Uma grande noite no IDDD: o Projeto LIVREria
Roberto Soares Garcia*
Pois bem. Imagine-se um dia chuvoso, uma tragédia violenta havida e um José que foi o responsável por ela. Acabou taxado de animal pela imprensa, o que se repetiu, à farta, nas mesas de jantar das famílias de bem e também nas rodas de bar. Caído nas engrenagens do processo criminal e em prisão cautelar, o agora josé vê-se tratado como besta, sem direito a respeito a seus direitos. Afinal, ele, que praticou ato tão vil, "não é gente" e merece como animal ser tido. Condenado, encarcerado em condições subumanas, josé passa a crer que é mesmo algo menos que humano, um bicho. Quando sai dos ferros – porque, não havendo, felizmente, por mandamento imutável constitucional, entre nós prisão perpétua ou pena de morte, os josés sempre saem –, não há porque agir como gente: foram anos a fio vivendo como fera, sendo tratado como besta e agindo, para sobreviver aos rigores da jaula, como animal. E, como se fosse Fado, ele pratica um novo ato tenebroso. E começa tudo de novo.
Se me fosse dado explicar a leigos, em minha opinião, qual seria uma das principais atribuições do IDDD, diria que ser ela, na medida de nossas parcas forças, colaborar pela luta em favor da efetividade dos direitos de defesa de todos e do respeito a garantias fundamentais, dentre elas – e, aqui, principalmente – o direito à dignidade da pessoa humana, para o desfazimento desse círculo vicioso de "zootransformação" do indivíduo que caiu nas engrenagens do sistema repressivo do Estado.
Daí que o Projeto LIVREria trata de garantir que o josé que entrou na cadeia, estigmatizado, tenha uma pequena chance a mais de sair José. Da leitura, das informações colhidas, das sensações causadas pelas palavras encadeadas com arte e dos momentos de recolhimento proporcionados pelo livro – ainda que aquele que lê busque tão-só um passatempo –, o indivíduo humaniza-se, afastando-se um pouquinho do bicho que viola e que maltrata seu semelhante.
Sem que se tenha nenhum tipo de engano sobre o alcance possível do Projeto – já que o IDDD não descura da ciência de seu real tamanho –, tem-se a certeza de que se colabora com a construção uma sociedade melhor. Ao preso e àquele que assume a tarefa de, em nome do Estado, manter a ordem na prisão, o livro pode trazer a esperança de dias melhores.
Assim inspirados, depois de entrar em contato com diversas unidades prisionais, consultando-as sobre o interesse em receber os livros arrecadados, e de estar com o Juiz de Corregedor do DECRIM, a Diretoria do IDDD resolveu ousar, escolhendo para receber essa primeira doação a Penitenciária "Maurício Henrique Guimarães Pereira" (Venceslau II), onde estão presos alguns josés considerados muito perigosos, tachados de animais e de bestas-feras – e, vendo o noticiário, percebe-se que, muitas vezes, alguns deles fazem jus à fama –, com o objetivo de, pela oferta de acesso à leitura, tentar reverter a "zootransformação". É para lá que vão os primeiros livros, que, na noite do dia 26, tomavam nossas mesas e chão, no IDDD.
E, como se percebe, voltei para o evento do dia 26. Já era mesmo tempo de falar um pouco mais dele. Havia muitos jovens advogados, outros, como este cronista, não mais tão jovens, e um Grande na defesa das garantias constitucionais do cidadão, o dr. Ranulfo de Mello Freire, que, nos anos Oitenta, fez, junto com outros grandes nomes da Magistratura paulista, mítica a C. 5ª Câmara do Tribunal de Alçada Criminal. Diante da notícia de que diversas instituições prisionais consultadas haviam se negado a receber nossas doações, lembrou o Mestre que os autoritários não gostam nada de livros (a Alemanha nazista e a China da Revolução Cultural, para pegarmos os dois lados da moeda das tiranias, gostavam das brochuras em cinzas...). Foi mais um raio de luz ofertado pelo dr. Ranulfo. Essa lição, junto ao entusiasmo de todos, deu o tom da noite e basta para sumariá-la.
Resta dizer que, no dia 27 de maio p.p., começou a segunda fase do LIVREria. Quem fez a gentileza de me aturar até aqui e quer entrar na luta pela diminuição da eficiência da fábrica estatal de bichos-homem, pode encaminhar os livros que atulham suas prateleiras para nossa sede (Avenida Liberdade, 65, cj.1101, Centro, São Paulo, tel. 11 3107-1399, clique aqui). Meus filhos, um lindo casalzinho de 11 e 8 anos, e meus futuros netos agradecem!
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*Advogado criminal, diretor vice presidente do IDDD - Instituto de Defesa do Direito de Defesa
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