Compras pela internet e a responsabilidade civil dos fornecedores e fabricantes
Liliane Puk de Morais*
São muitas as vantagens de comprar através da internet. Além de conseguir, fácil e rapidamente, pesquisar os preços de todos os tipos de produtos, o consumidor acaba fazendo uma boa compra e ganhando tempo. Sem falar também no conforto, já que o produto é entregue na residência do consumidor, muitas vezes sem qualquer custo adicional.
Apesar dessas e de outras vantagens, na prática, as compras na internet vêm causando uma série de dissabores aos consumidores. Isso porque existem empresas funcionando na rede mundial, sem a indicação do endereço de sua sede e sem estabelecer um canal de comunicação com o consumidor.
Por exemplo, se o consumidor efetua a compra de um notebook Sony (poderia ser qualquer outro fabricante) através do site Mercado Livre por um preço vantajoso, ou seja, 50% abaixo dos preços praticados nas lojas de mercado de consumo, e ao receber o produto verifica que o mesmo não é novo, sendo informado pelo vendedor que fez o anúncio no site do Mercado Livre que o produto tinha apenas 1 (um) mês de uso, comprovando tal fato com a apresentação da nota fiscal, e o produto vem a apresentar vício de qualidade, que impedia o acionamento de algumas teclas, seguido de uma pequena explosão. Neste caso, pergunta-se: quem deve ser acionado para resolver o problema?
Primeiramente há de se esclarecer que no presente exemplo há relação de consumo, eis que existe um consumidor e um fornecedor. O artigo 2º da lei 8.078/90 (clique aqui) define o conceito de consumidor, enquanto o artigo 3º, da citada lei, define fornecedor.
A pessoa que adquiriu o notebook se enquadra no conceito de consumidor, pois trata-se de pessoa física que adquiriu um produto como destinatário final do mesmo.
No exemplo dado não esclarece exatamente qual foi o uso dado ao produto, contudo, mesmo que se cogitasse que o consumidor adquiriu o produto para o desenvolvimento de sua atividade profissional, mesmo assim manteria o "status" de consumidor, pois, embora se entenda que se deva privilegiar a teoria finalista, a mesma deve ser abrandada quando verificada a vulnerabilidade técnica, jurídica ou econômica (considerando a existência da vulnerabilidade), conforme decidiu a Quarta Turma do E. STJ, no julgamento do Resp 2004/0073295-7.
De outro viés, o artigo 3º define o fornecedor e, dentre as definições existentes, destaca-se a atividade de comercialização de produtos.
O termo atividade deve ser entendido em sua concepção tradicional, aplicando as regras consumeristas para aqueles que exercem atividade comercial típica e eventual.
Essa atividade comercial pode ser exercida tanto pela pessoa física como pela jurídica. Portanto, deve-se analisar a existência da atividade comercial para se verificar a existência de fornecedor e, por conseguinte, aplicar as regras do CDC (clique aqui).
Aquele que apenas aliena seu veículo usado, não se encontra regulado pela lei 8.078/90, contudo, aquele que exerce uma atividade rotineira de venda, mesmo sem ter-se estabelecido como pessoa jurídica, será fornecedora (comerciante de fato, por exemplo).
Aplicando esses conceitos ao caso em pauta, deve-se dizer, primeiramente, que o site Mercado Livre tem por objeto intermediar negócios, ou seja, pessoas anunciam produtos para venda, portanto, existem duas figuras, o vendedor e o site.
Com relação ao vendedor, partindo da premissa que se considera fornecedor a pessoa física que, apesar de não se ter estabelecido como pessoa jurídica, desenvolve atividade comercial, certamente o vendedor apresentado na questão será considerado fornecedor, no caso de se demonstrar a atividade comercial.
Para equacionar essa assertiva, entende-se que um norte é a análise do histórico de venda da pessoa, disponibilizado pelo site, como de conhecimento geral. Já no tocante ao Mercado Livre, primeiramente deve-se dizer que as relações estabelecidas com a figura site se encontram abrangidas pela lei 8.078/90, pois trata-se de prestação de serviço de veiculação de anúncios, remunerada de forma indireta.
Dito isso, importante destacar que a empresa Mercado Livre ingressa na cadeia de fornecedores, uma vez que detém lucro através da veiculação de anúncios em sua página na internet, angariando consumidores através da confiabilidade de sua marca e, ainda, fornecendo certificados aos vendedores.
Some-se ao fato de que, em se tratando de negociação virtual, onde as partes não mantêm contato físico entre si, nem o comprador pode examinar pessoalmente o objeto (circunstâncias que influem diretamente no consentimento), a participação do site se revela decisiva quando assegura ao consumidor a confiabilidade do meio. Tal fato traz um marco distintivo para diferenciar a intervenção negocial do site de classificados, que por força disso é muito mais relevante do que a do mero corretor ou ainda do jornal que anuncia classificados.
