Financiamento dos serviços de limpeza urbana: campo adequado para as Parcerias Público-Privadas
Cesar A. Guimarães Pereira*
I – EXPOSIÇÃO DO PROBLEMA
O exame deve partir de duas premissas fundamentais: os mecanismos de financiamento (a) devem ser aptos a tornar economicamente possível a efetiva realização dos serviços e (b) devem tomar em conta a multiplicidade de valores envolvidos na realização das atividades de limpeza urbana.
As finalidades nucleares da “gestão” do lixo são a redução de sua geração e, em relação ao lixo que for impossível evitar, o tratamento dos resíduos de modo que se evite o mero depósito no solo. A configuração da gestão e de seus instrumentos de financiamento deve levar em consideração esses objetivos. Deve incentivar a redução de geração e proporcionar o reaproveitamento do lixo.
Isso implica, de certo modo, buscar objetivos contraditórios: a reciclagem, compostagem, aproveitamento energético são relevantes mesmo se economicamente deficitários. Os serviços de limpeza urbana, por essa e outras características, estão no campo próprio para o desenvolvimento das parcerias público-privadas – caracterizadas doutrinariamente1 e no projeto federal em tramitação no Congresso Nacional2 como adequadas para as situações em que o retorno social de um certo empreendimento de interesse público é positivo embora seu retorno privado seja negativo ou duvidoso.
Os instrumentos de financiamento têm uma função de educação ambiental. Devem ser estabelecidos de modo a demonstrar que a produção de lixo tem um custo para a coletividade e que o responsável direto por esse custo é aquele que gera o lixo.
A noção de “geração” de lixo deve ser tomada de modo amplo. A produção de lixo é disseminada na cadeia econômica, não é concentrada na sua última etapa. Não é razoável supor que o consumidor final seja o único responsável pela produção do lixo. Há um limite para que o consumidor adote a escolha ambientalmente mais adequada (a que gera menos lixo), e esse limite é dado pelo fornecedor: pode não haver opções menos danosas pela ausência de alternativas ou pela disparidade de preço entre as alternativas com maior ou menor produção de lixo. Portanto, a responsabilidade pelos efeitos negativos da produção de lixo deve ser igualmente disseminada por toda a cadeia econômica. Isso implica a necessidade de adoção de medidas materiais e econômicas – inclusive ligadas à configuração dos instrumentos de financiamento do serviço – dirigidas a todas as etapas relevantes da cadeia.
Estes comentários oscilam entre esses dois aspectos fundamentais. Por um lado, a identificação de instrumentos que possibilitem enfrentar as dificuldades de financiamento das atividades de limpeza urbana. Por outro, a verificação da idoneidade desses instrumentos para a realização das demais finalidades relacionadas com a gestão do lixo.
Para esse fim, serão examinados quatro pontos centrais: (a) serviços em regime público e regime privado, (b) gestão por consórcio intermunicipal, (c) a fixação de taxas ou tarifas segundo o consumo efetivo e (d) o financiamento público do concessionário.
II – AS FORMAS DE GESTÃO DOS SERVIÇOS DE LIMPEZA URBANA
Um primeiro corte a ser feito refere-se à extensão dos serviços de limpeza urbana objeto destas cogitações.
Podem-se imaginar conceitos amplos ou restritos de limpeza urbana. Restritivamente, poder-se-ia aludir apenas à coleta de lixo doméstico. De modo amplo, poder-se-ia pretender incluir a coleta, transporte e destinação final de toda e qualquer espécie de resíduos, inclusive os de saúde, industriais ou mesmo perigosos. Seria possível até mesmo pretender unificar o conceito de saneamento básico, pretendendo submeter a um só regime a gestão do lixo e os serviços ligados a água e esgoto.
O objeto principal desta análise são os resíduos sólidos domiciliares e comerciais e o chamado “lixo público” (resultante de varrição de logradouros públicos, p. ex.), em seus aspectos de coleta, transporte e destinação final. As referências a outras espécies de resíduos são meramente pontuais.
