Responsabilidade da indústria do tabaco
A periculosidade ínsita do produto e o livre arbítrio do ato de fumar
Janaína Rosa Guimarães*
Questão tormentosa sobre o nexo causal tem-se apresentado nas questões de responsabilidade pelo fato do produto, quando determinada doença é imputada ao consumo de tabaco.
Ao analisar os argumentos trazidos pela indústria do tabaco, nas diversas ações de indenização movidas perante os tribunais do país, vê-se que um dos pilares de sustentação de sua defesa está no livre arbítrio do fumante em, mesmo sabendo dos malefícios causados pelo fumo, assume o risco de permanecer fumando, de onde se conclui que as doenças provocadas em decorrência do hábito de fumar são de culpa exclusiva da vítima, ou seja, uma excludente de responsabilidade.
Para a indústria, o ato de fumar representa um mero hábito. Nestas condições, a opção de investir na prática do fumo advém incondicionalmente de uma opção aberta e desembaraçada do próprio fumante. Ou seja, trata-se de uma ação absolutamente voluntária e desobrigada, de modo que os efeitos nocivos porventura acarretados, não poderiam ser imputados aos fabricantes de cigarro, tendo em vista a consciência e o livre arbítrio do fumante.
Da licitude da atividade e a informação
Outros argumentos também sustentados pela indústria do tabaco estão na licitude a atividade, regulamentada pela legislação, bem como pela informação ora trazida à sociedade após o advento do Código de Defesa do Consumidor, sobre o fumo e os males causados à saúde.
Em 2006, a 3ª Câmara de Direito Civil do TJ/SC, em apelação sob a relatoria do desembargador substituto Sérgio Izidoro Heil, manteve decisão da Comarca de Criciúma que negou indenização por danos morais pleiteada pelo irmão e pela sobrinha de um fumante que morreu aos 85 anos.
A ação, ajuizada contra a Souza Cruz e Phillip Morris, atribuía a causa mortis exclusivamente ao consumo de cigarros. Os autores alegaram que a vítima fumava desde os 10 anos e que as empresas, ao deixar de informar os males ocasionados pelo produto de sua industrialização, comercialização e publicidade, descumpriram o dever legal, agindo com culpa. O relator da matéria rechaçou tais argumentos e manifestou sua discordância do pleito.
"Tendo em vista que o comércio de cigarros sempre foi considerado lícito, bem como que não havia qualquer norma anterior a 25 de agosto de 1988 que determinasse a divulgação de informações a respeito dos males que o cigarro provoca, não há como reconhecer qualquer responsabilidade das apeladas relativamente aos fatos ocorridos sob o comando do Código Civil de 1916, pois as mesmas, em todo tempo, agiram de acordo com o exercício regular de um direito reconhecido (art. 160, CC/1916) e em atendimento ao princípio da boa-fé", ponderou o magistrado. Segundo ele, a legislação brasileira somente passou a exigir que a indústria tabagista alertasse para os malefícios do fumo a partir da Portaria nº 190 do Ministério da Saúde, publicada em agosto de 1988.
O magistrado classificou a ação como "verdadeira e reprovável aventura jurídica", confirmando a sentença de primeiro grau, por unanimidade de votos. (Ap. Civ. 2005.024267-2)
O livre arbítrio como excludente de responsabilidade
A ação voluntária do fumante em fazer do cigarro seu hábito de vida vêm sendo fortemente sustentada nas decisões proferidas pelos Tribunais pátrios. Com esta linha de raciocínio, suscita-se a excludente de responsabilidade da indústria do fumo, fundada na culpa exclusiva da vítima.
