Migalhas de Peso

A favor da criminalização das práticas anti-sindicais

Em artigo entitulado “Criminalização das relações de trabalho”, José Pastore critica a Constituição Federal sob o argumento de que a Magna Carta prevê muitos direitos e pouquíssimos deveres. Faz crítica também às inúmeras proposições de leis que tramitam no Congresso Nacional que visam “apenas gerar direitos sem a menor preocupação com os deveres, com as despesas e com a competitividade”. Por fim, ataca projeto de lei que tramita perante o Senado Federal (PLS 36), que propõe a criminalização de atos que atentem contra a liberdade sindical, nos seguintes termos:

18/3/2009


A favor da criminalização das práticas anti-sindicais

Ana Farias Hirano*

Em artigo entitulado "Criminalização das relações de trabalho" (Migalhas 2.092 - 2/3/09 - "Relações Trabalhistas" - clique aqui), José Pastore critica a Constituição Federal (clique aqui) sob o argumento de que a Magna Carta prevê muitos direitos e pouquíssimos deveres. Faz crítica também às inúmeras proposições de leis que tramitam no Congresso Nacional que visam "apenas gerar direitos sem a menor preocupação com os deveres, com as despesas e com a competitividade". Por fim, ataca projeto de lei que tramita perante o Senado Federal (PLS 36 - clique aqui), que propõe a criminalização de atos que atentem contra a liberdade sindical, nos seguintes termos:

"Art. 1º Acrescente-se o art. 199A ao Decreto-Lei 2.848, de 7 de dezembro de 1940 – Código Penal (clique aqui), com a seguinte redação:

[Constitui] atentado contra a Liberdade Sindical:

Art. 199 A. Impedir alguém, mediante fraude, violência ou grave ameaça, de exercer os direitos inerentes à condição de sindicalizado:

Pena – detenção, de seis meses a dois anos, e multa, além da pena correspondente à violência.

§1º. Na mesma pena incorre quem:

I – exige, quando da contratação, atestado ou preenchimento de questionário sobre filiação ou passado sindical;

II- dispensa; suspende; aplica injustas medidas disciplinares; altera local, jornada de trabalho ou tarefas do trabalhador por sua participação lícita na atividade sindical, inclusive em greve;

§2º. A pena é aumentada de um sexto a um terço se a vítima é dirigente sindical ou suplente, membro de comissão ou, simplesmente, porta-voz do grupo.”

Para José Pastore, tal medida seria contra-indicada, uma vez que a criminalização das condutas na esfera trabalhista apenas geraria mais conflitos e criaria insegurança jurídica pela dificuldade de provar que a empresa impediu o empregado de exercer seus direitos sindicais. Menciona também a dificuldade de os Tribunais estabelecerem quais seriam tais condutas. Assevera que o PLS 36 estabelece punições apenas para as empresas: "para as empresas, todas as sanções criminais; para os empregados e dirigentes dos sindicatos laborais, nada."

O autor lista uma série de quesitos que deveriam ser levados em conta na definição de condutas anti-sindicais por ambas as partes, empregados e empregadores. Dentre esses quesitos, encontram-se: "26. Os sindicatos laborais não podem realizar ou participar de greves de solidariedade ou de boicotes que visam atingir terceiras empresas. 27. Os sindicatos laborais não podem induzir os trabalhadores de empresas contratadas (terceirizadas) a entrar em greve pelo simples fato de trabalharem no mesmo local."

Por fim, defende que as sanções para as práticas anti-sindicais devem ater-se à esfera trabalhista tal como ocorreria na grande maioria dos países avançados, e que "a colocação da punição no âmbito do Código Penal introduz um elemento estranho e de grande apreensão nas relações de trabalho. Os empregadores estarão sempre receosos de que determinada conduta venha a ser tipificada como crime."

