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A ordem cronológica nos pagamentos da administração pública

Em julho de 2004, o plenário do Tribunal de Contas da União proferiu decisão em relatório de levantamento de auditoria no Departamento Nacional de Infra-Estrutura de Transportes (DNIT) acerca do respeito da ordem cronológica de exigibilidade nos pagamentos devidos pela Administração.

12/11/2004

A ordem cronológica nos pagamentos da administração pública


Cesar A. Guimarães Pereira*

Em julho de 2004, o plenário do Tribunal de Contas da União proferiu decisão em relatório de levantamento de auditoria no Departamento Nacional de Infra-Estrutura de Transportes (DNIT) acerca do respeito da ordem cronológica de exigibilidade nos pagamentos devidos pela Administração. Reconheceu-se, em um contrato de construção, que houvera o pagamento de medições em 2004 embora estivessem pendentes de pagamento medições relativas a 2002 e 2003. O TCU determinou ao DNIT que “efetue os pagamentos devidos por serviços executados em contratos de obras públicas obedecendo, para cada fonte diferenciada de recursos, a estrita ordem cronológica das datas de suas exigibilidades, ou seja, de cada medição de serviços, nos termos do art. 5º da Lei nº 8.666/93, com as alterações dadas pela Lei nº 8.883/94” (acórdão 888/2004, Rel. Min. Adylson Motta, j. 7/7/2004).

A decisão é oportuna porque dá aplicação a dispositivo nem sempre lembrado (e muito menos cumprido) da Lei nº 8.666. O art. 5º da Lei exige que a Administração obedeça, “para cada fonte diferenciada de recursos, a estrita ordem cronológica das datas de suas exigibilidades, salvo quando presentes relevantes razões de interesse público e mediante prévia justificativa da autoridade competente, devidamente publicada”. Ou seja: em cada uma das quatro categorias de contratos referidas no dispositivo (fornecimento de bens, locações, realização de obras e prestação de serviços), haverá uma ordem de exigibilidades dos créditos em face da Administração. O momento da fixação da exigibilidade variará segundo a natureza do contrato, mas jamais ficará sob o controle da Administração – que não poderá, assim, manipulando o conceito de exigibilidade, modificar a ordem legal das exigibilidades. Nos termos da decisão do TCU, nos contratos de obras a exigibilidade é fixada pela medição, de modo que não poderá haver o pagamento de uma medição posterior, em qualquer contrato de obra, caso estejam pendentes de pagamento medições anteriores no mesmo ou em outro contrato. Como não poderia deixar de ser, a regra admite exceção vinculada a relevantes razões de interesse público. Porém, essas devem ser, além de relevantes, explicitadas em prévia justificativa, que deve ser devidamente publicada. Na ausência de tais relevantes razões, expostas e publicadas previamente à inversão de ordem, a observância da ordem cronológica é um dever insuprimível. É de tal importância o cumprimento da ordem cronológica – pois diretamente vinculada a princípios constitucionais como o da moralidade e o da intangibilidade da equação econômico-financeira do contrato – que a sua violação configura tipo penal. O art. 92 da Lei nº 8.666 estipula como ilícito penal “pagar fatura com preterição da ordem cronológica de sua exigibilidade”. O crime apenas não se verificará se a inversão tiver sido devidamente justificada, na forma da parte final do art. 5º da Lei nº 8.666. Caso contrário, configura-se o delito pela conduta do ordenador da despesa que determina o pagamento fora da ordem cronológica de exigibilidades.

O respeito à ordem cronológica é direito subjetivo de cada contratado, credor da Administração Pública. Se houvesse qualquer dúvida, bastaria observar o art. 4º da Lei nº 8.666, que atribui a todos os que participam da licitação o “direito público subjetivo à fiel observância do pertinente procedimento estabelecido nesta Lei”. Ademais, não é descabido aplicar-se analogicamente o regime previsto no art. 100, § 2º, da Constituição, concebido para a proteção do direito à observância da ordem cronológica de apresentação dos precatórios. Esse dispositivo consiste em garantia do direito ao cumprimento da ordem cronológica. Assegura-se, “exclusivamente para o caso de preterimento de seu direito de precedência, o seqüestro da quantia necessária à satisfação do débito”. Essa é medida típica, de competência do Presidente do Tribunal que proferir a decisão exeqüenda, vinculada ao respeito à ordem dos precatórios. Porém, nada impede que seja concedida, como instrumento de garantia de outro direito análogo, previsto no art. 5º da Lei nº 8.666, sob a forma de tutela cautelar ou antecipatória. Havendo frustração da ordem legal de pagamentos, com o pagamento de valores com exigibilidade posterios a outros injustificadamente não pagos, é cabível a determinação de seqüestro de recursos da Administração Pública até o montante necessário ao pagamento dos valores em aberto. E isso sem prejuízo da remessa ao Ministério Público de notícia sobre a ocorrência, em tese, de crime de ação penal pública incondicionada.

