STJ incorre em inconstitucionalidade ao reforçar desigualdade em ações civis públicas
Fábio Barbalho Leite*
À força da embriaguez de um discurso de tom entre moralista, justiceiro e messiânico, princípios jurídicos comezinhos e mesmo certos rudimentos básicos do sistema constitucional processual têm sido espezinhados em termos que ferem até o apreço à lógica jurídica. Tome-se, por exemplo, o quanto firmado no Resp 193.815: "não se mostra razoável estender o benefício àqueles que se encontram no pólo passivo da relação processual. Seria fora de propósito, no caso concreto, dar incentivo àquele que é condenado por improbidade administrativa, causando danos à sociedade." Ora, como sustentar tal insensatez diante:
a) da noção de que o direito de ação – ensejado ao autor – não nega o princípio da presunção de inocência (uma obviedade incontroversa pelo menos desde a doutrina de Von Büllow, que sedimentou o conceito moderno de direito de ação como algo independente de quem tenha razão quanto ao direito material controvertido);
b) de que, sem trânsito em julgado da decisão judicial, não se pode falar em culpado ou condenado pela Justiça (CF/88, art. , 5º, LVII - clique aqui);
c) da verdade acaciana de que o acesso à instância recursal é etapa lógico-jurídica anterior à condenação final e, portanto, necessariamente não deve ter suas regras de admissibilidade resolvidas pelo conceito de culpa ou não da parte ré;
d) de que, cuidando-se a ação de improbidade de um processo de grave natureza sancionatória (materialmente penal; conforme reconhece a melhor jurisprudência do próprio STJ: Resp 721.190 - clique aqui, Rel. Min. Luiz Fux), constitui rotunda agressão à isonomia liberar-se a acusação de quaisquer ônus financeiros do processo, enquanto se constrange a defesa ao pagamento de custas e demais encargos, inclusive para acessar a segunda instância – afinal de contas, soa elementar que acusação com privilégios e defesa com encargos desproporcionais não caracterizam um processo que se possa chamar de justo (muito menos obsequioso ao devido processo legal).
Deveria ser ocioso lembrar que as ações de improbidade podem redundar em sanções que constrangem direitos fundamentais de alto valor axiológico no seio da Constituição do Estado Democrático de Direito, a saber: os direitos políticos.
É importante ainda firmar que, quanto ao postergamento de custas previsto no art. 18 da Lei de Ação Civil Pública, o texto legal não esposa a restrição do favor apenas à parte autora. Ao contrário, no plano literal, o texto legal é abrangente e não discriminatório ao instituir o favor legal: "Nas ações de que trata esta lei, não haverá adiantamento de custas..." A certeza de que o favor legal deve ser igualitariamente reconhecido às partes em litígio é tanto mais evidente quando lembrado que o respeito ao devido processo legal (CF/88, art. 5, LIV) requer um mínimo de parelha de posições, ônus e direitos processuais entre autoria e defesa. Ainda que se reconheça a constitucionalidade dos chamados privilégios do Poder Público em juízo, é evidente que deixar a acusação completamente desaforriada de encargos tanto para ajuizar qualquer ação – por infundada que seja –, quanto para recorrer, enquanto se constrange o acusado muitas vezes a pesados ônus para acessar a segunda instância (imaginem-se ações questionando programas de governo ou contratos públicos milionários) vilipendia o princípio da isonomia, da garantia dos direitos fundamentais, do devido processo legal (por constranger a ampla defesa e o direito ao segundo grau de jurisdição).
É o caso de confiar-se que o STF – com esperança que o faça o mais cedo – corrigirá esses desvios jurisprudenciais, preservando assim os aludidos princípios constitucionais e conceitos jurídico-processuais basilares.
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*Advogado-sócio do escritório Manesco, Ramires, Perez, Azevedo Marques, Advocacia
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