Portanto, os sites podem ser considerados fornecedores de serviço ou produto, desde que exerçam atividade comercial.
Como exemplo de fornecimento de produtos, destacam-se as lojas virtuais que vendem produtos exatamente da mesma forma que o fazem em suas lojas físicas. Já como prestadora de serviços, destacam-se os sites que promovem relacionamentos.
Dispõe o artigo 3º, §2º da lei 8.078/90:
"Art.3º - Fornecedor é toda pessoa física ou jurídica, pública ou privada, nacional ou estrangeira, bem como os entes despersonalizados, que desenvolvem atividades de produção, montagem, criação, construção, transformação, importação, exportação, distribuição ou comercialização de produtos ou prestação de serviços.
(...)
§2º Serviço é qualquer atividade fornecida no mercado de consumo, mediante remuneração, inclusive as de natureza bancária, financeira, de crédito e securitária, salvo as decorrentes das relações de caráter trabalhista."
É certo que, para a caracterização da relação de consumo, o serviço deve ser prestado pelo fornecedor mediante remuneração. No entanto, o conceito de serviço previsto na referida norma consumerista abrange tanto a remuneração direta quanto a indireta.
Com relação aos sites que vendem produtos da mesma forma como o que fazem em suas lojas físicas, entende-se que a configuração de fornecedor é mais tranqüila, pois patente que figuram como tal.
Assim, pode-se concluir que os sites encontram-se regulados pelo CDC.
Se isso não bastasse, o escopo do CDC é a proteção dessa realidade comercial, massificada, simplificada e ágil, protegendo a boa fé dos contratantes e permitindo ao Judiciário a alteração de cláusulas contratuais, preservando a proporcionalidade. O conceito de consumidor, como já mencionado, é o mais amplo possível, conforme artigo 29 do CDC.
A solução deve amparar-se na eqüidade, na analogia, nos costumes e nos princípios gerais de direito e, ainda, a Lei de acordo com os seus fins e o bem comum (art, 4º e 5º da LICC e art.6º da lei 9.099/95 - clique aqui), trazendo o equilíbrio nas relações.
Na ausência de legislação complementar que regre a matéria, adotando-se a analogia e a equidade como forma de equacionar a relação, e em razão dos sites exercerem atividade comercial, deve-se aplicar o CDC. Ainda mais que atualmente existem inúmeros consumidores lesados em decorrência das relações virtuais por ainda não haver lei de internet.
Conclui-se, portanto, que os sites se enquadram perfeitamente nas definições constantes no artigo 3º do CDC, não havendo razão para exclusão, exceção apenas para os que não desenvolvam nenhuma atividade comercial.
Dispõe o artigo 31 da lei 8.078/90:
"a oferta e apresentação de produtos ou serviços devem assegurar informações corretas, claras, precisas, ostensivas e em língua portuguesa sobre suas características, qualidades, quantidade, composição, preço, garantia, prazos de validade e origem, entre outros dados, bem como sobre os riscos que apresentam à saúde e segurança dos consumidores".
A oferta se relaciona com os riscos intrínsecos ao funcionamento do produto e não uma anomalia. Definitivamente, um notebook não pressupõe, como corolário lógico de se uso/destino/fim, como risco possível de um uso normal a explosão, ao contrário, por exemplo, de fogos de artifício. Exceção às questões relativas à parte elétrica, como molhar o aparelho, cuidados com a bateria, etc.
Ademais, embora referido artigo preveja a responsabilidade pela oferta em casos onde o fornecedor não informa os riscos que um produto apresenta à saúde, a aplicabilidade da norma exige a verificação do caso concreto, dependendo do caso concreto, dependendo das características do produto não se exigirá todos os elementos constantes do citado artigo 31.
Na realidade, o inicial mau funcionamento do teclado se afigurava como típico vício do produto (art. 18), sendo esse caracterizado por um problema que tornou o produto impróprio ou inadequado ao consumo a que se destina e também lhe diminua valor.
Contudo, o problema transmudou-se para fato/defeito do produto, ou seja, algo mais sério que culminou em uma explosão, o que nos remete ao artigo 12 do CDC, que define defeito como um vício com um problema extra, ou seja, aquele que implique em mais do que o simples mau funcionamento, mas aquele que traz risco ao patrimônio material, físico e moral.
Se o produto tiver um defeito que causar dano ao usuário, como por exemplo uma explosão do teclado que fere a mão do usuário, resta claro que se trata de responsabilidade por fato do produto(art.12 CDC).
Nos casos em que se encontrarem sob a égide do artigo 12 do CDC, dispõe o caput acerca dos responsáveis pelo defeito do produto, ou seja, o fabricante, o produtor, o construtor, nacional ou estrangeiro, e o importador.
Note-se que não há menção ao fornecedor, isso pelo fato de que o fornecedor é gênero daqueles que desenvolvem atividades no mercado de consumo, conforme definido no artigo 3º do CDC. Assim, toda vez que há menção a fornecedor, envolve-se todos os participantes que desenvolvem atividades.
