A panacéia da Súmula 297 do Superior Tribunal de Justiça: possível aplicação indiscriminada do Código de Defesa do Consumidor às instituições financeiras
Maria Silvia L.A. Marques*
A edição de súmulas pelo STJ, entretanto, tem gerado uma certa insegurança nos meios jurídico e financeiro. De uma parte, pela possibilidade de revisão e cancelamento dessas súmulas mediante proposta de qualquer Ministro do STJ1, como ocorreu com a Súmula 2632. Editada em 2002, a Súmula 263 foi cancelada pouco mais de um ano depois, seguida pela edição de nova súmula em 2004 – a Súmula 293 - em que a Corte Especial adotou entendimento diametralmente oposto ao da extinta Súmula 263 ao afirmar que “a cobrança antecipada do valor residual garantido (VRG) não descaracteriza o contrato de arrendamento mercantil”.3
De outra parte, pode-se mencionar a possibilidade de aplicação ampla e irrestrita de certas súmulas cujos textos genéricos se limitam a reproduzir o texto legal, sem atingir o cerne da discussão e sem atentar para as particularidades e características específicas da relação jurídica em exame, a exemplo do que poderá ocorrer com a Súmula 297.
A edição da Súmula 297 baseia-se numa série de julgados da Segunda Seção (RESP nº 298.369-RS, RESP nº 387.805-RS, RESP nº 106.888-PR, RESP nº 175.795-RS e RESP nº 57.974-RS), nos quais foi adotado o entendimento de que o Código de Defesa do Consumidor (“CDC”) aplica-se às atividades bancárias. A análise desses precedentes, e outros neles mencionados, mostra que os Ministros têm entendido que a relação entre instituições financeiras e pessoas físicas ou jurídicas se subsume ao CDC pelo simples fato de as personagens dessa relação jurídica se enquadrarem no conceito de “fornecedora” e “consumidora”, segundo as definições do CDC.
Não se discute a aplicação do CDC às instituições financeiras. Isso se explica não só pelo fato do legislador ter expressamente incluído as instituições financeiras como fornecedoras, nos termos do artigo 3º do CDC4, mas também por existirem dispositivos legais que tratam de questões tipicamente relacionadas às atividades bancárias, como a concessão de empréstimo, financiamento e fixação de juros, como estabelece, por exemplo, o artigo 52 do CDC5.
O foco de discussão é, na verdade, se o tipo de relação em que uma instituição financeira figura como uma das partes pode ou não ser classificada como relação de consumo, de acordo com as definições do CDC. Somente a partir dessa verificação, pode-se chegar a uma definição quanto à subsunção ou não dessa relação jurídica à legislação consumerista. Conforme o conceito legal dado pelo próprio CDC, é preciso analisar se a pessoa que celebra o contrato com essas instituições pode ser classificada como “consumidora”, tendo em vista que a relação poderá se dar entre uma instituição financeira e uma empresa, ou até mesmo entre instituições financeiras.
O enunciado sumular pode ser usado de forma leviana para que o CDC fosse aplicado indistintamente e de forma genérica a toda e qualquer operação bancária, o que não pode ser admitido pelo STJ. A aplicação de súmulas deve ser restrita às hipóteses dos precedentes que a fundamentaram, sob pena de desvirtuamento da aplicação da Súmula, cuja mera citação pelo número correspondente, segundo a regra do artigo 124 do RISTJ, “dispensará, perante o Tribunal, a referência a outros julgados no mesmo sentido.”
Os precedentes que levaram à edição da Súmula 297, em sua maioria, referem-se a operações bancárias (contratos de caderneta de poupança, contratos de abertura de crédito, etc), nas quais o banco e o tomador podem efetivamente ser considerados, respectivamente, “fornecedor” e “consumidor”. Entretanto, destaca-se um dos acórdãos mencionados como precedente jurisprudencial (RESP nº 175.795-RS) no qual o próprio acórdão recorrido menciona expressamente que o contrato de mútuo celebrado entre a instituição financeira e a indústria de roupas tinha por escopo a obtenção de capital de giro, o que afastaria a classificação legal desta como destinatária final, isto é, consumidora.