A administração dos serviços de limpeza urbana é usualmente cometida aos municípios, que os prestam de modo direto – ou seja, mediante a utilização de sua estrutura própria ou com a contratação de um terceiro para a sua execução. Há casos de prestação dos serviços por departamentos (Administração direta) ou autarquias, empresas públicas ou sociedades de economia mista (Administração indireta). Em ambos os casos, os serviços podem ser desenvolvidos por funcionários ou por terceiro contratado, segundo o regime de contratação da prestação de serviços, especificamente para esse fim.
Em número crescente de municípios, adota-se regime de execução indireta (concessão de serviço público). Nesse caso, contrata-se terceiro por prazo longo para que explore os serviços “por sua conta e risco”, submetido à regulação e à fiscalização de órgão (departamento ou autarquia) do município concedente.
Há, ainda, variações sobre esses esquemas básicos. Há situações em que se combinam os dois sistemas. Adota-se a execução direta para algumas etapas da gestão e a execução indireta para outras. P. ex., há municípios em que se submete ao regime de concessão apenas a destinação final ou se exclui desse regime a coleta e destinação final de “lixo público”, que continua sendo objeto de execução direta.
E há, ainda, situações em que as premissas do sistema são outras. A pergunta que se faz é: os serviços de limpeza urbana são sempre “serviço público”? Há inegavelmente uma competência constitucional dos municípios para prestar esses serviços e uma competência comum e concorrente de todos os entes políticos para atuação nesta área. Mas isso não esgota todas as atividades relacionadas com este setor. É possível fazer uma separação entre o núcleo efetivo dos “serviços públicos” de limpeza urbana e o que é passível de exploração em regime de competição. Esse último conjunto de atividades passa a se submeter a um regime “privado” (ou semi-privado) de prestação, com intensa regulação municipal, mas concebido de modo desvinculado da estrutura pública. P. ex., o município de São Paulo editou lei (Lei nº 13.478/2002) criando serviços de limpeza urbana prestados em regime público e em regime privado.
O raciocínio é o de complementaridade entre a atuação do Poder Público e do setor privado – que desenvolve, neste caso, atividade privada de interesse coletivo, mas não serviço público.
III – GESTÃO ISOLADA OU GESTÃO ASSOCIADA
Os serviços de limpeza urbana são tipicamente vocacionados para administração conjunta por vários municípios. As razões são várias: (a) economia de escala, (b) impossibilidade técnica de destinação final na área geográfica de um dado município, (c) inconveniência da multiplicação de aterros, (d) racionalização dos custos com infra-estrutura.
Isso não nega a competência municipal – não há, só por isso, competência estadual –, mas envolve mecanismos associativos. As regiões metropolitanas e os agrupamentos urbanos (art. 25, § 3o, da CF) podem, se constituídos formalmente, participar da gestão. Também se pode cogitar de instrumentos de associação entre municípios, como os consórcios. Esse é um mecanismo amplamente utilizado no direito comparado. P. ex., na Espanha, em 1994, havia 415 consórcios para coleta de lixo e 399 consórcios para destinação final.3
No Brasil, há (entre vários outros) o caso de Curitiba. Existe um Consórcio Intermunicipal criado por municípios da região metropolitana, com base em autorização legislativa específica de cada município e nos termos de uma lei complementar estadual. O Consórcio tem competência para gerir os serviços de modo direto ou mediante concessão. Foi iniciada licitação para a contratação de empresa privada em regime de concessão, tendo o Consórcio como poder concedente. A licitação acabou não sendo concluída por razões alheias à gestão associada e o serviço continua a ser prestado pelos municípios isoladamente.
A gestão mediante consórcio envolve diversas dificuldades: (a) posição do Poder Concedente (autarquia intermunicipal? autarquia do município líder? “associação privada”, como em Curitiba?), (b) critério de decisão (intervenção? encampação?), (c) responsabilidade patrimonial do Poder Público, inclusive pela equação econômico-financeira, (d) definição de tarifas (quem decide? em relação a que âmbito territorial? pode haver tarifas distintas por município?), (e) reversão de bens, (f) compensação por danos ambientais específicos para cada município.