Data venia, ouso discordar do referido autor pelos motivos que passo a expor:

Inicialmente, é preciso esclarecer que a Constituição Brasileira de 1988 ao estabelecer direitos, também cria deveres. Ora, quando estabelece, por exemplo, no art. 5º, inciso XXII, que é garantido o direito de propriedade, gera, ao mesmo tempo, o direito à propriedade e o dever por parte de todos de respeitar a propriedade alheia. Portanto, uma leitura sistemática da Constituição Federal leva à conclusão de que seu texto comporta muitos deveres. Não há um direito sequer que não deixe de portar consigo um dever, seja para seu titular ou para terceiro. Melhor ainda seria se os ditos 76 direitos existentes na Carta Magna fossem igualmente acessíveis ao conjunto da população, mormente àqueles que não desfrutam sequer dos direitos sociais mais básicos.

Quanto às milhares de propostas legislativas em tramitação no Congresso Nacional que visam "apenas criar direitos trabalhistas", é preciso fazer algumas considerações. Em primeiro lugar, seria muito adequado que esses projetos de leis que tramitam no Congresso fossem aprovados, aumentando o rol de direitos sociais a que fazem jus os trabalhadores, visto que a perspectiva do Direito do Trabalho é de melhorar as condições de trabalho e vida dos trabalhadores. Dessa forma, o rol de direitos estabelecidos no art. 7º da Constituição não é exaustivo, mas apenas um mínimo a ser superado por legislação infraconstitucional.

Contudo, infelizmente, é fato notório que a tendência de flexibilização da legislação trabalhista vem sendo implementada através da aprovação de leis esparsas com o objetivo de retirar direitos sociais dos trabalhadores, fugindo dos objetivos constitucionais previstos no art. 3º, incisos I, II e III (construir uma sociedade livre, justa e solidária; garantir o desenvolvimento nacional; erradicar a pobreza e a marginalização e reduzir as desigualdades sociais e regionais). Portanto, repito, infelizmente, muitas leis trabalhistas aprovadas pelo Congresso não criam direitos trabalhistas, mas os retiram, "flexibilizando-os".

Sobre esta conjuntura, leciona o Professor Ricardo Antunes sobre a relação capital e trabalho: "desde que o capitalismo ingressou na sua mais recente fase de mundialização – o que se deu a partir do monumental processo de reestruturação e financeirização dos capitais nos anos 70 -, estamos constatando que os capitais transnacionais exigem dos governos nacionais a flexibilização da legislação do trabalho, eufemismo para designar a desconstrução dos direitos sociais, resultado de longas lutas e embates do trabalho contra o capital desde o advento da revolução industrial"1.

Segundo, quando se acusa a legislação trabalhista brasileira de onerar demasiadamente as empresas e impedir o crescimento econômico do país, esquece-se de dois fatores importantes: o custo da mão-de-obra nos países mais avançados é elevadíssimo se comparado com o custo da mão-de-obra nacional; e o baixo cumprimento efetivo da legislação por parte dos empregadores.

Logo, se nos países mais avançados do mundo o custo da mão-de-obra é elevado, não se pode afirmar que esse fator impede o crescimento econômico. É evidente que o crescimento econômico está atrelado ao crescimento social, e este não pode ser alcançado sem bons salários e direitos sociais garantidos. Quando os empresários pagam baixos salários e deixam de cumprir a legislação trabalhista não percebem que estão agindo contra seus próprios interesses: manter consumidores com poder de compra.

Por outro lado, como é possível responsabilizar a legislação trabalhista pelo entrave do crescimento econômico de um país no qual a maior parte da força de trabalho está inserida no mercado informal (no qual a legislação trabalhista é ignorada) e, mesmo no mercado formal, é bastante descumprida?

Com relação à suposta inadequação de se criminalizar as práticas anti-sindicais cabem as seguintes considerações:

A criminalização das práticas anti-sindicais não geraria mais conflitos, pelo contrário, garantiria mais eficazmente o respeito à liberdade sindical, induzindo os empregadores a observar os direitos correlatos. Dessa forma, os conflitos relativos ao exercício da liberdade sindical restariam reduzidos em decorrência de sua observância espontânea pelos empregadores.

A criminalização das práticas anti-sindicais também não criaria insegurança jurídica pela dificuldade de provar que a empresa impediu o empregado de exercer seus direitos sindicais, bem como pela dificuldade de se estabelecer no que consistiriam tais práticas.

