Projeto de Reforma dos Crimes contra a Ordem Tributária: considerações críticas
O aludido Projeto objetiva, em síntese, duas mudanças. Num primeiro aspecto, traz a revogação do dispositivo legal que contempla o pagamento do tributo como um freio à imposição de pena criminal – causa de extinção da punibilidade (revoga o art. 34 da Lei 9.249/95). Seguindo o mesmo intento de expansão do sistema punitivo, pretende modificar a natureza dos delitos tributários, de crimes ditos “materiais” para “formais” (modifica a redação do art. 1º da Lei 8.137/90). A reboque destas modificações, em franca oposição ao recentíssimo entendimento esposado pelo Supremo Tribunal Federal, deixa livre o caminho da ação penal promovida pelo Ministério Público para a punição de crime tributário, tornando de uma vez por todas dispensável a conclusão de procedimento administrativo fiscal (revoga o art. 83 da Lei 9.430/96).
Com o intuito de maximizar a compreensão dos problemas que se apresentam, a análise das modificações será realizada em dois momentos distintos. Por ora, restrinjam-se as considerações apenas sobre a primeira modificação enunciada, referente à almejada revogação do tratamento extintivo da punibilidade conferido ao pagamento do tributo. Ficam, então, para uma segunda oportunidade, novas notas que abordarão os demais aspectos.
Importante ressaltar que a pretendida exclusão dos efeitos extintivos da punibilidade conferidos ao pagamento do tributo nos crimes contra a Ordem Tributária vem na ‘contramão da história’. A primeira lei a tratar, sob a ótica penal, da sonegação de tributos, foi a Lei 4.729, publicada no regime militar de Castelo Branco, em 1965, que nem por isto deixou de trazer o pagamento como causa extintiva da punibilidade, desde que efetuado antes do início da ação fiscal. Logo em 1967, o Dec-Lei 157 conferiu os mesmos efeitos ao pagamento realizado, desta vez estendendo a oportunidade até o momento seguinte ao julgamento administrativo de primeira instância. Em momento posterior, no projeto neoliberal do Governo Collor, marcado pela intensificação das respostas penais (Crimes Hediondos, Estatuto da Criança e do Adolescente, Código de Defesa do Consumidor...), a Lei 8.137/90 também não deixou de prever a extinção da punibilidade pelo pagamento, já neste diploma ampliando o benefício a todo pagamento efetuado até o recebimento da denúncia na ação penal. Embora tenhamos vivenciado um pequeno lapso na exclusão da punibilidade operado pela revogação do dispositivo despenalizador através da Lei 8.383, em 1991, o privilégio ao pagamento foi retomado em 1995, através do art. 34 da Lei 9.249, que ora se pretende, por esta Lei em Projeto, revogar.
Olvidou, no entanto, o legislador, que, no momento atual, a extinção da punibilidade pelo pagamento do tributo vem se fundamentando no § 2º do art. 9º, da Lei 10.684, de 2003. Este diploma normativo, ao dispor sobre o regime de parcelamento de débitos junto à Secretaria da Receita Federal, atribui efeitos extintivos da punibilidade ao pagamento integral do débito objeto do parcelamento, sem qualquer restrição temporal. Em recentíssima posição, o STF (HC 81929) tem reconhecido a extinção da punibilidade pelo pagamento, com ou sem parcelamento prévio, a qualquer tempo, em aplicação analógica da causa despenalizadora, inclusive com efeitos retroativos, por força do princípio constitucional da retroatividade da lei penal mais benéfica ao réu (Art. 5º, XL, da Constituição da República). Deste modo, a revogação do art. 34 da Lei 9.249/95, pretendida pelo Projeto em comento, não teria o condão de expurgar do ordenamento jurídico brasileiro os efeitos graciosos do pagamento do tributo nos crimes contra a Ordem Tributária.
Importante ressaltar, de qualquer modo, que sem a aludida causa extintiva de punibilidade, a pena emerge como conseqüência inexorável do ilícito. O tratamento ordinário conferido à restituição do status quo ante, no Direito Penal, é de mera minorante, com a figura do arrependimento posterior (art. 16 do Código Penal). Com efeito, há manifestação do STJ no sentido de que o pagamento do débito tributário figuraria como evidência de que o contribuinte não orientara conscientemente a sua conduta no sentido da redução ou supressão do tributo (ausência de dolo), que daria ensejo à não configuração do delito (RESP 279.505/SP). Tal tese, no entanto, não parece merecer acolhida, tendo em vista que o animus subjetivo, o dolo, é algo que acompanha a conduta e se manifesta de modo a ela concomitante, sendo perfeitamente compreensível que uma orientação consciente impressa num dado momento através de uma ação ou omissão venha a modificar-se em momento futuro, inclusive, por orientação jurídica de advogado.
