O sentido do parágrafo quinto do artigo 49 da Lei de Falências – contradições e interpretações possíveis
Luiz Fernando Hofling*
Diferentemente do que ocorria no instituto da concordata, os credores titulares de garantias reais ficam, no novo diploma, submetidos aos efeitos da recuperação judicial.
Declara-o o legislador, no "caput" do artigo 49 da nova lei:
"Artigo 49 – Estão sujeitos à recuperação judicial todos os créditos existentes na data do pedido, ainda que não vencidos."
Um pouco mais adiante, no parágrafo terceiro do aludido artigo, arreda-se da influência da recuperação os titulares de direitos reais de propriedade sobre bens do devedor:
"Parágrafo Terceiro: Tratando-se de credor titular da posição de proprietário fiduciário de bens móveis ou imóveis, de arrendador mercantil, de proprietário ou promitente vendedor de imóvel cujos respectivos contratos contenham cláusula de irrevogabilidade e irretratabilidade, inclusive em incorporações imobiliárias ou de proprietário em contrato de venda com reserva de domínio, o crédito não se submeterá aos efeitos da recuperação judicial e prevalecerão os direitos de propriedade sobre a coisa e as condições contratuais, observada a legislação respectiva..."
Reconhecendo, assim, a intangibilidade do direito do titular do domínio sobre a coisa em poder do devedor, o legislador atribuiu-lhe, tão somente, uma limitação, declarada na parte final do parágrafo terceiro do artigo 49, que soa:
"... não se permitindo, contudo, durante o prazo de suspensão a que se refere o parágrafo quarto do artigo 6 desta lei, a venda ou a retirada do estabelecimento do devedor dos bens de capital essenciais a sua atividade empresarial".
O parágrafo quarto do artigo 6 da Lei, com efeito, assim havia disposto:
"Artigo 6 - A decretação da falência ou o deferimento do processamento da recuperação judicial suspende o curso da prescrição e de todas as ações e execuções em face do devedor, inclusive aquelas dos credores particulares do sócio solidário."
Parágrafo Quarto: Na recuperação judicial a suspensão de que trata o caput deste artigo em hipótese nenhuma excederá o prazo improrrogável de cento e oitenta dias contado do deferimento do processamento da recuperação, restabelecendo-se, após o decurso do prazo, o direito dos credores de iniciar ou continuar suas ações e execuções, independentemente de pronunciamento judicial."
A situação, em grande síntese, é a seguinte:
- proposta a recuperação judicial, suspendem-se as ações de todos os credores por cento e oitenta dias;
- nesses cento e oitenta dias, suspendem-se as ações dos credores com a propriedade de bens de produção utilizados pelo devedor, os quais não são alcançados pelo instituto, senão nesse ponto.
Dá-se, porém, que, no parágrafo quinto do artigo 49, o legislador introduziu o seguinte comando:
"Parágrafo quinto: Tratando-se de direito garantido por penhor sobre títulos de crédito, direitos creditórios, aplicações financeiras e valores mobiliários, poderão ser substituídas ou renovadas as garantias liquidadas ou vencidas durante a recuperação judicial e, enquanto não renovadas ou substituídas, o valor eventualmente recebido em pagamento das garantais permanecerá em conta vinculada durante o período de suspensão de que trata o parágrafo quarto do artigo 6 desta Lei."
A leitura desse enunciado cria duas interpretações possíveis:
- a primeira, no sentido de que o legislador - assim como fizera no parágrafo terceiro, com relação ao proprietário fiduciário, ao arrendador mercantil e ao promitente vendedor de imóvel - excluiu esses créditos da abrangência da recuperação judicial, determinando que, ao final do período de cento e oitenta dias, sejam depositados em conta vinculada destinados ao credor pignoratício;
- a segunda, no sentido de que tais créditos não estão excluídos da recuperação judicial, devendo os depósitos, após o decurso do prazo de cento e oitenta dias reverter para a recuperanda, na forma do plano de recuperação aprovado pelos credores.
Poderosos são os argumentos de um e de outro lado:
A - A exclusão desses créditos da recuperação judicial não poderia ser admitida, pois se assim fosse, a regra geral do "caput", no sentido de que todos os créditos seriam alcançados pelo instituto ficaria violada.
O argumento não é bom: a regra geral do "caput" foi, do mesmo modo, excepcionada pelo artigo terceiro do artigo 49.
