exibição ou demonstração de perícia em manobra de veículo automotor, não autorizada pela autoridade competente;

III - transitando em velocidade superior à máxima permitida para a via em 50 km/h (cinqüenta quilômetros por hora)."5

Note-se que, embora essas circunstâncias impeçam que o acusado da prática de crime de lesão corporal na direção de veículo automotor se beneficie dos institutos da lei 9.099/95, não têm o condão de transmudar em dolosa a sua conduta, que não deixa de ser, em tese, culposa.

Assim, até mesmo por disposição legal, a mera presença de embriaguez e de excesso de velocidade na conduta do motorista-acusado não representam indícios suficientes da prática de crimes dolosos, mas de delitos culposos.

Lamentavelmente, contudo, não se tem dado o devido valor hermenêutico ao referido dispositivo legal, que, embora trate do crime de lesão corporal, parece servir de marco interpretativo também para o delito de homicídio cometido no trânsito. Se corretamente considerado, pode servir para afastar a fluidez do conceito de dolo eventual e assegurar ao acusado seu direito de não sofrer excesso de imputação.

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1 Código Penal e Sua Interpretação Jurisprudencial. São Paulo: RT, 1997, Vol. 1, Tomo I, p. 284 – com remissão a DÍAZ PABLOS.

2 HC 44.015/SP, Rel. Ministro GILSON DIPP, Quinta Turma, julgado em 13.12.2005, DJ 1.2.2006 p. 576 – destacou-se e sublinhou-se.

3 Denúncia oferecida contra Promotor acusado da prática de crimes de trânsito, e subscrita pelo então Procurador-Geral de Justiça, Dr. RODRIGO CÉSAR REBELLO PINHO – processo nº 155.032-0/2-00. Tal peça foi recebida, sem nenhum reparo, por acórdão unânime do Colendo Órgão Especial do Egrégio Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo.

4 PIERANGELI, José Henrique. Morte no Trânsito: Culpa Consciente ou Dolo Eventual? In: _________. Escritos Jurídico-Penais. São Paulo: RT, 2006, p. 396/397.

5 Destacou-se e sublinhou-se.

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*Professor de Direito Penal e Processual Penal na UNIP. Advogado criminalista do escritório Azevedo e Azevedo Advogados Associados

**Advogado criminalista do escritório Azevedo e Azevedo Advogados Associados

 

 

 

 

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