Já na responsabilidade por defeito a regra é a especificação do agente, ou seja, o consumidor tem que se dirigir contra o responsável pelo defeito : o fabricante, o produtor ou construtor e, em caso de produtos importados, o importador.
Por fim, deve-se mencionar que se pressupõe que o problema seja de fabricação, não havendo nenhuma responsabilidade do vendedor que usou o produto por um mês, pois, nesse caso, seria elidida a responsabilidade do fabricante restando buscar a reparação contra o vendedor (art. 12, §3º, inciso III).
O CDC a teoria objetiva no tocante a responsabilidade civil, exceção aos profissionais liberai, que prescinde de apuração de culpa (§4º, inc. II, artigo 14).
As conseqüências da adoção da responsabilidade objetiva é o fato de não haver necessidade de se comprovar a culpa do agente, bastando demonstrar o dano e o nexo causal.
Teve como repercussão a facilitação da defesa dos direitos dos consumidores, uma vez que antes do CDC, os consumidores se deparavam com grande dificuldade para fazerem valer seus direitos, uma vez que seria necessária e exigida a apuração da "culpa" para a caracterização do direito à indenização.
A culpa é formada pela trilogia : negligência, imprudência e imperícia, e somente nos casos de sua incidência é que haveria reparação. O poderio econômico sempre foi um dos fatores preponderantes neste sentido, pois permitia a manipulação ao bel prazer dos interessados.
Portanto, a principal consequência da adoção da teoria objetiva é que os fornecedores ou prestadores de serviços passaram a responder pelos danos causados, independentemente de agirem com culpa, tendo responsabilidade direta por seus produtos ou serviços em decorrência da atividade desenvolvida.
Pode-se destacar, ainda, que a responsabilidade objetiva aliada a inversão do ônus da prova (art.6º, VIII do CDC), foram duas inovações que facilitaram a defesa do consumidor, prestigiando os princípios formadores da lei 8.078/90.
No que tange a inversão do prova, a lei 8.078/90, em seu artigo 6º, inciso VIII, dispõe sobre a facilitação da defesa dos direitos do consumidor, inclusive com a inversão do ônus da prova, a seu favor, no processo civil, quando, a critério do juiz, for verossímil a alegação ou quando for ele hipossuficiente, segundo as regras ordinárias da experiência :
"Art. 6º - São direitos básicos do consumidor:
VIII – a facilitação da defesa de seus direitos, inclusive com a inversão do ônus da prova, a seu favor, no processo civil, quando, a critério do juiz, for verossímil a alegação ou quando for ele hipossuficiente, segundo as regras ordinárias de experiência."
O ônus de provar a constituição e exigência de direito, regra geral, compete àquele que alega. Nas relações de consumo, por sua vez, caso verificada a verossimilhança das alegações ou a hipossuficiência do consumidor, poderá o magistrado, a seu critério, distribuir tal ônus de forma inversa.
Assim, a inversão do ônus da prova não é uma imposição ao magistrado, tampouco um poder discricionário, mas, tão somente, um instrumento processual que poderá ser utilizado em prol de uma das partes, desde que presentes seus requisitos :
(i) verossimilhança dos fatos alegados ou
(ii) hipossuficiência da parte.
O requisito da hipossuficiência, utilizado pela lei 8.078/90, não se refere à capacidade econômica das partes, mas, tão só, à possibilidade plena de comprovação dos fatos, podendo ser considerado hipossuficiente numa relação de consumo, somente aquele que depende de atos da parte adversa, sem os quais estaria impossibilitado de comprovar suas alegações.
No caso exemplificado neste artigo, o consumidor detém todos os meios de produzir as provas acerca do defeito de fabricação. A regra é a proteção do consumidor, mas há casos nos quais a regra deve ser relativizada, como, se o consumidor deste exemplo se recusar em apresentar o produto para a realização de uma perícia. Nessa hipótese, deveria aplicar o artigo 333, inciso I, do CPC.
Em nome de uma proteção legítima, mas que desse modo seria exagerada, aniquilar-se-ia a garantia constitucional da ampla defesa de desigualar substancialmente as partes no tocante as suas oportunidades e perspectivas no processo.
Dessa forma, o juiz só pode legitimamente dar por invertido o ônus da prova quando estiver diante de fatos-base suficientemente comprovados e souber, pela vivência cultural, que tais fatos costumam ter a conseqüência alegada pela parte no processo.
Portanto, o momento oportuno para a inversão do ônus da prova é o julgamento, e não durante a instrução processual, pois caso preenchidos os requisitos e, eventualmente o julgador entender devida a inversão, esta somente poderá ocorrer depois da produção e valoração das provas, no momento da formação do livre convencimento do magistrado.
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*Integrante do escritório Rayes Advogados Associados
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