Apesar das dificuldades, o consórcio intermunicipal é um instrumento necessário, que deve ser desenvolvido. Deve-se dar efetividade aos arts. 23, parágrafo único, e 241 da Constituição, segundo o qual “A União, os Estados, o Distrito Federal e os Municípios disciplinarão por meio de lei os consórcios públicos e os convênios de cooperação entre os entes federados, autorizando a gestão associada de serviços públicos, bem como a transferência total ou parcial de encargos, serviços, pessoal e bens essenciais à continuidade dos serviços transferidos”.4
IV – PREMISSAS RELACIONADAS COM O FINANCIAMENTO DOS SERVIÇOS
A determinação da sustentabilidade financeira deve considerar uma condição fundamental: os serviços de limpeza urbana são essenciais à dignidade humana e à preservação da saúde, pelo que (a) não podem, em princípio, ser objeto de corte ou suspensão por inadimplemento do usuário e (b) devem ser disseminados de modo universal.
A definição dos mecanismos de custeio desses serviços deve levar em conta essa realidade. No direito comparado, isso conduz ou à execução direta dos serviços ou ao financiamento parcialmente público dos concessionários desses serviços. Cite-se como exemplo caso julgado pelo Conselho de Estado francês em 1999, envolvendo uma concessão de serviços de coleta e destinação de lixo, em que 70% da receita do concessionário derivavam de pagamentos diretos da Administração. Como se apontou, esse é precisamente o campo das PPPs, conforme se extrai do projeto federal em tramitação no Congresso.
A sustentabilidade econômica dos serviços envolve uma composição de fontes de custeio: taxas ou tarifas, receitas gerais ou subsídios públicos e receitas alternativas e complementares (ou preços públicos).
Mas há outro aspecto a ser considerado. A estipulação da remuneração do prestador deve levar em conta mecanismos de PAYT (Pay-As-You-Throw), pelos quais o usuário (o “gerador final” do lixo) percebe a vinculação entre o lixo produzido e o montante da remuneração devida ao prestador do serviço. No direito comparado, conhecem-se diversos mecanismos para esse fim: (a) sacos de lixo padronizados, vendidos ou autorizados pela municipalidade, (b) contêineres padronizados, disponibilizados dessa mesma forma, (c) adesivos (selos) vendidos para afixação nos sacos de lixo. Naturalmente, esses mecanismos devem ser adaptados às condições culturais e econômicas de cada comunidade. No Brasil, conhece-se o instrumento adotado pela lei paulistana, de faixas de consumo objeto de declaração própria e fiscalização pela Administração.
As vantagens pretendidas pelo PAYT são várias: (a) isonomia, (b) poluidor-pagador ou usuário-pagador, (c) efeito de redução na geração de lixo, (d) educação ambiental. Embora o sistema tenha larga aplicação nos Estados Unidos, sofre críticas segundo as quais a pequena redução de preço não levaria a uma mudança efetiva de comportamento do usuário e não produziria redução de geração. O fato é que, embora a redução de preços seja pequena, há diminuição efetiva de geração, segundo dados da agência de proteção ambiental dos Estados Unidos.5 De certo modo, isso deriva do caráter multiplicador resultante do comprometimento individual que a educação ambiental provoca. A diretriz de redução da geração de lixo é cumprida não somente em face de uma decisão econômica racional do indivíduo, mas também da internalização do compromisso com o ambiente limpo.
Nesse sentido, o mecanismo de PAYT tem um caráter de educação ambiental: leva à percepção do custo efetivo da produção de lixo, ao incentivo à reciclagem e ao ecoshopping. São evidentes as dificuldades para a sua implantação no Brasil – onde, p. ex., apenas 29% do lixo coletado recebe algum tratamento e grande parte do lixo não é sequer recolhida ou, se coletada, é depositada de modo irregular. Além disso, os mecanismos de extrafiscalidade6 – de comportamento induzido pela modulação do custo associado a um certo interesse – são adequados apenas para as situações em que se está fora da faixa mínima de realização desse interesse.
