Reforma sindical e reforma trabalhista
Wilson Ramos Filho*
Já se disse que para todos os problemas complexos sempre haverá uma resposta fácil. E errada. De fato, a simples alteração no artigo 618 da CLT, pretendida no governo anterior, aparentava ser uma resposta simples e fácil para problemas complexos, mas nem de longe seria a mais apropriada, fundamentalmente porque se estaria atribuindo poderes aos atuais sindicatos (com baixa legitimidade e parca organização) para restringirem direitos fixados na legislação, contrariando diversos princípios basilares do direito do trabalho.
A abordagem adotada pelo Brasil de proceder à Reforma Sindical como condição prévia para a Reforma Trabalhista seguramente foi a mais coerente, apesar da enorme complexidade inerente a esta opção. Para um problema complexo, uma solução igualmente complexa.
É consabido que, ao invés de nomear mais uma “comissão de notáveis” para a produção de um anteprojeto de reforma (como tantas outras iniciativas semelhantes do passado) o atual governo preferiu iniciar um processo de concertação social de modo a que os principais atores sociais envolvidos pudessem ser partícipes da arquitetura do novo modelo, buscando dotá-lo obviamente de maior legitimidade social e política. O processo foi difícil e demorado. Iniciou-se com a realização de “fóruns estaduais” de conformação tripartite, com a participação de sindicatos de empresas, de agentes governamentais e de sindicatos obreiros; as conclusões de cada um dos fóruns estaduais (contendo não apenas os pontos de consenso, mas também as posições majoritárias e minoritárias destacadamente) foram remetidas ao Fórum Nacional do Trabalho (FNT), organismo também tripartite no qual estão representados os principais setores envolvidos com o tema.
A busca incessante de consensos no FNT acabou por produzir um anteprojeto de lei que se constitui em um Sistema de Relações Coletivas de Trabalho ao desenhar um Direito Sindical moderno e eficiente, muito embora, em pontos diversos, tenha desagradado a todos e a cada um dos atores sociais envolvidos na sua construção. Isso era esperado. De fato, como o tema implica interesses classistas, a redação final, embora sistemática e coerente, do anteprojeto não representa as posições de nenhum dos atores de forma plena, sendo, como é, o resultado histórico e concreto da relação entre as forças sociais que o conceberam. Dito de outro modo: cada um dos atores teve parte de seus pontos de vista e de seus interesses contemplado no projeto final e parte de seus interesses nele deixaram de constar, mas – para a surpresa de alguns céticos – o resultado final, insiste-se, acabou por construir um Sistema que, alterando alguns paradigmas varguistas, pode nascer com um alto grau de legitimidade social decorrente da metodologia democrática adotada em sua construção.
O projeto de lei que está sendo encaminhado pelo Executivo ao Congresso Nacional – que deverá ser precedido de uma Proposta de Emenda Constitucional (PEC) tendo em vista os aspectos constitucionais envolvidos – está articulado em três dimensões: organização sindical, instrumentos de negociação coletiva e formas de solução de conflitos.