O Tribunal de Justiça de Minas Gerais tem examinado a questão e reconhecido o direito do contrato de obter comando, dirigido à Administração, compelindo-a ao cumprimento da ordem cronológica. Na apelação cível nº 000.275.161-8/00, julgada em fevereiro de 2003, o TJMG proferiu decisão de cuja ementa se extrai o seguinte: “O mandado de segurança preventivo tem cabimento sempre que o titular do direito líquido e certo tiver o ‘justo receio’ de violação desse seu direito. Doutrina e jurisprudência já se assentaram que a expressão ‘justo receio’ há de ser buscada no plano da objetividade e que residiria, pois, na ameaça. Na hipótese, confessada pelo Município a inversão da ordem cronológica de pagamentos, configurada a ameaça/justo receio a justificar a concessão da ordem”. Em outras decisões, o mesmo TJMG reputou não cabível o mandado de segurança diante da ausência de comprovação da inversão da ordem cronológica. Jamais se nega o direito à observância da ordem; apenas se põe em dúvida a existência fática de sua violação. Mesmo no âmbito do mandado de segurança, que exige prova pré-constituída, essa comprovação é possível mediante indícios documentais – p. ex., a mera circunstância de que, em um mesmo contrato, houve pagamentos relativos a períodos posteriores àqueles cujas medições ainda estão em aberto – que podem ser complementados pela requisição de documentos a que alude o art. 6º, par. único, da Lei nº 1.533. Assim, caberá à própria Administração apresentar a relação de seus débitos contratuais, classificados segundo as categorias previstas no art. 5º da Lei nº 8.666 e ordenados cronologicamente, a fim de que se possa comprovar de modo definitivo da violação da ordem – ou, se for o caso, a existência de uma circunstância excludente de infração, desde que cumprido adequadamente o procedimento previsto na parte final do art. 5º da Lei nº 8.666.

Não é cabível que a Administração, na aplicação do art. 5º da Lei nº 8.666, valha-se de mecanismos destinados a frustrar o direito à previsibilidade no pagamento que está subjacente à noção de observância da ordem cronológica de exigibilidades. A doutrina (cfr. MARÇAL JUSTEN FILHO, Comentários à Lei de Licitações e Contratos Administrativos, 10ª ed., 2004, Dialética, pp. 82/95, e JOEL DE MENEZES NIEBUHR, O direito subjetivo dos contratados pela Administração Pública de que os pagamentos sejam realizados em observância à ordem cronológica de suas exigibilidades, ILC nº 125, pp. 649/653, julho/2004) tem-se dedicado a denunciar tais mecanismos. A interpretação do que são as fontes diferenciadas de recursos, o momento da exigibilidade e as relevantes razões de interesse público e, em especial, a forma de aplicação do procedimento de inversão excepcional da ordem, previsto na parte final do art. 5º da Lei nº 8.666, não podem levar à supressão do direito à ordem cronológica. No atual momento de alteração de governos municipais, assume também relevância peculiar o reconhecimento de que não há seccionamento da ordem cronológica no final do exercício ou no final do mandato: configurando ou não restos a pagar, os débitos contratuais pendentes devem ser pagos na ordem cronológica de suas exigibilidades mesmo quando transferidos de um exercício a outro. Como destaca MARÇAL JUSTEN FILHO, o não pagamento de todos os débitos pendentes resulta de defeito na elaboração do orçamento: “Se o Estado elabora mal suas leis orçamentárias, os efeitos danosos não podem recair sobre seus credores” (ob. cit., p. 95).

O respeito a esse direito é condição fundamental para a atuação moralizada da Administração Pública. Nas palavras de JUAREZ FREITAS, é um “poderoso freio às falcatruas” e um “útil mecanismo moralizador” (Estudos de Direito Administrativo, 2ª ed., 1997, Malheiros, p. 169). São vedadas interpretações limitadoras que restrinjam o alcance desse direito. Bem ao contrário, exige-se que seja aplicado em toda a sua extensão, afastando-se interpretações formalistas que retirem desse direito sua substância e prestigiando-se – por meio de sua aplicação pelos órgãos de controle externo e pelo Poder Judiciário, inclusive no aspecto penal correspondente – esse instrumento essencial para a proteção da boa-fé e da moralidade administrativa.
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* Advogado do escritório Justen, Pereira, Oliveira & Talamini - Advogados Associados









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