Construção de uma Ideologia Estrutural da Auditoria Jurídica II
Jayme Vita Roso*
Este é um dis-curso ou um diálogo moderato cantabile ou um emprego do tempo ou Graal1?
A elegância da outrora elegante língua francesa conduziu-me a investigar os significados de diálogo, sua aproximação com outras palavras que tiveram a mesma ou quase a mesma origem. A razão é simples: faltam-me textos em vernáculo para evoluir a dissertação.
Enumero:
1 – Diallèle, do grego dialletos (logos), recíproco. Esse substantivo masculino, na língua de Bossuet, foi usado na locução didática "circulo vicioso";
2 – Dialogique, enquanto adjetivo, traduzido por dialógico, ressalta ter sido conhecido desde 1512, oriundo do grego dialogikos, este mesmo derivado de diálogos (= dialogo). Tombou em desuso pelos letrados, até que foi ressuscitado surpreendentemente por Bakhtine, como será ilustrado adiante;
3 – O substantivo masculino dialogisme começou a aparecer em textos franceses a partir de 1557, podendo de maneira correta ser conhecido no vernáculo como dialogismo. Sua origem, curiosamente, provém da mesma etimologia do adjetivo dialogique, que o precede em poucas décadas, porém, enquanto na retórica é raro encontrá-lo, na literatura, teve seu conceito definido, por Bakhtine, como: "organização de 'vozes' múltiplas segundo as quais um texto se estrutura". Embora se dêem créditos às idéias do lingüista russo pela originalidade, entendo que, na retórica, desde seu surgimento, o significado não lhe é inferior: "apresentação, sob a forma de diálogo, de idéias ou de sentimentos que se empresta aos seus personagens".
4 – O substantivo masculino diálogo surge, na língua francesa, em torno de 1200, com a grafia dialoge, mas se insere, a partir de 1580, "originário do latim dialogus, como entretenimento filosófico à maneira dos diálogos de Platão provindo do grego 'diálogos', entretenimento, discussão", termo filosófico derivado de dialegein, 'discutir', de dia 'através, entre' e legein falar, correspondente do latim legere (ler > dialeto, dialético)2.
5 – As palavras, sonoras ou escritas têm vida própria: desde o surgimento natural ou artificial, podem ser breves ou subsistir por milênios como se mostrou pouco ou bastante usadas ou repetidas, porque, a ver do escriba, quando derivam de um mesmo radical as terminações lhe são agregadas com o uso. Quanto mais frequente, quanto mais enveredadas em atividades correlatas, passam a vestir-se com a roupagem do discurso em que são empregadas, seja ele o que melhor lhe dê adereço ou sua utilização acolhida sem preconceitos, sobretudo nos meios intelectuais, literários, científicos e acadêmicos.
5.1 – Trago a palavra diálogo para ser dissecada. Ela mesma, em seu corrente uso, adquire significados tão próximos que surpreende os mais curiosos. Assim, é corrente encontrá-la com a idéia de entretenimento entre diversas pessoas, daí, as idéias de colóquio, conversação, ou do conhecido e saboroso tête-à-tête.
Ainda que espante aos filósofos de plantão, não os profissionais, diálogo nasce do elemento grego dia, cujo sentido é através (bem por isso o significado de diáfano). Mas, na literatura grega antiga, diálogo é de frequente interpretado, parcialmente, por causa de mono + logo, na função linguística do prefixo grego di = dois, mormente quando ocorre o diálogo entre dois interlocutores, o que não é raro (com razão esse entendimento, porque o prefixo di, significando dois é achado em várias palavras com entendimentos próximos no seu signo).
5.2 – Aproximando-nos de nossos dias quando tantos clamam que há ausência ou diminuição de diálogo, com o que se concorda, por causas próximas ou remotas, com explicações não satisfatórias de sociólogos, filósofos, psicanalistas, terapeutas, religiosos e tantos outros, o homem contemporâneo usa da tecnologia para ir longe: dialoga em tempo real na internet (por escrito e por imagem e por som).