Assim, o livre arbítrio passou a ser um dos argumentos mais validados pela jurisprudência, conforme decisões ora transcritas:
Livre arbítrio e possibilidade de parar com o uso do cigarro. A atividade de fumar é daquelas que tem início e continuidade mediante livre arbítrio do cidadão, não se podendo reconhecer que a atividade de fumar tenha início e se dê tão somente por força de propaganda veiculada pela indústria fabricante de cigarros. Também é certo afirmar que eventual vício contraído pelo usuário do fumo não é permanente e irreversível, já que a cessação da atividade de fumar é um fato notório e que depende única e exclusivamente do consumidor. (TJ/RS – Ap. Civ. 70022408231 – Rel. Des. Paulo Antônio Kretzmann – Julg. em 08/05/2008)
Doença atribuída a vício de fumar - Responsabilização da companhia produtora do cigarro. É necessário que reste demonstrada, de forma cabal, além do dano e do nexo causal, a existência de defeito no produto ou a insuficiência ou inadequação das informações prestadas pelo fornecedor para que haja o dever de indenizar. No caso concreto, não se pode afirmar que a propaganda da recorrida a respeito do produto tenha o condão de levar a pessoa a consumi-lo, considerando a notoriedade, manifestada por todos os meios de comunicação, em relação aos males inerentes ao uso do cigarro. (TJ/RS – Ap. Civ. 70016112856 – Rel. Des. Ângelo Maraninchi Giannakos – Julg. em 25/03/2008)
Nexo de causalidade. Evidente que há culpa exclusiva do consumidor, que assumiu voluntariamente o risco de desenvolver doenças pulmonares e/ou outras moléstias a partir do hábito de fumar. (...) Quebra-se o nexo de causalidade, pois o dano não advém diretamente do produto, senão do vício incontrolável do de cujus, que preferiu o prazer a contê-lo e, quiçá, desenvolver hábitos mais saudáveis, os quais poderiam obstaculizar ou estancar o desenvolvimento de doenças. (TJ/RS – Ap. Civ. 70000144626 – Rel. Des. Ana Lúcia Carvalho Pinto Vieira – Julg. em 29/10/2003)
Morte por câncer no pulmão atribuída ao cigarro. O homem e a mulher são dotados de raciocínio, inteligência e livre arbítrio para assumirem, na vida, as conseqüências de suas condutas, que não devem ser transferidas aos outros. Se se punir a empresa fabricante de cigarros, ter-se-á que punir, também, as fabricantes de bebidas, para quem sofre de cirrose, e de outros produtos que podem causar prejuízo à saúde de pessoas que não conseguem dominar a vontade e o prazer do consumo. (TJ/SP - Ap. Cív. 235.799-4/9-00 – Acórdão COAD 108519 – Rel. Des. Laerte Nordi)
Ação de indenização - consumo de cigarros. A opção pelo uso de cigarro é ato de vontade do fumante que, assim, não pode gerar obrigação à requerida. É bem verdade que os malefícios do fumo são de conhecimento público, mesmo antes da obrigatoriedade de veiculação da publicidade advertindo os consumidores acerca do tema. Da mesma forma, as empresas de cigarro sempre buscaram vincular a imagem do produto à saúde – atividades esportivas – e a êxitos pessoais e profissionais. Ocorre que, à época em que o autor aderiu ao vício, a publicidade mencionada na peça recursal não era obrigatória, e não poderia ser exigida da reclamada, inexistindo, inclusive, o dever de informar imposto pelo Código de Defesa do Consumidor – embora não se possa afastar das partes o dever geral da boa-fé. Assim, não se vislumbra na hipótese dos autos conduta da requerida capaz de gerar dever de indenizar. (TJ/SP - Ap. Cív. Rev. 259.266-4/2-00 – Acórdão COAD 119481 – Rel. Des. José Augusto Genofre Martins)
Indenização - consumo de cigarros. O fabricante de cigarros, somente pode ser responsabilizado, pela enfermidade do usuário, se restar comprovada a existência de nexo de causalidade entre a doença diagnosticada e o tabagismo, sem o que não há como se recepcionar a pretensão indenizatória. O ex-fumante, como tantas outras pessoas, fez uma opção consciente "entre o risco e o prazer", no exercício do livre arbítrio. A fabricação e comercialização de cigarros é uma atividade licita e existe amplo conhecimento público sobre os riscos associados ao consumo de cigarros. (TJ/MG – Ap. Civ. 2.0000.00.505183-4/000 – Rel. Des. Nilo Lacerda – Publ. em 02/07/2005)