Faz-se necessário examinar cada caso concreto, como bem preconizam a doutrina e outros julgados do próprio STJ (RESP nº264.126,-RS, RESP nº 258.780-ES e RESP nº 218.505-MG), para averiguar se o empréstimo, contrato de leasing ou outra espécie de operação bancária, será utilizado para o incremento do processo produtivo ou como matéria-prima para transformação ou aperfeiçoamento com fins lucrativos (com fim de integrá-los ao processo de produção, transformação, comercialização ou prestação a terceiros).
A título ilustrativo, vale mencionar o RESP nº 327.727-SP no qual decidiu-se aplicar o CDC ao contrato de mútuo celebrado entre a instituição financeira e uma construtora, sem qualquer perquirição do destino a ser dado aos recursos pela tomadora. Porém, admitindo-se, hipoteticamente, que a tomadora visava à obtenção de capital de giro, tornar-se-ia inadmissível a aplicação do CDC. No acórdão, passou-se ao largo dessa discussão, o que, a nosso ver, ainda que ausente a alegação das partes neste sentido, poderia ser investigado a fim de não comprometer a posição adotada no caso quanto à aplicação ou não do CDC.
Outro exemplo é o RESP 258.063-RS, no qual a importância do exame da relação jurídica foi ressaltada pelo Relator Ministro Aldir Passarinho ao votar que “este Superior Tribunal de Justiça já decidiu que a instituição financeira está sujeita aos princípios e regras do Código de Defesa do Consumidor, conforme, claro, cada situação, assentando-se nelas a possibilidade de rever os contratos bancários, bem como o fundamento pelo qual flexibilizado o princípio da força obrigatória, que não é absoluto.)”. Em que pese tal ressalva, é fato que o CDC foi aplicado por se tratar de contrato de abertura de crédito firmado entre a instituição financeira e a pessoa jurídica, sem se levar em consideração qual a finalidade dos recursos obtidos pela empresa de representação comercial, o que eventualmente poderia afastar a aplicação do CDC.
Não há dúvida de que o CDC deve ser aplicado às instituições financeiras, da mesma forma como deve ser aplicado a qualquer outra pessoa física ou jurídica que se encontre sob a égide da lei brasileira. Ocorre que tal assertiva, aliás óbvia, em nada resolve a controvérsia que pode haver em torno da caracterização de algumas operações bancárias como relação de consumo. A aplicação do CDC às instituições financeiras não tem o condão de transformar todas as operações praticadas por tais instituições em relação de consumo. Infelizmente, a Súmula 297 do STJ em nada vai contribuir para pacificar a questão.
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1 Artigo 125, parágrafo 1 do Regimento Interno do STJ.
2 Súmula 263 – “A cobrança antecipada do valor residual (VRG) descaracteriza o contrato de arrendamento mercantil, transformando-o em compra e venda a prestação.”
3 Anexo ao BI no.1.776.- “Cancelamento da Súmula 263 do Superior Tribunal de Justiça: a questão do pagamento antecipado do valor residual garantido no leasing”
4 Art. 3º. Fornecedor é toda pessoa física ou jurídica, pública ou privada, nacional ou estrangeira, bem como os entes despersonalizados, que desenvolvem atividades de produção, montagem, criação, construção, transformação, importação, exportação, distribuição ou comercialização de produtos e prestação de serviços. §1º Produto é qualquer bem, móvel ou imóvel, material ou imaterial. §2º Serviço é qualquer atividade fornecedora no mercado de consumo, mediante remuneração, inclusive as de natureza bancária, financeira, de crédito e securitária, salvo as decorrentes das relações de caráter trabalhista.
5 Art. 52. No fornecimento de produtos ou serviços que envolva outorga de crédito ou concessão de financiamento ao consumidor, o fornecedor deverá, entre outros requisitos, informá-lo prévia e adequadamente sobre: I – preço do produto ou serviço em moeda corrente nacional; II – montante dos juros de mora e da taxa efetiva anual de juros; III – acréscimos legalmente previstos; IV – número e periodicidade das prestações; V – soma total a pagar, com ou sem financiamento.
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*Advogadas do escritório Pinheiro Neto Advogados
* Este artigo foi redigido meramente para fins de informação e debate, não devendo ser considerado uma opinião legal para qualquer operação ou negócio específico.
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