Esse argumento, se levado ao extremo, poderia inviabilizar a proteção a qualquer direito, inclusive ao direito de propriedade. Por exemplo, quais condutas realmente ferem o direito de propriedade: é permitido ocupar a empresa durante uma greve? É permitido pegar um bem emprestado sem o consentimento de seu proprietário? Essas e outras milhares de questões que envolvam o direito de propriedade podem inviabilizar a proteção a esse direito por causarem "insegurança jurídica" àquele que não sabe se pegar emprestado sem o consentimento do proprietário pode ou não? Ou ainda, a dificuldade de se provar que um bem foi furtado (e não descartado pelo próprio proprietário) inviabilizaria a defesa do direito de propriedade? É evidente que não.

Os parâmetros que estabelecem o exercício legítimo de direitos não estão regulamentados objetiva e expressamente em leis, mas são construídos pela jurisprudência, doutrina, princípio da boa-fé etc.

Portanto, recusar proteção à liberdade sindical utilizando-se o argumento da "insegurança jurídica" não parece ser razoável.

O Código Penal brasileiro, no Título IV da parte especial – Dos crimes contra a organização do trabalho, arts. 197 a 207, estabelece como tipos penais o atentado contra a liberdade de trabalho; o atentado contra a liberdade de contrato de trabalho e boicotagem violenta; o atentado contra a liberdade de associação; a paralisação de trabalho seguida de violência ou perturbação da ordem; a paralisação de trabalho de interesse coletivo; a invasão de estabelecimento industrial, comercial ou agrícola; a frustração de direito assegurado por lei trabalhista, dentre outros.

Percebe-se, pela análise dos referidos tipos penais, que são estabelecidos como crimes tanto práticas de empregados como de empregadores. Por exemplo, os tipos penais paralisação de trabalho, seguida de violência ou perturbação da ordem (art. 200. Participar de suspensão ou abandono coletivo de trabalho, praticando violência contra pessoa ou coisa: Pena – detenção, de um mês a um ano, e multa, além da pena correspondente à violência), bem como paralisação de trabalho de interesse coletivo (art. 201. Participar de suspensão ou abandono coletivo de trabalho, provocando a interrupção de obra pública ou serviço de interesse coletivo: Pena – detenção, de seis meses a dois anos, e multa), têm como sujeitos ativos os trabalhadores.

Portanto, não procede a afirmação de que todas as sanções criminais voltam-se exclusivamente às empresas.

Quanto aos quesitos listados por José Pastore que deveriam ser levados em conta na definição de condutas anti-sindicais, acredito que os de número 26 e 27 ferem a liberdade sindical: "26. Os sindicatos laborais não podem realizar ou participar de greves de solidariedade ou de boicotes que visam atingir terceiras empresas. 27. Os sindicatos laborais não podem induzir os trabalhadores de empresas contratadas (terceirizadas) a entrar em greve pelo simples fato de trabalharem no mesmo local."

A Constituição Federal dispõe em seu art. 9º: "É assegurado o direito de greve, competindo aos trabalhadores decidir sobre a oportunidade de exercê-lo e sobre os interesses que devam por meio dele defender". Da mesma forma estabelece o art. 1º da Lei 7.783/89 (clique aqui), que dispõe sobre o exercício do direito de greve. Portanto, greves de solidariedade não são proibidas e não podem ser consideradas práticas anti-sindicais.

Dada a natureza de direitos fundamentais dos direitos sociais e, mais especificamente, dos direitos relacionados à liberdade sindical, e tendo em vista que o exercício dos direitos fundamentais deve ser energeticamente garantido, são perfeitamente possíveis e recomendáveis sanções de natureza penal às práticas anti-sindicais.

Aliás, a Organização Internacional do Trabalho - OIT faz uma recomendação expressa no Relatório Global de Acompanhamento da Declaração da OIT relativa aos Princípios e Direitos Fundamentais no Trabalho2, com relação à liberdade sindical, na parte que trata da Proteção contra a discriminação anti-sindical e a ingerência, de que sejam estabelecidas sanções e vias de recurso suficientemente dissuadoras de tais atos e menciona que as regulamentações que proíbem atos de discriminação anti-sindical são inadequadas quando não acompanhadas de procedimentos que garantam uma proteção efetiva.