Do ponto de vista axiológico, tem se argumentado em desfavor do pagamento extintivo de punibilidade com dois fundamentos (cf. relato de Schmidt, Andrei Z. Exclusão da Punibilidade em Crimes de Sonegação Fiscal.): 1) preliminarmente, porque o poder punitivo não poderia ser tratado como algo comerciável, traduzível em pecúnia, que é característica própria do direito privado; 2) aproximando-se do aspecto normativo, porque o tratamento diferenciado conferido à criminalidade das classes dominantes em relação ao dispensado à criminalidade clássica, na qual a restituição do objeto furtado é mera minorante, feriria o espírito constitucional da isonomia.
Os argumentos são ilusórios. Com efeito, não é verdade que seja algo estranho ao Direito Penal a utilização de respostas pecuniárias a supostos delitos. As penas de multa, previstas largamente; as penas de prestação pecuniária e perda de bens e valores, introduzidas pela Lei das Penas Alternativas em 1998; a transação penal e a composição cível dos danos entre as partes envolvidas no conflito, que a partir da criação dos Juizados Especiais Criminais em 1995 têm o condão de afastar a persecução penal, são exemplos recentes e ilustrativos de que o Direito Penal vem caminhando, cada vez mais, para a aceitação de medidas compensatórias de cunho patrimonial.
Ademais, tem-se não raro que estas sanções, patrimoniais, se por um lado não assumem uma feição demasiadamente aflitiva perante o réu, cumprem importante papel no sentido de inserir a vítima como beneficiária do sistema penal e de efetivar verdadeira proteção ao bem jurídico anteriormente violado. É que notadamente em delitos patrimoniais, econômicos e, in casu, contra a Ordem Tributária, a restituição do status quo ante, o pagamento, revela-se mais benéfico para a proteção do lesado do que uma medida estritamente aflitiva destinada exclusivamente a cumprir uma suposta função intimidatória / preventiva que jamais se cumpriu na realidade de sistemas penais marcados por um projeto de criminalização tão amplo quanto inviável, e necessariamente ineficaz.
Nesta linha, o argumento da violação ao princípio da isonomia jamais poderia funcionar como um desestimulante à extinção da punibilidade pelo pagamento do tributo, senão como um incentivo à extensão dos efeitos despenalizadores à restituição do status quo ante efetivada, por exemplo, através da devolução da televisão furtada.
Com pesar, nos tempos atuais marcados pela insegurança, é freqüente a crença em uma função educativa ou intimidatória do Direito, notadamente do Direito Penal. No entanto, o suposto efeito preventivo nunca foi constatado com dados estatísticos. Nem poderia: apenas cerca de 2% a 3% (dois a três pontos percentuais) dos crimes praticados chagam ao simples conhecimento das agências de persecução criminal (Hulsman, Luck. Penas perdidas). A ‘cifra oculta’ – os delitos não computados – é vultosa. Neste sentido, o Direito Penal apenas desenvolve flagrante papel de simular a presença de um Estado ausente. Não restam dúvidas de que as presas do sistema penal não passam de ‘bodes expiatórios’ pinçados. Ao invés de atribuir ao Direito uma suposta ‘função educativa’, jamais cumprida por que sediada de fato na família e nos estabelecimentos de ensino, importa compreender a sua estreita vinculação com as lesões aos bens jurídicos interpessoais e buscar a melhor maneira de garanti-los.
Em verdade, diante dos caminhos históricos trilhados pelo Legislativo e Judiciário nacionais, já aludidos, tem-se que, no panorama atual, desponta uma tendência a prestigiar e estender as repercussões graciosas e incentivadoras do pagamento do tributo, ainda que em detrimento da aplicação de medidas criminais aflitivas. Deste modo, tendo em conta também as questões valorativas expostas, a sinalização pela provável permanência da compreensão normativa do pagamento como causa extintiva da punibilidade nos delitos contra a Ordem Tributária emerge como uma confortante conclusão.
Em segunda exposição de breves considerações acerca do Projeto de Reforma do tratamento penal à sonegação fiscal, revisite-se o Projeto de Lei 3.670/04, de autoria do Deputado Paulo Rubem Santiago (PT).