Não há dúvida que esse fato perturba os que se dedicam a estudar as repercussões desse evento impactante nas relações humanas.
5.3 – Não há encerramento das dúvidas neste itinerário, porque diálogo é também a maneira que o autor faz falar seus personagens (teatro, filme, televisão, recital).
A que pertence o diálogo, pode-se questionar: à cena ou ao texto? A resposta enveredaria, se esboçasse uma proposta, mas articulada, a um contexto metafísico, muito além do âmbito destas pobres considerações.
5.4 – Desde que Platão escreveu seus Diálogos, tem havido repetição contínua de obras literárias em forma de conversação. Realmente, muitos foram escritos com originalidade, talento, despertando interesse, nos últimos dois milênios.
Só que a impressa escrita adotou um método próprio de conversar: entre o jornalista, que formula questões, e o entrevistado, que as responde, por escrito, quando ele solicita esse procedimento, para evitar palavras trocadas, idéias deturpadas, pensamentos mal reproduzidos ou outras razões que a prática vem repetindo quase que diariamente em jornais e revistas. Em verdade: só responde o entrevistado o que quiser. Isso ocorre, com menos frequência, sobretudo quando o programa é ao vivo, nos talk-shows. Haveria conversação nessa prática jornalística?
Outras conversações existem, verdadeiros produtos do imaginário do autor da obra literária. É preciso que façamos uma indispensável pausa para esboçar uma larga pincelada, no trabalho do filósofo carioca Eduardo Jardim (1948), que porta o título: "A duas vozes – Hannah Arendt e Octavio Paz"3.
5.4.1 – Essa obra de Jardim é transcendental para tocar o quadro teórico, em processo de elaboração que é a auditoria jurídica no contexto democrático para o exercício da advocacia. Esta somente é capaz de subsistir se a democracia for plena e não esse grotesco e dantesco quadro que somos obrigados a presenciar diariamente na mídia.
A ousadia de aferroar e de aguilhoar a democracia caricata ressoa forte nas vozes de Arendt e de Paz. Tanto um quanto o outro nem chegaram perto da hecatombe ecológica e do esgarçamento completo dos valores morais, que assistimos paralisados e em que continuamos a sobreviver num arremedo existencial. Eles, helás, que graça, viram nos acontecimentos que perpassaram por seus olhos. E essa visão percorreu nos cinco fictos encontros. Só deixaram de interpretar os grandes acontecimentos do século passado quando estes assentados nos dois pilares sócio-políticos antinômicos: as revoluções serem desmoralizadas com a tenebrosa aparição de regimes totalitários, com as bênçãos maquiadas da ciência manipulada pelo capitalismo e a crescente tecnologia a serviço dos senhores de guerra com armas letais de largo espetro, além de efeitos massivos que perduram por gerações deformadas.
A proposta ensaiada por Jardim de busca do presente – a ver do escriba migalheiro –, só teria maior valência se, pretendendo esboçar uma fotografia do presente, conduzisse a um significado das experiências atuais. É por isso que Jardim trata com raro brilho essa temática parcial do diálogo, que extraiu das idéias de Arendt e Paz como se tivessem ocorrido de fato.
Poderia Jardim ter avançado para o presente, que é o grande objetivo cuidado na obra, quando, após abordar a secularização como causa da ruptura com o passado monárquico e religioso originado das Reformas (luterana, swingliana e outras). Com isso foi desbancada a autoridade política e, fez gerar a crise assentada na precariedade da autoridade política.