O tema da extrafiscalidade lembra uma distinção relevante entre consumidor e usuário de serviço público apontada por CRISTIANE DERANI. A doutrinadora indica que “Consumidor é aquele que vai ao mercado procurar, segundo uma relação de oferta e preço, os bens de que precisa. O usuário não escolhe pela relação existente de oferta de bens e respectivo preço a mercadoria mais apta ao seu desejo e poder aquisitivo. O usuário é aquele que constantemente faz uso de uma quantidade de determinada mercadoria para sua existência social, uso que independe do preço, da oferta e da escassez de mercado”.7 Essa premissa compromete a possibilidade de tarifas extrafiscais, destinadas a determinar comportamentos do usuário – ao menos no que se refere a serviços de peculiar essencialidade. Em sentido similar, STEPHEN HOLMES e CASS R. SUNSTEIN (tratando do acesso à tutela jurisdicional) afirmam que “a imposição de custos individuais – na forma, por exemplo, de preços para o usuário – é a forma padronizada de conservação de recursos escassos, como o acesso a uma instituição que resolve conflitos. Mas técnicas de triagem que imponham custos individuais evitam apenas que os pobres, não os ricos, interponham recursos temerários”.8
No Brasil, grande parte da população nem mesmo teria condições econômicas de suportar qualquer custo adicional para a remuneração do serviço de limpeza urbana, o que a tornaria alijada de qualquer processo de redução de geração ou de educação ambiental por essa via. Porém, não se pode ignorar que a complexidade da população brasileira exige que todos os seus segmentos sejam objeto de consideração, o que implica adotar mecanismos de universalização do serviço para as camadas mais pobres e, ao mesmo tempo, de responsabilização individual dos integrantes das camadas mais abastadas. Também é relevante perceber que o desenvolvimento de tais mecanismos de responsabilização individual e de educação ambiental produz uma cultura ambiental que se estenderá a todas as camadas da população – especialmente depois de superadas, algum dia, as disparidades sociais mais intensas por instrumentos de inclusão. Por fim, e o que talvez seja o ponto mais relevante, os mecanismos de PAYT devem atingir principalmente os grandes geradores de lixo. Embora esses sejam mais imunes ao efeito de educação ambiental, são mais suscetíveis à indução de escolhas economicamente racionais. A vinculação do custo à geração do lixo é apta a promover a adoção de alternativas mais apropriadas sob o ponto de vista ambiental, como o consumo de produtos com menor potencial de geração de lixo ou mais facilmente recicláveis.
Não se pode ignorar a necessidade de atingir os demais integrantes da cadeia econômica. Os instrumentos de tributação ambiental – como, p. ex., uma CIDE sobre indústrias de embalagens especialmente danosas ao meio ambiente – podem ser adequados para esse fim. O Poder Público pode tanto (a) se ocupar de atingir a ponta final (o consumidor ou o “gerador” do lixo) e aguardar que as escolhas econômicas deste (p. ex., preferindo supermercados que utilizem sacos de papel em lugar de sacos plásticos) reflitam-se sobre os produtores quanto (b) adotar instrumentos dirigidos já aos produtores (p. ex., estabelecendo alíquotas diferenciadas de IPI e ICMS para uma e outra espécie de embalagem). O ideal é a adoção concomitante e concertada de ambas as alternativas.
V – O FINANCIAMENTO DOS SERVIÇOS NA EXECUÇÃO DIRETA
No caso de execução direta dos serviços públicos de limpeza urbana, ou seja, na situação em que o serviço é prestado pela própria Administração direta ou por algum ente da Administração indireta, discute-se a possibilidade de o serviço ser objeto de taxa. A jurisprudência do Supremo Tribunal Federal9 tem-se consolidado nos seguintes pontos: (a) invalidade de fixação da taxa com referência à base de cálculo do IPTU, (b) invalidade da exigência de taxa por serviços relativos ao “lixo público” (varrição de ruas etc.), (c) validade de taxa vinculada estritamente à coleta e destinação final de lixo doméstico, (d) validade da utilização da metragem do imóvel como “alíquota” da taxa.
Ainda segundo a orientação do STF, o serviço de limpeza de logradouros públicos tem caráter universal e indivisível (é uti universi)10, o que tornaria impossível a instituição de taxa.