Na primeira dimensão encontramos importantes alterações paradigmáticas, aqui lembradas de forma sintética. A organização sindical passa a seguir a regra da liberdade sindical na medida em que apenas por exceção (condicionada a regras democráticas) resta admitida a exclusividade na representação sindical. No novo modelo é admitida a existência de mais de uma entidade representativa de empregadores e de trabalhadores concorrendo para a representação de suas respectivas bases. Além disso, o novo modelo prevê mecanismos de aferição da representatividade que poderá se dar de duas formas: por comprovação (para manter as prerrogativas sindicais a entidade deverá comprovar deter pelo menos 20% de associados dentre seus representados) ou por derivação (hipótese na qual a representatividade sindical derivará da vinculação a uma entidade de grau superior com representatividade comprovada). Tal alteração paradigmática impactará a realidade atualmente existente em que muitas entidades (sejam patronais, sejam de trabalhadores) acabam ”representando” grupos sociais que não são a elas associados, restringindo a representatividade real, com reflexos óbvios no conteúdo dos instrumentos de negociação coletiva. O Sistema prevê o reconhecimento das centrais sindicais, a organização sindical por ramo de atividade (em substituição ao corporativista sistema de representação por categorias profissionais e econômicas) e a liberdade de organização como regra, afastando a obrigatória simetria atualmente existente entre organização patronal e obreira. Ainda no campo da organização sindical, o projeto acaba com a contribuição compulsória para as entidades sindicais ao prever o fim do imposto sindical e da contribuição confederativa instituída pela CF/88. Com a implantação do novo sistema restarão apenas duas formas de sustentação financeira aos sindicatos, de empregadores e de trabalhadores, ambas decididas em assembléia geral: a mensalidade sindical e a contribuição decorrente da negociação coletiva. Por fim, o projeto prevê a representação dos trabalhadores nos locais de trabalho (RTLT), com implantação gradual ao longo de seis anos, atribuindo-se a tal representação funções negociais e de solução de conflitos individuais, plúrimos ou coletivos.
Na segunda dimensão, a dos instrumentos de negociação coletiva, o projeto prevê a possibilidade de negociações coletivas em âmbito nacional (entre as centrais sindicais e as confederações patronais fixando direitos aplicáveis verticalmente a determinado setor da atividade econômica), estadual, intermunicipal, municipal e por empresas (com protagonismo importante para as RTLT). Como os princípios da representatividade real e da deliberação democrática são fundantes no novo sistema, as deliberações sempre haverão de ser tomadas em assembléias gerais das quais participarão todos os trabalhadores interessados, sejam ou não associados ao sindicato. O mesmo haverá de prevalecer nas deliberações dos sindicatos patronais. Como o sistema aponta para a possibilidade de existência de mais de uma entidade representativa dos trabalhadores todos os sindicatos com representatividade reconhecida (por comprovação ou por derivação) participarão das negociações coletivas e do rateio da contribuição decorrente das mesmas, na proporção do número de filiados que efetivamente representem. Por fim, por se tratar de um sistema articulado, o projeto cuidou de explicitar a prevalência da norma mais favorável aos trabalhadores sempre e quando houver mais de uma norma coletiva aplicável a cada ramo de atividade.
Na terceira dimensão, que abrange as formas de solução de conflitos o sistema apresenta modernas inovações, a começar pela extinção do chamado poder normativo da Justiça do Trabalho. Em casos de greves acabaria a possibilidade da Justiça do Trabalho decidir sobre o mérito dos motivos ou dos interesses que os trabalhadores por meio da greve decidissem defender. Em qualquer caso, em havendo impasse nas negociações coletivas os contratos coletivos (convenções e acordos) a vigência da norma anterior ficaria automaticamente prorrogada por 90 dias de modo a estimular a autocomposição de interesses. Permanecendo o impasse poderá ocorrer a arbitragem voluntária do conflito que poderá ser pública (pelo Tribunal do Trabalho) ou privada, nos termos da legislação aplicável. Desaparece, desta forma, a arbitragem compulsória pela Justiça do Trabalho em sede de dissídio coletivo. As decisões da Justiça do Trabalho quando erigida em árbitro público voluntário serão irrecorríveis e serão tomadas pela sistemática das ofertas finais: cada parte apresenta a sua proposta final para composição em cada tópico controvertido e a Justiça decide por uma delas (pela proposta final patronal ou pela proposta final obreira), sendo-lhe vedado formular decisão intermediária entre ambas (buscando aproximar as propostas das partes, diminuindo a chamada “franja de negociação”, que é o intervalo existente entre as duas propostas finais apresentadas pelas partes). Por outro lado, o projeto define bem o que seriam consideradas práticas anti-sindicais e as formas de proteção contra elas ao prever providências jurisdicionais ágeis e eficientes. Por fim, o projeto avança na regulamentação da substituição processual de modo apropriado.
