Não se aplica o CDC na relação entre cliente e advogado
Kelly Cristina Salgarelli*
Para que exista relação de consumo, é necessária a figura do fornecedor, consumidor e do produto ou serviço prestado. Um dos requisitos para configuração da relação de consumo é a existência de mercantilismo, prática da mercancia, comércio. O produto ou serviço devem estar disponíveis no mercado.
Com efeito, o mercantilismo é ausente nas atividades profissionais do advogado. Ademais, esta constitui um múnus público regulado por lei especial.
De acordo com o ordenamento jurídico pátrio, existindo lei genérica e lei especial regulando o mesmo objeto, aplicar-se-á a lei especial, por ser a mais adequada ao caso in concreto.
Nesta seara, o exercício da advocacia é claramente regulado pela lei 8.906/94 (clique aqui), que disciplina todo e qualquer procedimento, postura ético-profissional, assim como sanções ao inadequado exercício da profissão.
Ademais, como múnus público, o exercício da advocacia não é e nem deve ser considerado serviço mercantil, pois qualquer traço de mercantilismo é incompatível com a profissão do advogado, que se o exercer, poderá se submeter a punições inerentes à categoria.
Nesse sentido, foi levada uma consulta ao exame do Conselho Federal da Ordem dos Advogados por meio da Consulta 1/04, apreciada pelo Órgão Especial, tendo como relatora a ilustre conselheira federal Gisela Gondim Ramos.
No processo referido, indagava a consulente acerca da possibilidade de inversão do ônus da prova em ação de responsabilidade civil movida contra advogado. A conclusão alcançada foi a de que o CDC não se aplica às relações jurídicas havidas entre os advogados e seus clientes.
Vale salientar que pressuposto essencial para a incidência das normas do CDC é a existência de uma relação de consumo. Nesse ponto, o voto da conselheira federal da OAB Gisela Gondim Ramos foi claro ao afirmar que:
"entre advogado e cliente, não se estabelece uma relação de consumo, seja porque a advocacia constitui-se um múnus público, disciplinada por lei especial, seja porque, em última análise, não encontramos nela os elementos subjetivos e objetivos capazes de inseri-la no mercado de consumo".
Ora, sendo o Estatuto da Advocacia e da OAB uma lei especial, editada em data posterior ao CDC — que é uma lei geral — é de se concluir que as normas consumeristas se mostram incompatíveis com o Estatuto da Advocacia.
As normas do CDC, como afirmou a conselheira federal Gisela Gondim, "não têm eficácia no que diz respeito às relações jurídicas estabelecidas entre os advogados e seus clientes", prevalecendo as normas do último diploma legal referido (Estatuto da OAB) sobre as do primeiro (CDC).
Como se não o bastasse, a lei 8.078/90 (clique aqui) foi editada para tornar efetiva a norma do artigo 170, inciso V, da CF (clique aqui) que estabelece a proteção do consumidor como um dos princípios nos quais se funda a ordem econômica nacional.
O CDC objetiva a evitar desequilíbrio entre as relações jurídicas, já que uma das partes — fornecedor — tem manifesta vantagem econômica e técnica em relação ao consumidor — hipossuficiente e parte fragilizada na relação.
É notório que a sociedade de consumo atual é marcada pelos contratos massificados, nos quais o consumidor e o fornecedor perdem a identidade. Contudo, isso não acontece nas relações entre cliente e advogado.
Esta relação é marcada pela confiança que o primeiro deposita no último. A advocacia é avessa à mercantilização. Logo, é impossível pretender se aplicar a essa atividade o CDC, diploma legal que tem a existência do mercantilismo como pressuposto.
É semelhante o entendimento do STJ sobre a matéria. Em valioso precedente, ao apreciar o Resp 532.377/RJ 5 (clique aqui), reconheceu que:
"não há relação de consumo nos serviços prestados por advogados, seja por incidência de norma específica, no caso a lei 8.906/94, seja por não ser atividade fornecida no mercado de consumo".
No julgamento referido, o relator, ministro César Asfor Rocha, foi claro ao afirmar que "ainda que o exercício da nobre profissão de advogado possa importar, eventualmente e em certo aspecto, espécie do gênero prestação de serviço, é ele regido por norma especial, que regula a relação entre cliente e advogado, além de dispor sobre os respectivos honorários, afastando a incidência de norma geral".
Assinalou o relator que:
"os serviços advocatícios não estão abrangidos pelo disposto no artigo 3°, parágrafo 2°, do CDC, mesmo porque não se trata de atividade fornecida no mercado de consumo. As prerrogativas e obrigações impostas aos advogados — como, v. g., a necessidade de manter sua independência em qualquer circunstância e a vedação à captação de causas ou à utilização de agenciador (artigos 31, parágrafo 1°, e 34, III e IV, da lei 8.906/94) — evidenciam natureza incompatível com a atividade de consumo".
Questões parecidas têm sido trazidas à baila em consultas ao Tribunal de Ética e Disciplina da OAB, cujo entendimento é uníssono, senão vejamos:
"467ª Sessão de 17 de junho de 2004
Insatisfação de conveniado deduzida perante órgão de defesa do consumidor — posição doutrinária e jurisprudencial em favor da inexistência de relação de consumo nos serviços prestados por advogados — incompetência da Ordem dos Advogados do Brasil — dirimência pelo Poder Judiciário ao arbítrio do interessado.
Precedentes: processos E-1.787/98, E-2.151/00 e E-2.415/01. Demais providências a serem tomadas como consta do voto.
Ementa 2 - Proc. E-2.962/04 - v.u., em 17/06/2004, do parecer e ementa do Rel. Dr. Benedito Édison Trama – Revs. Drs. Cláudio Felippe Zalaf, Fábio Kalil Vilela Leite e Luiz Francisco Torquato Avólio – Presidente Dr. João Teixeira Grande."
Ao final, concluímos que, considerando a natureza peculiar da prestação de serviços de profissional liberal, a relação entre o advogado e seu cliente não abarca qualquer relação de consumo que possa ser regida pela lei 8.078/90, motivo pelo qual deve ser analisado à luz do disposto na lei 8.906/94 (Estatuto da Advocacia e da Ordem dos Advogados do Brasil).
_________________
*Sócia do Ardanáz e Salgarelli Advogados Associados