Essa orientação não impede que se adotem outros critérios para a estipulação de taxas – ou mesmo de tarifas, vinculadas a serviços prestados mediante concessão – com base em critérios estatísticos, como faixas de consumo. Nesse sentido, o caso da lei paulistana é paradigmático e bem concebido. Adota-se um instrumento de declaração do contribuinte acerca da sua faixa de consumo, sendo essa declaração passível de fiscalização. É um modo de se empregar um critério de PAYT compatível com a complexidade da realidade brasileira.
VI – O FINANCIAMENTO DOS SERVIÇOS NA EXECUÇÃO INDIRETA
Ainda hoje se adota, apesar de uma grande oscilação doutrinária, a distinção entre taxas e tarifas consagrada pela Súmula nº 545 do STF e que se baseia na noção de compulsoriedade na fruição. Essa é, p. ex., a posição defendida por MARÇAL JUSTEN FILHO, para o qual os serviços de fruição compulsória, como os de limpeza urbana, não podem ensejar a instituição de tarifas.11
Discordamos dessa orientação. Conforme estudos que publicamos em 199912 e 200013, reputamos que o critério para a distinção entre taxas (tributo) e tarifas (preço administrativo) baseia-se em dois pontos: (a) na existência de delegação do serviço, o que faz incidir a tutela constitucional da equação econômico-financeira da concessão, inconciliável com o regime tributário (mesmo que se considere o regime da PPP, baseado na premissa de remuneração paga ou garantida total ou integralmente pelo Poder Público), e (b) na circunstância de que a tarifa, mesmo nos casos de serviços de fruição obrigatória, não é objeto de um dever ex lege (como seria se de taxa se tratasse) mas deriva do contrato de concessão – que os usuários, por meio da Sociedade, integram como parte.
Por isso e pelas peculiaridades do direito tributário, a construção jurisprudencial acerca das taxas de limpeza urbana não se aplica necessariamente às tarifas vinculadas a esses serviços quando concedidos. As taxas devem ser instituídas em face de serviços específicos e divisíveis por força do art. 145, II, da Constituição. Mas essa premissa não se aplica às tarifas, que podem ser estipuladas à luz de critérios mais flexíveis.
Assim, não é impossível cogitar-se de tarifas vinculadas à varrição de logradouros públicos, desde que se possa razoavelmente identificar (ainda que por meio de presunções legítimas) um critério de vinculação entre esses serviços e um usuário. Essa afirmação parte do pressuposto de que, nesses casos, haverá também um serviço uti singuli.14 Afinal, a conclusão (que hoje prevalece no STF) de que os serviços prestados em locais públicos são sempre gerais, difusos, uti universi, não específicos e indivisíveis pode ser superada pelo estado da técnica e pela configuração jurídica dos serviços e da responsabilidade atribuída a cada indivíduo.15 Ademais, é construída especificamente sobre premissas e para fins de direito tributário. Não é uma conclusão geral, que impeça a configuração de uma concessão de serviços de limpeza urbana – ainda que incluindo serviços desenvolvidos em logradouros públicos – mediante a cobrança de tarifa em termos juridicamente admissíveis.
Uma parcela dessas questões passa a ter relevância menor em face da configuração que hoje se pretende dar às PPPs. As grandes dificuldades da concessão de serviços de limpeza urbana podem ser superadas com a adoção de uma concessão subvencionada – em que o Poder Público custeará parte da manutenção do serviço – ou de uma concessão administrativa, tendo a municipalidade como “usuária intermediária” (ou “indireta”, nos termos do projeto federal) dos serviços. Essa solução já vem sendo tentada, mesmo sem a existência de lei específica.16 Porém, não se pode ignorar a relevância, tanto em termos econômicos como de consciência ambiental, das tarifas de limpeza urbana. A adoção de um mecanismo de PPP não pode levar à supressão das tarifas, em especial no que se refere aos grandes geradores e aos indivíduos passíveis de indução a comportamentos ambientalmente mais favoráveis. Caso contrário, haveria frustração dos princípios da isonomia – toda a sociedade pagaria pelo uso especial do serviço por determinados usuários – e da proteção ambiental (art. 225 da Constituição).