Dessa forma, diversos países avançados, como Estados Unidos (§ 186 do Federal Criminal Code, Title 29, chapter 7, subchapter IV, que estabelece como sanção para empréstimos financeiros a empregados e representantes ou dirigentes sindicais com finalidade anti-sindical, multa de até dez mil dólares e prisão de até cinco anos)3, França (arts. L 2146-1 e L 2146-2 do seu Código do Trabalho, que estabelecem como sanção penal para práticas contra a atividade sindical prisão de um ano e multa4), Itália (art. 28, §1º do Estatuto dos Trabalhadores dispõe que o empregador que não se submeter à decisão judicial pode incorrer na pena prevista no art. 650 do Código Penal Italiano, o qual prevê prisão de até 3 meses ou pagamento de indenização) e Espanha (art. 315 do Código Penal espanhol, o qual afirma que o impedimento ou limitação do exercício da liberdade sindical importa em pena de prisão de seis meses a três anos e multa5), estabelecem a sanções penais a práticas anti-sindicais.

Por tudo que foi exposto, a criminalização de práticas anti-sindicais apresenta-se como medida razoável e necessária ao efetivo exercício dos direitos ligados à liberdade sindical que fornecem conteúdo substantivo aos princípios constitucionais de construir uma sociedade livre, justa e solidária; garantir o desenvolvimento nacional; erradicar a pobreza e a marginalização e reduzir as desigualdades sociais e regionais. Os interesses privados de uma camada minoritária da sociedade não podem se opor a estes princípios.

_________________

1 ANTUNES, Ricardo. Riqueza e miséria do trabalho no Brasil. São Paulo: Boitempo. 2006. (p.499) (os negritos são nossos)

2 ORGANIZAÇÃO INTERNACIONAL DO TRABALHO. Liberdade sindical na prática: lições a retirar. Relatório Global de Acompanhamento da Declaração da OIT relativa aos Princípios e Direitos Fundamentais no Trabalho. Disponível em: <_https3a_ relatorioglobal2008_portuguesportugal.pdf="" download="" www.oitbrasil.org.br="">. Acesso em: 7 mar. 2009.

3 § 186. Restrictions on financial transactions: (a) Payment or lending, etc., of money by employer or agent to employees, representatives, or labor organizations [...] (b)Request, demand, etc., for money or other thing of value [...] (d) Penalties for violations 1-Any person who participates in a transaction involving a payment, loan, or delivery of money or other thing of value to a labor organization in payment of membership dues or to a joint labor-management trust fund as defined by clause (B) of the proviso to clause (5) of subsection (c) of this section or to a plant, area, or industry-wide labor-management committee that is received and used by such labor organization, trust fund, or committee, which transaction does not satisfy all the applicable requirements of subsections (c)(4) through (c)(9) of this section, and willfully and with intent to benefit himself or to benefit other persons he knows are not permitted to receive a payment, loan, money, or other thing of value under subsections (c)(4) through (c)(9) violates this subsection, shall, upon conviction thereof, be guilty of a felony and be subject to a fine of not more than $15,000, or imprisoned for not more than five years, or both [...]

4 Article L2146-1. Le fait d'apporter une entrave à l'exercice du droit syndical, défini par les articles L. 2141-4, L. 2141-9 et L. 2141-11 à L. 2143-22, est puni d'un emprisonnement d'un an et d'une amende de 3 750 euros. Article L2146-2 .Le fait pour l'employeur de méconnaître les dispositions des articles L. 2141-5 à L. 2141-8, relatives à la discrimination syndicale, est puni d'une amende de 3 750 euros. La récidive est punie d'un emprisonnement d'un an et d'une amende de 7 500 euros.

5 Artículo 315. 1. Serán castigados con las penas de prisión de seis meses a tres años y multa de seis a doce meses los que mediante engaño o abuso de situación de necesidad, impidieren o limitaren el ejercicio de la libertad sindical o el derecho de huelga.2. Si las conductas reseñadas en el apartado anterior se llevaren a cabo con fuerza, violencia o intimidación se impondrán las penas superiores en grado3. Las mismas penas del apartado segundo se impondrán a los que, actuando en grupo, o individualmente pero de acuerdo con otros, coaccionen a otras personas a iniciar o continuar una huelga.

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*Advogada





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