O diálogo mostra anomalia com efeitos perniciosos na geração de crises políticas, que vão num crescendo à medida que o capitalismo, gerado pelas religiões renascentistas, como mostrou Max Weber, incentivando o lucro, centrou-se no mito do mercado, isso ocorrendo últimos estertores do século XX. Mais fundo: ao criar o capitalismo financeiro, filho espúrio daquele histórico, que se fortificou com a globalização, e substituiu a produção de bens duráveis pelos descartáveis, com geração de produtos de curta duração temporal, pela disseminação do consumo sem peias pelos que tem baixa renda, através engodo do crédito fácil e caro e com a perda dos valores tradicionais até então permanentes que foram substituídos pelo uso, gozo e fruição do instantâneo.
Essa ruptura, atingida por momentos, esmaeceu, como bem trabalha nessa idéia o filósofo Jardim. Se busca o homem novos caminhos e, sobretudo outras maneiras de comunicação, se for ela precisa, para explorar quiçá novos rumos, dando-lhes sentidos atuais, então, ao invés – sustenta o escriba migalheiro –, mostra-se precária a criação de uma fórmula que dê à democracia um sentido de que, se é para todos, mas de todos, deveria abominar as pesquisas de opinião. Se elas são elaboradas e executadas para medir emoções nas empresas, mas induzindo à corrupção nelas, quanto mais vigor nos prévios processos eleitorais. E o seu crescendo, nas práticas de corrupção, mostra a transcendência que se deve dar a política organizacional, com a mensuração pela auditoria jurídica dos seus efeitos internos e externos, quando afeta as instituições (nos seus diferentes graus) com a perda de valores culturais, sobretudo os éticos. Trata-se de uma maneira de dar voz aos seus marionetes, oriundos das pesquisas de opinião mas que com os resultados fabricados, sobretudo, pelas metodologias aplicadas, passam a se constituir uma patente ameaça à democracia.
E um meio idôneo é a proposta da institucionalização da auditoria jurídica, talvez a única e valiosa ferramenta para colocar a nu o que se esconde, os usos do poder e promover o seu controle bem como os processos pelos quais a transparência é, ou não, conquistada. Trata-se de meio salutar para ensaiar a prática da ética nos negócios privados e públicos de forma consistente. Afinal, o estudo da ética nos negócios está finalmente chegando aos meios de comunicação para ser conhecido, entendido e aplicado sem receios, se for feita efetiva representação, haverá implacável reflexibilidade com a inquestionável performance ser procurada e atingida.
Para explorar novos horizontes, Eduardo Jardim, nos oferece, no seu imaginado diálogo, construído na Universidade de Cornell, em torno de 1965, uma proposta de Paz assentada no amor e na poesia e uma de Arendt, no pensamento criativo e na política, cujo agente é o homem, com a ação, enquanto fenomenologia. Pelo mais ou pelo menos, esta é a percepção do escriba migalheiro desse momento decisivo do pensamento filosófico brasileiro, corporificado no imaginário "A Duas Vozes – Hannah Arendt e Octavio Paz".
Apesar de tudo, se é o presente que interessa, recordo a critica de Georges Didi- Huberman, revisitando a noção de "aura", na busca das condições essenciais, segundo elas uma simples forma pode ter acesso a uma presença, por isso, sempre as interpretações (sobretudo históricas e estéticas) só se encontram ao se interrogar seu método. É o que se buscou, com humildade, ao ser escrito este tópico do ensaio4.
___________________________
1A palavra Graal foi utilizada como uma figura literária com significado de símbolo de salvação.E m língua francesa o fizeram M. Barrès e Julien Gracq e também o insuperável T. S. Eliot, em língua inglesa, na sua conhecida obra The Wast Land.
2Dictionnaire Culturel en langue française, direção de Alain Rey, vol 2, p. 28 e 29, Dictionaires Le Robert, Paris, 2005.
3JARDIM, Eduardo. A duas vozes – Hanna Arendt e Octavio Paz, Civilização Brasileira, 125p., Rio de Janeiro, 2007.
4DIDI-HUBERMAN, George. Ce que nous voyons, ce qui nous regarde, Les Editions Minuit, Paris, 1992.
___________________
*Advogado e fundador do site Auditoria Jurídica
___________________