Convém destacar que o Superior Tribunal de Justiça vem consolidando sua posição favorável à estipulação de tarifas mínimas. Há precedentes sobre o tema desde 1996, nas áreas de água e esgoto.17 Afirma-se a possibilidade de cobrança de tarifa mesmo antes de o sistema estar integralmente concluído, tendo em vista a equação econômico-financeira, e a possibilidade de tarifa mínima, independente do consumo efetivo, para custeio da disponibilidade permanente do sistema.
VII – CONCLUSÃO: PERSPECTIVAS E RISCOS DAS PPP
As possibilidades de evolução das concessões de limpeza urbana são muito amplas com a perspectiva de edição da lei federal que disciplinará as novas modalidades de concessão (rotuladas de PPP). Ambas as novas modalidades já vinham sendo objeto de experiências práticas, com a outorga de subvenções públicas aos concessionários (o que sempre se admitiu) e com a estipulação de sistemas “uni-usuário”, em que a municipalidade representaria a população do município como usuária intermediária do serviço (o que grande parte da doutrina rejeitava por reputá-la uma frustração do regime legal de prestação de serviços segundo a Lei nº 8.666/93). Como a objeção a esse sistema “uni-usuário” é de natureza legal, não constitucional (burla às regras da Lei nº 8.666/93 sobre prestação de serviços), deve-se solucionar com a edição da lei de PPP, que o prevê de modo expresso. As dúvidas persistirão no que se refere às hipóteses de cabimento da PPP – a fim de evitar que esse regime seja aplicado em situações incompatíveis com o objetivo da sua criação – e quanto à compatibilidade entre um sistema “uni-usuário” e as determinantes da Constituição acerca da isonomia (repartição eqüitativa dos encargos públicos) e da proteção ambiental.
Mesmo em um regime de PPP, devem-se buscar instrumentos de valorização da responsabilidade individual. Afirmar que o usuário é cidadão, não mero consumidor, não tem apenas o significado de que lhe cabe a proteção própria da cidadania. Cabe-lhe também o exercício efetivo de sua capacidade de participação, que se inicia pela assunção individual de responsabilidade, pela superação de instrumentos de tutela estatal. O usuário não deve ser um tutelado do Estado, mas deve comprometer-se com o desenvolvimento coletivo.
Embora possa apresentar vantagens em termos de financiabilidade, um sistema “uni-usuário” puro pode reforçar essa tutela estatal do usuário, em lugar de favorecer sua superação. A configuração dos serviços públicos em geral – e, em particular, dos serviços de limpeza urbana, por sua capilaridade e pelo necessário envolvimento individual do usuário em sua realização – deve incentivar o envolvimento da sociedade como um todo, seja na condição de concessionário, seja na de prestador de serviços em regime privado, seja ainda como usuário ou beneficiário, responsável por participação material e pelo custeio (ao menos parcial) do serviço. Como afirma MATT RIDLEY, “As raízes da ordem social estão em nossa cabeça, onde possuímos a capacidade instintiva de criar não uma sociedade perfeitamente harmoniosa e virtuosa, mas uma sociedade melhor do que a que temos. Precisamos construir nossas instituições de modo que elas se alimentem desses instintos. Isso quer dizer, principalmente, estimular a troca entre iguais. Assim como o comércio entre os países é a melhor receita para a amizade, a troca entre indivíduos dotados de amplos direitos civis e políticos é a melhor receita para a cooperação. Precisamos encorajar a troca social e material entre iguais, pois esta é a matéria-prima da confiança e a confiança é o alicerce da virtude”.18
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1 Cfr., p. ex., MANSUETO F. ALMEIDA JUNIOR e SAMUEL DE ABREU PESSÔA, Parceria Público-Privada – Princípios básicos que devem nortear a nova legislação. Estudo realizado pela assessoria econômica do gabinete do Senador Tasso Jereissati, junho de 2004 (atual. 14.9.2004), pp. 6/7, e JORGE ANTONIO BOZOTI PASIN e LUIZ FERREIRA XAVIER BORGES, A nova definição de parceria público-privada e sua aplicabilidade na gestão de infra-estrutura pública, Revista do BNDES, v. 10, nº 20, dezembro de 2003, pp. 181 e 184. Estes últimos destacam que, se a PPP não for reservada apenas para os casos em que não se puder transferir o risco comercial para o parceiro privado (ou seja, para as situações de retorno privado negativo), “a PPP não será uma alternativa, mas a única opção aceitável pelas empreiteiras do setor privado, que só consentirão em participar de concessões sem risco de mercado. Foi assim em outros lugares do mundo e não será diferente no Brasil”.
