Defensores da pacificação social e da democracia inclusiva
Eduardo Belmudes*
Mesmo considerando que durante todos esses anos tivemos a Procuradoria de Assistência Judiciária e o convênio com a Ordem dos Advogados do Brasil (Secção São Paulo) para a prestação de assistência judiciária às pessoas carentes, podemos afirmar - a não ser que o próprio conceito de assistência desejado na CF/88 seja distorcido - que a população do Estado de São Paulo teve sim durante todos esses anos um direito constitucional negado pelos governantes do Estado de São Paulo!
Isso se dá uma vez que a Constituição Federal, além de prever um modelo público de assistência jurídica prestada por instituição autônoma, tem como algumas de suas diretrizes a solução pacífica dos conflitos, a erradicação da marginalização e um modelo de democracia participativa.
A conclusão fica ainda mais nítida quando se constata que a Defensoria Pública possui como missão, além da atuação processual, a realização de dois outros preceitos básicos de cidadania e pacificação social, quais sejam: a educação em direitos e a solução extrajudicial de conflitos.
Aliás, justamente o oposto do modelo até então existente, que se caracterizava por um assistencialismo caridoso por parte do Estado que nunca priorizou a estrutura da Procuradoria de Assistência Judiciária e insistiu em manter um convênio fomentador de demandas judiciais.
É através da educação em direitos que se constroi cidadania e se oportuniza aos cidadãos o conhecimento dos limites de seus direitos, evitando-se, assim, conflitos. E mesmo quando estes conflitos não são evitados – o que se dá pela própria inconclusão da natureza humana – entra em cena a solução extrajudicial de conflitos, também realizado no âmbito da Defensoria Pública.
Nesse ponto, lembremos o fato de que a Defensoria Pública do Estado de São Paulo recebeu, no último dia 11 de dezembro, numa cerimônia em Brasília, o Prêmio Innovare, pela sua atuação na obtenção de indenizações extrajudiciais para familiares de vítimas e moradores desalojados em razão do acidente nas obras do metrô ocorrido em janeiro de 2007 em São Paulo.
Portanto, com uma certa simplificação de que sou plenamente consciente, concluo, sem medo de errar, que quanto mais estruturada e ampliada for a atuação da Defensoria Pública, além de se propiciar uma educação em direitos geradora de consciência ao cidadão, que passa a cumprir seu papel de participação democrática, menor será o número de conflitos sociais e, mesmo na inevitabilidade destes, o de processos judiciais.
E é inseparável da mesma linha de raciocínio a conclusão de que a atuação simplista dos governantes do Estado de São Paulo - durante todos esses anos de ausência de Defensoria Pública - omitiu conhecimento de direitos, fragilizou a cidadania, gerou conflitos e multiplicou processos.
Por conta disso, não é somente a população carente que sofre as conseqüências, mas também todos os cidadãos que têm direito de postular em juízo e os próprios profissionais do Direito. Hoje, o absurdo congestionamento do Judiciário paulista que, além de onerar os cofres públicos, obstaculiza a concretização de direitos, premiando os infratores e gerando descrédito aos ofendidos, pode ser entendida a partir da constatação de que este trabalha com um número de processos correspondente a quase cinqüenta por cento dos processos judiciais de todo o país.
Como não se pode separar o presente do passado, poderíamos propor a seguinte provocação: será que se a Defensoria Pública existisse em São Paulo desde 1988, muitos desses processos poderiam ter sido evitados? Obviamente, não se trata de nenhuma afirmação categórica sobre o tema, mas de uma das muitas ilações provocativas que se poderia fazer a respeito.
Pois bem, como também não se pode separar o presente do futuro, devemos analisar se a Defensoria Pública do Estado de São Paulo, com o tratamento que vem recebendo hoje do Governo do Estado de São Paulo, poderá um dia se tornar apta a concretizar o desejo do constituinte. E isso não apenas no enfoque de pacificação social mencionado acima, mas também em sua postura ativa de concretização de direitos fundamentais.
Infelizmente, em nosso país, o que não é diferente em nosso Estado, a filosofia continua sendo a de fingir que as coisas estão razoavelmente bem, de forma a se desqualificar sistematicamente aqueles que insistem em apontar os problemas existentes, os abusos, o descaso, enfim, nosso vergonhoso atraso social. Continua-se, comodamente, a política de negar o óbvio, de se fazer acreditar que a regra do subdesenvolvimento social é, na verdade, uma infeliz e episódica exceção dentro de uma espetacular administração.
O fato é que poder político se consolidou como um fim em si mesmo e elegeu o discurso de que toda e qualquer crítica somente existe como um instrumento dessa disputa. Assim, a luta pela efetivação dos direitos humanos acabou sendo absurdamente inserida nessa vala comum da munição de discursos, sobretudo por aqueles que os desprezam.
Como os direitos fundamentais e a própria Defensoria Pública não são poesia, muito embora pareçam quando mal focados pela miopia do simplismo, do egoísmo e da administração afastada dos direcionamentos constitucionais, devemos lembrar que todo e qualquer Poder estatal que se omite em sua efetivação, com o receio de que o custo dessa efetivação atinja, ainda que indiretamente, seu orçamento, torna-se igualmente violador desses direitos e motivo de vergonha e desesperança para todos nós.
Governo que não fomenta a educação em direitos, necessária ao exercício da cidadania, e não fomenta a pacificação social, necessária ao desenvolvimento, com o devido respeito, não pode pretender se colocar como pedagogo de qualquer tipo de democracia imaginável.
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*Defensor Público pelo Estado de São Paulo
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