Na oportunidade anterior, tratamos da revogação da causa extintiva da punibilidade consubstanciada no pagamento do tributo (revogação do art. 34 da Lei 9.249/95). Neste momento, cumpre analisar o aludido Projeto de Lei quando, seguindo o mesmo intento de expansão do sistema punitivo, pretende modificar a natureza dos delitos tributários, de crimes ditos “materiais” para “formais” (modifica a redação do art. 1º da Lei 8.137/90) e, a reboque, em franca oposição ao recentíssimo entendimento esposado pelo Supremo Tribunal Federal, torna de uma vez por todas dispensável a conclusão de procedimento administrativo fiscal, deixando sempre livre o caminho da ação penal promovida pelo Ministério Público, para a punição de crime tributário (revoga o art. 83 da Lei 9.430/96).
Quanto à natureza do delito, o que se tem em questão é saber se a efetiva supressão ou redução do tributo seria imprescindível à caracterização da sonegação fiscal como crime ou se, de modo diverso, o caráter delitivo do ilícito já estaria configurado com a simples conduta orientada a este fim, desde que tenha de fato idoneidade para lesar o Erário. O Projeto objetiva cambiar a previsão atual de crimes que exigem o dano ao bem jurídico, chamados ali de “materiais”, transformando-os em tipos ali denominados “formais”, já perfeitos com o simples perigo à arrecadação tributária – bem jurídico envolvido na sonegação fiscal (segundo Cláudio Costa, em Crimes de Sonegação Fiscal). Por pruridos técnicos, serão aqui adotados os conceitos crimes de “dano” e de “perigo”, entre outras razões, por prestígio à clareza.
A doutrina penal tributária, por via de regra, identifica os tipos previstos no art. 1º da Lei 8.137/90 como tipos de dano, apenados com até 5 (cinco) anos de reclusão, além de multa. Já os contemplados no art. 2º, cuja sanção privativa de liberdade não pode ultrapassar 2 (dois) anos, são comumente compreendidos como aplicáveis às ações meramente perigosas, como tipos de perigo (assim tratado, v. g., por Alexandre de Moraes, Gianpaolo Smanio e abraçado pelo STJ – RHC 4.097-1 –, enquanto Cláudio Costa exige a lesão ao Erário em todos os tipos previstos, com a exceção da primeira figura do art. 2º, III).
O Projeto pretende alterar o art. 1º desta citada Lei, tornando a tipicidade dos fatos ali previstos perfeita com o simples perigo ao Erário. No entanto, a alteração na gravidade da conduta criminalizada não se faz acompanhar de correspondente abrandamento da reprimenda penal. Deste modo, em flagrante violação ao princípio constitucional da proporcionalidade, destrói a coerência legal e traz uma disparidade inexplicável entre as sanções criminais cominadas – a umas 5 (cinco) e a outras 2 (dois) anos de reclusão, sempre cumuladas com multa –, ainda que todas as condutas criminalizadas tenham produzido simples e idêntico perigo ao bem jurídico envolvido – crimes de perigo. A semelhança entre as condutas descritas nos artigos 1º e 2º, I, da Lei 8.137/90, produzida com a identificação do resultado típico exigível, passa a ser tão evidente, que o Projeto revoga o inciso I do art. 2º, provavelmente em razão do fato de que não seria possível diferenciar os comportamentos ali descritos.
Em verdade, o franco objetivo do Projeto, ao contrário do que se poderia imaginar, não parece ser simplesmente o de antecipar a tutela penal para o momento anterior à lesão ao Erário. A meta, em última análise, é a de permitir que a persecução penal tenha início independente da conclusão do procedimento administrativo fiscal. É que a exigência do dano para a constituição do delito – a chamada ‘natureza material’ do crime –, tem sido o fundamento para a posição abraçada pelo STF, que condicionou a iniciativa penal ao esgotamento da via administrativa (HC 81.611).
A linha jurídica adotada no Pretório Excelso é bastante coerente. Se a lesão ao Erário é necessária à configuração do delito, então a constituição definitiva do crédito tributário é imprescindível ao início da persecução penal. A decisão final na esfera administrativa é, por conseqüência, declarada como ‘condição objetiva de punibilidade’ (HC 81.611) ou condição necessária à formação do ‘elemento normativo do tipo’ (HC 83.414). A distinção entre as duas figuras é excessivamente técnica e foge ao objeto deste ensaio. Por ora, basta a compreensão de que ambas condicionam a atividade criminalizante concreta à conclusão administrativa.
Deste modo, logo após o anúncio, pelo STF, de que a decisão definitiva no procedimento administrativo fiscal deveria ser aguardada para o início das atividades policiais e do Ministério Público, o Projeto em comento ataca o seu principal fundamento, cambiando a natureza do delito, tornando a efetiva lesão ao Erário algo dispensável à sua caracterização.