Nada impediria, portanto, que, na esteira da exceção estabelecida no artigo terceiro, fosse, pelo legislador, estabelecida uma nova exceção à regra geral, no artigo quinto.
B – Não se poderia ir além dos limites da redação do artigo quinto e tudo o que nesse preceito se lê é que os valores das obrigações garantidas por penhor mercantil, vencidos no prazo de cento e oitenta dias do deferimento da concordata, deverão, ou ser renovados, ou ser depositados em conta vinculada, assim permanecendo, até o final desse período.
Não se poderia, assim, considerar que, além disso, ao final do período de cento e oitenta dias, os recursos em depósito deveriam ser destinados ao credor garantido pelo penhor e não à massa em recuperação judicial.
O argumento também não convence!
Se o legislador quisesse submeter, ao regime da recuperação, o crédito garantido por penhor, para que finalidade diria que os recursos originários de pagamento dessas obrigações deveriam depositados em conta vinculada, pelo prazo de suspensão das ações?
E, por outro lado, para que finalidade criaria o legislador uma conta vinculada, para depósito desses recursos, não fosse para destiná-los ao credor pignoratício, ao término do prazo de suspensão das ações judiciais?
C - O legislador não poderia deixar certos titulares de garantia real, como os credores hipotecários, submetidos à recuperação judicial, e outros, como os credores pignoratícios, fora desse regime.
O argumento é bom!
Mas não chega a ser decisivo: se é verdade que ficariam estabelecidos tratamentos diferentes para a mesma classe de credores, também é indiscutível que os privilégios dos créditos são estabelecido pela legislação, e, assim, o legislador, ao estabelecê-los, podia fazê-lo, não estando adstrito a qualquer limitação isonômica, posto que lhe seria facultado atribuir consequências diferentes a contratos diferentes, embora da mesma natureza.
Todas essas considerações legitimam a conclusão de que:
- o legislador, tanto como fez no parágrafo terceiro ao artigo 49, criou uma exceção à regra geral do "caput", estabelecendo, para o credor pignoratício, uma conduta consistente em suspender o processo de cobrança, pelo prazo de cento e oitenta dias, findo o qual se lhe destinaria o valor depositado em conta vinculada;
- não havendo sentido em que, recebidos os valores desses créditos, fiquem depositados numa conta vinculada, para que, ao término do prazo de cento e oitenta dias, venham os depósitos a ser devolvidos à massa em liquidação.
Essa é – reconhece-se - uma interpretação polêmica, que, certamente, gerará, entre os profissionais, a mais profunda divisão.
Em conversa com dois dos melhores administradores profissionais da comarca, deles colhi a sólida convicção de que os credores pignoratícios e caucionários não estão excluídos da recuperação judicial, ficando sujeitos ao plano a ser elaborado pelos demais credores.
Algumas decisões da Câmara Especial de Falências e Recuperações Judiciais (agravos de instrumento 571.784 – 4/1 e, 531.703-4/0-00, 585.273.4/7-00) apenas tangenciam o problema, para dizer o óbvio: durante o prazo de suspensão das ações, o dinheiro resultante dos pagamentos deve ficar depositado.
Naquelas decisões, fugiu-se, porém, do problema central: e depois do período de suspensão das ações, o dinheiro deve ser entregue ao credor ou à recuperanda?
Uma decisão mais recente, da qual foi relator o Desembargador Romeu Ricupero, embora pudesse ter sido mais explícita, enfrentou melhor o problema: ao dar provimento ao agravo 571.784-4/1, entendeu-se que a cessão fiduciária de crédito não é mais do que a alienação fiduciária que tem por objeto direitos creditórios ou títulos de crédito.
Daí, para concluir-se que esses créditos estão fora da recuperação judicial, o passo é tranquilo, embora não tenha sido dado, no aresto.
Se é verdade que esta última interpretação poderá inviabilizar certas recuperações judiciais, na medida em que os credores de recebíveis não serão por ela alcançados, também não se pode negar que a culpa, por uma tal situação, não pode ser atribuída ao intérprete, mas ao legislador que a criou.
É de lamentar-se que, sobre matéria de tamanha relevância, tenha o legislador usado sua capacidade verbal de forma tão afásica – gagueira decisória que contagiou o tribunal, que não consegue decidir, claramente, sobre o assunto - não dando a entender o que, efetivamente, queria dispor sobre o assunto!
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*Advogado do escritório Höfling, Thomazinho Advocacia
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