2 O projeto federal (PLC nº 10 (Substitutivo), de 2004) prevê que a concessão comum não será objeto de PPP, o que significa que não contará com as garantias próprias desse modelo. Prevê que a PPP será veiculada por meio de concessão subvencionada (em que há um pagamento pelo Poder Público adicionalmente à tarifa) ou concessão administrativa (em que a Administração paga integralmente a remuneração do parceiro privado, na condição de usuária direta ou indireta) – art. 2º. Como a licitação para a PPP pressupõe uma autorização superior que identifique “as razões que justifiquem a opção pela forma de parceria público-privada” (art. 10, I, “a”), conclui-se que somente os casos em que seja indispensável esse aporte financeiro total ou parcial pelo Poder Público – consideradas ainda outras circunstâncias, como a ordem de prioridades de alocação de recursos mesmo entre os casos enquadrados nessa premissa – podem ser submetidos ao regime de PPP.
3 JOSÉ FRANCISCO ALENZA GARCÍA, El sistema de la gestión de residuos sólidos urbanos en el derecho español, MAP, 1997, p. 570.
4 Atualmente, há projeto de lei em tramitação no Congresso Nacional (PL nº 3.884, de 2004), que consolida os anteriores e foi apresentado em junho de 2004 com urgência constitucional, pretendendo dar ao consórcio público do art. 241 da Constituição o caráter de associação, com personalidade jurídica de direito público, integrante da Administração e equiparada à autarquia. O projeto é criticado por MIGUEL REALE (https://www.miguelreale.com.br/parecer.htm, acesso em 14/11/2004) e por RACHEL FAHRI (https://www.ibam.org.br/publique/media/AprRachel.pdf, acesso em 14/11/2004). Sobre a posição do governo federal acerca do projeto, cfr. a exposição de WLADIMIR ANTÓNIO RIBEIRO em https://www.ibam.org.br/publique/media/ApWlad.pdf, acesso em 14/11/2004.
5 A Environmental Protection Agency divulgou a esse respeito, entre outros, o estudo identificado como EPA530-F-97, de abril de 1997.
6 O termo é tomado em empréstimo do direito tributário, já que, rigorosamente, não há que se falar em fiscalidade relativamente a tarifas.
7 CRISTIANE DERANI, Privatização e serviços públicos, Max Limonad, 2002, pp. 76/77. A autora acrescenta que “Atividades que não se submetem à lei da preferência, mas ao imperativo de construção da dignidade da vida individual em sociedade, não podem ser reguladas pelo custo-benefício porque se posicionam como necessidade anterior a esta racionalização. São atividades dotadas de uma demanda praticamente inelástica ou responsáveis pela produção de bens que devem estar distribuídos na sociedade numa cota mínima necessária, abaixo da qual não entra a lógica da ‘disposição a pagar’, porque a aquisição destes bens está atada à lógica da mais pura necessidade para a manutenção e reprodução da vida (...) Parece que esta obviedade encontra-se esquecida, no auge das privatizações. Somente os países que asseguram uma renda individual que permite acessar estas mercadorias básicas, e somente os países que possuem uma distribuição da taxa de lucro no setor de mercado referido, capaz de controlar as inovações e o aumento do preço e ou a deterioração da mercadoria; estes países, após constituírem uma forte fiscalização antitruste, podem pensar em permitir o ingresso de tais serviços na esfera de mercado, no jogo das preferências individuais”.