Mais além, para que não se cogitasse de novos argumentos, aproveita para revogar o art 83 da Lei 9.430/96, que fora por alguns apontado como fundador da tal ‘condição de procedibilidade’ (v.g. George Tavares, Alexandre Lopes e Kátia Tavares, em Anotações sobre Direito Penal Tributário, Previdenciário e Financeiro), embora o argumento não tivesse, naquele momento, merecido acolhida pelo Judiciário, nem no STF (ADI 1571, HC 75723), nem no STJ (HC 8208, RHC 6953).
Até mesmo o problema da extinção da punibilidade pelo pagamento do tributo, que o Projeto pretende revogar, tem estreito vínculo com esta questão.
Ora, se a Constituição da República garante o direito à ampla defesa administrativa e judicial (art. 5º, LV), tem-se de concluir que o cidadão possui o direito de exercer amplamente a sua defesa perante as duas esferas e isto somente é possível se a decisão final do procedimento administrativo for compreendida como condição objetiva de punibilidade ao delito tributário.
Doutro modo, resta o cidadão impelido a abrir mão da sua defesa administrativa, sob pena de suportar os ônus de uma ação penal contra si (anotação na folha de antecedentes, dificuldades em empregos, licitações e concursos públicos...). Desta forma, tem-se uma evidente deturpação do ordenamento repressivo criminal, que passa a figurar, nesta hipótese, sim, apenas como uma coação, um agente cobrador do Fisco, o que certamente não se pode admitir.
Bastante ilustrativo o questionamento do Ministro Nelson Jobim, por ocasião dos debates mantidos no julgamento do HC 77002-8: “Então, para se defender da ação penal, precisa depositar? Mas isso é uma figura nova. O exercício do direito de defesa fica dependendo do depósito?”. Nesta linha, inevitável concluir que deixar de reconhecer a decisão final do processo administrativo fiscal como uma condição objetiva de punibilidade aos delitos tributários é certamente afrontar os direitos constitucionais da ampla defesa e do devido processo legal, previstos no art. 5º, LIV e LV da Constituição da República (Machado, Hugo de Brito. Prévio esgotamento da via administrativa e ação penal nos crimes contra a ordem tributária. In: Revista Brasileira de Ciências Criminais).
Mas o que será mesmo que se pretende com o Projeto? Será que se imagina que o final da possibilidade de extinguir a punibilidade e evitar a ação penal pelo pagamento do tributo, aliado ao fato de tornar a efetiva constituição do crédito tributário dispensável à configuração do delito, tem o condão de transformar a natureza dos fatos? Ainda assim, não teria o contribuinte o direito à defesa administrativa do seu conflito com a Fazenda Pública? Não lhe socorreriam os princípios constitucionais da ampla defesa e do devido processo legal?
Parece inconcebível imaginar que, diante da lavratura de Auto de Infração Tributária pela Autoridade Fazendária, se estaria sujeito à ação penal para a persecução do crime tributário, por presunção quase inafastável, resguardado somente o direito de discutir perante o Fisco se o valor era mesmo devido e o quantum. Seria uma incoerência insuportável.
A violação ao princípio da ampla defesa e do devido processo legal permaneceriam, sob pena de identificarmos o ilícito tributário ao penal. Ou, mais além, de tornarmos a ação de um fiscal fazendário uma presunção do cometimento de ilícito penal, embora o ilícito tributário ainda pudesse ser questionado perante a Administração Pública.
Hão de ser recordadas as palavras esperançosas do Ministro Edson Vidigal, que compõe o Superior Tribunal de Justiça: “A idéia de que o Direito Penal não é a solução mais inteligente para os problemas de caixa do Governo vem se impondo, felizmente, à compreensão das mentes que decidem”. (Fluxo de cadeia ou de caixa: o exaurimento da instância administrativa fiscal como condição de procedibilidade para a ação penal. Inverbis. Ano 3, nº 17, abr-jun. 1999, p 14).
Apesar dos difíceis conflitos sociais atualmente vivenciados, é importante evitar a deserção da fé nos princípios constitucionais democráticos e o conseqüente anseio pela força policial a qualquer preço – o fenômeno da ‘apostasia constitucional’ (cf. Carlos Roberto Siqueira Castro. A Constituição aberta e os direitos fundamentais, p. 263).
Espera-se, pois, que a compreensão do caráter subsidiário do Direito Penal – somente chamado ao palco quando os demais ramos do direito demonstrarem-se insuficientes –, bem como as preocupações em resguardar as garantias constitucionais democráticas, venham iluminar não somente as mentes dos que decidem, senão também as idéias dos legisladores.
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*Advogada do escritório Siqueira Castro Advogados