Malefícios à saúde causados pelo uso de cigarro - empresa responsável pela fabricação do produto - hábito de fumar - escolha consciente do fumante. A empresa responsável pela fabricação de cigarros desenvolve atividade lícita, porquanto autorizada, disciplinada e fiscalizada pelo poder público e, uma vez disponibilizado o produto ao consumidor, este detém o livre-arbítrio para decidir se vale ou não a pena consumi-lo. (...). (TJ/MG – Ap. Civ. 2.0000.00.446375-6/000 – Rel. Des. Elias Camilo – Publ. em 26/02/2005)
Uso prolongado de cigarros - propaganda enganosa. A partir da vigência da nova Carta Magna os fabricantes passaram a divulgar alertas destacando os perigos à saúde, e a propaganda negativa se tornou mais intensa a partir das regras genéricas do Código de Defesa do Consumidor, intensificando-se após a lei específica, sempre obedecido o ordenamento jurídico pelas empresas do ramo. A industrialização, comercialização e propaganda do tabaco são atividades lícitas e regulamentadas. Fumar, e manter-se fumante, é escolha pessoal, correndo o interessado os riscos, posto que insistentemente alertado por frenética e permanente campanha contrária. Culpa exclusiva do consumidor, pelos eventuais malefícios experimentados. (TJ/RJ – Ap. Civ. 2005.001.40350 – Rel. Des. Mário dos Santos Paulo – Julg. em 07/02/2006)
Doença causada com o uso constante de cigarro - excludente de responsabilidade - arbítrio da parte. Sendo o fornecimento do produto exercido legalmente, não havendo as hipóteses de conduta ilícita definidas no Código de Defesa do Consumidor, no que tange à fabricação e fornecimento do produto ou ainda a sua divulgação no mercado, sendo certo que campanhas inúmeras apontam para os males causados pelo uso do cigarro e, ainda, assim, utilizando-se do seu livre arbítrio o individuo permanece fumando, assume para si a responsabilidade exclusiva. (TJ/RJ – Ap. Civ. 2002.001.03531 – Rel. Des. Luiz Zveiter – Julg. em 21/05/2002)
Esta é, pois, a corrente jurisprudencial majoritária. Para os magistrados seguidores desta corrente, a população brasileira tem consciência ampla e já de longo tempo que o cigarro é um vício e faz mal à saúde. Essa consciência vem se alargando nas últimas décadas, em razão da difusão das informações de natureza médica científica através dos meios de comunicação.
Portanto, o que já era senso comum, veio adquirir uma conotação ainda mais abrangente, de cunho eminentemente social: quem fuma ou fumou conhece exatamente as consequências maléficas do vício, devendo arcar com a permanência no sustento deste hábito.
A interferência externa da indústria do cigarro no exercício do livre arbítrio
Antes de atribuir ao fumante a culpa exclusiva pelas doenças e malefícios do cigarro, importante ressaltar que não estamos falando de um hábito mecânico e singular, já que componentes do produto, como a nicotina, condicional a vontade do agente. Neste sentido, a dependência e o vício causados pelo cigarro, advindos de substâncias químicas, nocivas e tóxicas, podem agir como uma interferência externa do fabricante do fumo, maculando e viciando a livre manifestação do fumante.
O liberum arbitrium é faculdade própria do homem que, pelo fato de possuir a razão, ou pela capacidade de ser racional, é capaz de escolher entre várias possibilidades. Neste sentido, para que o livre arbítrio seja exercido em sua plenitude, não deve haver impedimentos externos ao movimento, já que tais condições maculam a vontade, fazendo com que a faculdade de ação seja eliminada ou, ao menos, reduzida.
Neste sentido, impiedosa é a responsabilidade da indústria do tabaco, diante de uma estratégia sofisticada de marketing apta a seduzir crianças, adolescentes e jovens (faixa que corresponde mais de 70% do público consumidor) a experimentar seus produtos. Não bastasse isto, também é fato que o consumo de cigarros acaba por viciar o consumidor, tornando-o um dependente crônico!
Neste sentido, cabe a pergunta: seria assim tão desprendido e voluntário o livre arbítrio? Esta vontade não estaria sofrendo interferência externas aptas a macular sua livre manifestação? É provável que tais respostas sejam positivas.