A rápida síntese acima permite antever que, em comparação com o modelo sindical atual, corporativo, o novo sistema apresenta inovações importantes, todas apontando para uma maior legitimidade na representação dos trabalhadores e dos empregadores, uma maior tutela dos direitos dos trabalhadores, um papel mais relevante para a Justiça do Trabalho, enfim, se apresenta como um sistema mais moderno, compatível com os sistemas adotados nos países mais desenvolvidos econômica e socialmente.
Ao mesmo tempo percebe-se que, em decorrência da metodologia da concertação social adotada com a busca obsessiva por consensos, cada ator social em alguma medida não vislumbra no projeto pontos que inicialmente considerava imprescindíveis e inegociáveis. Em prol do consenso cada ator social, ao longo do processo de discussão, foi abrindo mão de alguns pontos para conseguir que outros figurassem na proposta final. Essa talvez seja a grande virtude do projeto que agora inicia sua tramitação no Congresso Nacional.
Começa agora um novo momento: no Congresso, apesar dos consensos formulados no âmbito do FNT, cada setor que em alguma medida se sentiu preterido em suas proposições tentará fazer prevalecer seus pontos de vista pela via da apresentação de emendas ao projeto original, com grandes riscos para sua unidade sistêmica. Mas isso não pode ser evitado: é da essência da democracia representativa que os grupos de pressão atuem sobre o legislativo no sentido e fazer prevalecer seus interesses, suas expectativas e desejos. Tornando ainda mais complexo o processo, ainda antes de entrar na discussão de mérito do projeto, o Congresso terá que enfrentar a discussão da mencionada PEC extirpando da atual Constituição tudo aquilo que tornaria impossível a tramitação do projeto de Reforma Sindical concebido pelo FNT por incompatibilidade constitucional. Teremos, pois, um longo caminho a trilhar.
Quanto à Reforma Trabalhista, como se sabe, firmou-se consenso no sentido de que, por prever um maior protagonismo dos sindicatos na discussão e eventual adaptação dos direitos fixados em lei à realidade de cada setor econômico (negociação coletiva com as Centrais), ramo de atividade (negociação entre Confederações, Federações e Sindicatos, patronais e de trabalhadores), ou empresa (negociação entre empregador e RTLT), a Reforma Trabalhista deverá ocorrer somente após a Reforma Sindical, já que seria uma temeridade atribuir-se tal prerrogativa às atuais entidades sindicais, muitas delas dotadas de baixos índices de legitimidade em face da escassa representatividade real.
Apesar disso, as discussões para a futura Reforma Trabalhista já estão em curso no âmbito do FNT, com a análise preliminar dos pontos que cada bancada (do governo, do patronato e dos trabalhadores) considera fundamentais. Também aqui o processo será complexo e longo pois os trabalhadores estão apresentando uma proposta de um Novo Código do Trabalho em substituição à CLT (argumentando que, como na Reforma Sindical, é necessário um novo Sistema de Relações Individuais de Trabalho) enquanto os representantes do patronato em princípio pretendem apenas a revogação dos artigos da atual CLT que consideram incompatíveis com seus interesses em face da atual fase de desenvolvimento capitalista, o que encontra naturais resistências na bancada dos trabalhadores. Como se vê, também no que respeita à Reforma Trabalhista, não há soluções que sejam a um só tempo fáceis e corretas, dada a complexidade inafastável decorrente do caráter potencialmente antagônico inerente ao tema em questão.
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* Mestre e doutor em direito, é professor titular de Direito Sindical na UNIBRASIL e professor adjunto de Direito Sindical e de Direito do Trabalho na UFPR. Integra o Coletivo Jurídico da CUT nacional e o escritório de advocacia Defesa da Classe Trabalhadora