8 STEPHEN HOLMES e CASS R. SUNSTEIN, The cost of rights, NY, Norton & Company, 1999, p. 201. MARK KELMAN levanta outro ponto interessante. Afirma que, nas situações em que o usuário é o único beneficiário do serviço governamental, a solução de aplicar uma tarifa não é problemática [o autor não considera o aspecto da oneração da classe mais pobre]. Porém, “em muitas situações em que o governo opta por utilizar tarifas individuais, terceiros também se beneficiam pelo uso. Se terceiros se beneficiam, é claro, a decisão do usuário de evitar a aquisição do serviço governamental pode ser privadamente racional mas socialmente indesejável: o fornecimento subsidiado teoricamente é preferível nesses casos. Porém, serão abundantes as dificuldades administrativas quando se tenta determinar a dimensão adequada do subsídio ou sopesar os perigos do consumo exagerado com o subsídio e o risco de consumo insuficiente sem o subsídio. O grau em que terceiros realmente se beneficiam, por exemplo, por ter compatriotas instruídos é aberto para questionamento tanto empírico quanto filosófico” (Strategy or principle? The choice between regulation and taxation, The University of Michigan Press, 1999, p. 84). Esse raciocínio é aplicável, p. ex., ao consumo de água tratada. Há um interesse público no seu consumo efetivo, já que é indesejável o consumo de água não tratada e fisicamente impossível a abstenção de consumo.
9 A orientação é retratada nos Recursos Extraordinários nº 229.976-0/SP, 232.393-1/SP, 241.790-0/SP, 249.070-9/RJ, 250.946/RJ e 357.395/MG, entre outros.
10 Destaque-se que CELSO ANTÔNIO BANDEIRA DE MELLO defende, em ponto com o qual concordamos, que os serviços públicos são sempre uti singuli, pelo que os chamados serviços uti universi são atividades gerais da Administração não submetidas ao conceito de serviço público (Curso de Direito Administrativo, Malheiros, 17ª ed., 2004, p. 624, nota 6). MARÇAL JUSTEN FILHO discorda dessa premissa, conforme exposto em Serviço Público no Direito Brasileiro, RDPE nº 7, p. 145 (“Varrer ruas é um serviço público, que não é fruível individualmente”).
11 Teoria Geral das Concessões de Serviço Público, Dialética, 2003, p. 348.
12 Concessão de serviços de limpeza urbana: pontos polêmicos, em RTDP nº 26, pp. 217/232.
13 Concessão de serviços de limpeza urbana, Interesse Público nº 6, pp. 84/106. Este estudo foi publicado em conjunto com MARÇAL JUSTEN FILHO, que posteriormente alterou seu entendimento nesse ponto.
14 Embora seja difícil aceitar essa afirmação quando se pensa em serviços de varrição de praças ou praias, p. ex., pode-se cogitar mais facilmente de uma vinculação a um usuário determinado quando se trata da varrição da via pública adjacente ao imóvel de propriedade do usuário. Nesse caso, o usuário será um “gerador presumido” e um “beneficiário presumido” do serviço.
15 Note-se, além disso, que toda a discussão acerca do caráter uti singuli ou uti universi dos serviços de limpeza urbana envolve alguma relatividade, pois em todos os seus aspectos ele envolve benefícios individuais e gerais. Discutindo o tema, ALENZA GARCÍA aponta que, considerando que produtores de lixo somos todos, “a relatividade da distinção seja ainda maior ao se ter que considerar serviço uti singuli um serviço como o de coleta de resíduos que é utilizado por todos os cidadãos e que beneficia a coletividade em seu conjunto” (ob. cit., p. 549).
16 O Município de Fortaleza editou lei (de nº 8.621/2002) com essa previsão.
17 Cfr. Recursos Especiais nº 20.741/DF, 95.920/RJ, 150.137/MG, 209.067/RJ, 214.758/RJ, 416.383/RJ e 431.121/SP, entre outros. No primeiro desses precedentes, relatado pelo Min. ARI PARGENDLER em 1996, a Corte frisou que “O preço público tem natureza diversa do preço privado, podendo servir para a implementação de políticas governamentais no âmbito social. Nesse regime, a tarifa mínima, a um tempo, favorece os usuários mais pobres, que podem consumir expressivo volume de água a preços menores, e garante a viabilidade econômico-financeira do sistema, pelo ingresso indiscriminado dessa receita prefixada, independentemente de o consumo ter, ou não, atingido o limite autorizado”.
18 MATT RIDLEY, As origens da virtude, Record, 2000, p. 298
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* Advogado do escritório Justen, Pereira, Oliveira & Talamini - Advogados Associados
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