Em decisão proferida pelo TJ/RS, em agosto de 2008, em uma brilhante decisão sob relatoria do desembargador Tasso Caubi Soares Delabary, tais vertentes foram profundamente analisadas, sendo fundamentais para a procedência da ação e responsabilidade da indústria do tabaco.
Conforme o magistrado, as provas demonstram que a autora adquiriu o hábito de fumar a partir da propaganda enganosa da ré. Afirmou que a indústria associou o consumo de cigarro ao sucesso pessoal, ocultando do público, por décadas, os componentes maléficos à saúde humana existentes no produto.
A autora da ação começou a fumar por volta da década de 70, aos 13 anos. Em alguns períodos chegou a consumir cerca de quatro carteiras de cigarros por dia. Segundo ela, após o infarto do miocárdio, em 1997, diminuiu o consumo do produto, mas não conseguiu parar totalmente.
O magistrado também desacolheu a alegação do fabricante de que a consumidora tem livre arbítrio para fumar. "No caso concreto, se esboroa ante o comprovado poder viciante da nicotina, a ausência de informações precisas quanto aos componentes da fórmula do cigarro e de qual a quantidade supostamente segura para o seu consumo, bem ainda ante a enorme subjetividade que caracteriza a tese, particularmente incompatível com as normas consumeristas que regem a espécie", considerou.
O desembargador Odone Sanguiné acompanhou o mesmo entendimento do relator, reconhecendo a existência de provas contundentes de que a autora adquiriu o vício estimulada pelas propagandas veiculadas pela ré. Admitiu também que o caráter lícito da atividade da demandada não afasta o dever de indenizar, diante da existência de nexo de causalidade entre o produto e a doença. Reiterou que o poder viciante da nicotina e a ausência de informações precisas diminuem a possibilidade de escolha dos consumidores.
Assim, destacamos da ementa:
Periculosidade ínsita do produto e o livre-arbítrio do ato de fumar. (...) Provas concludentes de que a autora adquiriu o hábito de fumar a partir de poderoso condutor do comportamento humano consistente em milionária e iterativa propaganda da ré que, ocultando do público os componentes maléficos à saúde humana existentes no cigarro, por décadas, associava o sucesso pessoal ao tabagismo. Tese da ré consistente na ínsita periculosidade do produto-cigarro e do livre-arbítrio no ato de fumar que, no caso concreto, se esboroa ante o comprovado poder viciante da nicotina, a ausência de informações precisas quanto aos componentes da fórmula do cigarro e de qual a quantidade supostamente segura para o seu consumo, bem ainda ante a enorme subjetividade que caracteriza a tese, particularmente incompatível com as normas consumeristas que regem a espécie. (...) (TJ/RS – Ap. Civ. 70015107600 – Rel. Des. Tasso Caubi Soares Delabary – Julg. em 27/08/2008)
Tal decisão, com precisas 121 laudas, ao considerar os documentos e pesquisas médico científicas; as ações de marketing envolvendo a indústria do fumo; bem como as substâncias e componentes químicos capazes de causar a dependência do consumidor, pode representar um divisor de águas.
O dicionário de filosofia de Nicola Abbagnano aponta a lição de Alberto Magno ao considerar que "era livre o homem que não é causa de si e que não é coagido pelo poder de outro".
Ao concluir uma de suas teses, o Mestre Lúcio Delfino (in O fumante e o livre arbítrio: um polêmico tema envolvendo a responsabilidade civil das indústrias do tabaco) traz considerações valiosas acerca do livre arbítrio e a responsabilidade da indústria do tabaco, pois, "frente ao cigarro, o homem não é causa de si, coagido que foi e é pelo influente poder econômico da indústria do tabaco, que além de seduzi-lo a experimentar um produto mortífero, acaba por transformá-lo num doente crônico, instalando em seu organismo uma dependência que, no mais das vezes, o impede de abdicar do tabagismo pelo simples exercício de sua vontade."
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*Advogada especialista em Direito Civil e Processo Civil, Coordenadora editorial do site ADV Online, Redatora e membro da Equipe Técnica ADV – Advocacia Dinâmica, da COAD - Centro de Orientação, Atualização e Desenvolvimento Profissional, membro honorário da ABDPC - Associação Brasileira de Direito Processual Civil.
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