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A prescrição e os títulos de crédito em face do novo Código Civil

Tratar de títulos de crédito sempre foi tarefa árdua por conta da profusão de leis especiais sobre o tema. O Título VIII do Livro I da Parte Especial do novo Código Civil reacendeu a discussão em torno do assunto; um de seus pontos sensíveis envolve a aplicação dos incisos IV e VIII do §3º do artigo 206 à cobrança de títulos de crédito.

19/10/2004

A prescrição e os títulos de crédito em face do novo Código Civil

 

Renata Maria T. Costa Rossi*

 

Tratar de títulos de crédito sempre foi tarefa árdua por conta da profusão de leis especiais sobre o tema. O Título VIII do Livro I da Parte Especial do novo Código Civil reacendeu a discussão em torno do assunto; um de seus pontos sensíveis envolve a aplicação dos incisos IV e VIII do §3º do artigo 206 à cobrança de títulos de crédito.

 

Inicialmente, necessário frisar que os títulos de crédito previstos em leis especiais continuam sendo regidos por essas leis, nos termos do artigo 903 do Código Civil1. As disposições trazidas pelo novo Código são aplicáveis apenas aos títulos atípicos, constantemente criados pela dinâmica do comércio.

 

Da mesma forma, os prazos prescricionais dos títulos de crédito previstos em leis especiais continuam sendo aqueles que constam nas respectivas leis, nos termos do artigo 206, §3º, VIII do Código Civil2. Assim, o prazo trienal para o exercício da pretensão para haver o pagamento do título de crédito, previsto no inciso VIII acima citado, somente será aplicável aos títulos atípicos e aos títulos típicos, se a respectiva lei que o tiver criado for omissa.

 

O inciso VIII não especifica se está tratando apenas de pretensão executiva ou de qualquer pretensão condenatória de pagamento. Pelo princípio de hermenêutica Ubi lex non distinguit nec nos distinguere debemus (“Onde a lei não distingue, não pode o intérprete distinguir”), entendemos que o prazo trienal é aplicável para o exercício de qualquer forma de pretensão para haver o pagamento do título. Se o título de crédito for também título executivo, o prazo será para a propositura da ação de execução. Se, ao contrário, o título não for executivo, o prazo previsto será para a propositura da respectiva ação de cobrança ou ação monitória.

 

No entanto, como vimos, o inciso VIII é aplicável apenas nos casos em que a lei especial que regula o título de crédito for omissa ou para os títulos atípicos, aos quais se aplica a nova regulamentação instituída pelo Código. Portanto, se lei especial previr prazo específico para o exercício da pretensão, este é o prazo que prevalecerá. Nesse sentido, o prazo para execução de notas promissórias e letras de câmbio é de três anos a contar do vencimento, se proposta a ação contra o emitente da nota ou o aceitante da letra, conforme consta do artigo 70 da Lei Uniforme de Genebra (“LUG”). No caso das duplicatas, reguladas pela Lei 5474/68, o prazo para a execução contra o sacado e respectivos avalistas também é de três anos, mas nos termos dos artigos 15 e 18 daquela lei. Já para a execução de cheques, o prazo previsto no artigo 59 da Lei 7357/85 é de seis meses a contar da expiração do prazo de apresentação.

 

Definido qual o prazo para a cobrança do título de crédito, seja por ação de execução, seja por ação condenatória, restaria uma dúvida: se a prescrição se consumar, haveria alguma forma de recuperar o valor constante do título? Surge aqui o ponto sensível de discussão.

 

Antes do advento do novo Código Civil, a doutrina majoritária, ao tratar de nota promissória, letra de câmbio e cheque, entendia que, prescrita a ação de execução, permanecia o direito à cobrança da dívida, não mais por ação cambial, mas por meio de ação de conhecimento, que era denominada ação de locupletamento ou enriquecimento sem causa.

 

Com efeito, tal ação está prevista no artigo 48 do Decreto 2044/1908, em vigor por conta da reserva prevista no artigo 15 do Anexo II da LUG, bem como no artigo 61 da Lei 7357/85. Como o artigo 48 do Decreto 2044/1908 não estabelecia o prazo prescricional da ação de enriquecimento sem causa, a doutrina majoritária e a jurisprudência entendiam que se aplicava o prazo comum de 20 anos, previsto no artigo 177 do Código Civil de 1916. Isso porque consideravam que (i) a ação não tinha natureza cambial, uma vez que era regulada pelo direito comum; (ii) a ação não tinha defesa limitada, como ocorre na ação cambial; (iii) a ação traduzia pretensão que surgia somente após a extinção do direito à ação cambiária e; (iv) não havia solidariedade entre os coobrigados cambiários. No caso do cheque, a ação de enriquecimento sem causa prescrevia no prazo de dois anos, previsto expressamente na Lei 7357/85.

 

Seguindo essa linha de raciocínio, hoje o prazo para o exercício da ação de enriquecimento sem causa seria de três anos para as notas promissórias e letras de câmbio, de acordo com o artigo 48 do Decreto 2044/1908, complementado pelo novo inciso IV do §3º do artigo 206 do Código Civil3, sendo que para o cheque o prazo permaneceria sendo de dois anos, pois previsto em lei especial.

 

A dúvida permanece, entretanto, em relação aos demais títulos de crédito, em que não há previsão, em lei especial, da possibilidade de ajuizamento da ação de enriquecimento sem causa.

 

Embora a doutrina que consultamos não se manifeste expressamente sobre esse aspecto, entendemos que, sendo o enriquecimento sem causa considerado fonte de obrigações, mesmo antes de sua previsão expressa no Código Civil (artigos 884 a 886), a pretensão de ressarcimento por enriquecimento sem causa é sempre possível de ser exigida judicialmente, para tanto devendo ser observado o prazo de três anos previsto no artigo 206, §3º, IV, contado a partir do fato que enseja o enriquecimento de um e o empobrecimento de outro, qual seja, a prescrição da pretensão de cobrança do título de crédito pela via específica. A prescrição atinge o direito de ação do credor para especificamente cobrar o título de crédito, mas não extingue o direito subjetivo do credor, que poderá obter o reembolso do prejuízo por meio da ação de enriquecimento sem causa.

 

Por fim, vale anotar a lição de Vilson Rodrigues Alves, que vincula a utilização da ação de enriquecimento sem causa à previsão, em lei especial, de prazo para o exercício da pretensão executiva nascida do direito de crédito cartulado. Com efeito, entende o citado autor que, se a lei especial trouxer previsão de prazo específico para o exercício da pretensão executiva, decorrido tal prazo, teria o titular do crédito a possibilidade de cobrá-lo no prazo trienal do artigo 206, §3º, IV, diante do enriquecimento sem causa do devedor. No entanto, na ausência de previsão na lei especial de prazo para o exercício da pretensão executiva, aplicar-se-ia o prazo trienal do art. 206, §3º, VIII, do Código Civil e, decorrido o triênio, não haveria mais a possibilidade de cobrar o crédito nem mesmo via ação de enriquecimento sem causa, uma vez que não poderia haver “dois prazos de prescrição da pretensão condenatória”.

 

Não pretendemos esgotar o assunto, que é vasto e interessantíssimo, no âmbito deste trabalho, mas sim despertar a atenção dos leitores para a drástica redução do prazo para ajuizamento da ação de enriquecimento sem causa, além de provocar, quem sabe, discussões sobre o tema.

 

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1“Art. 903. Salvo disposição diversa em lei especial, regem-se os títulos de crédito pelo disposto neste Código.”

2“Art. 206. Prescreve: (…) §3º Em 3 (três) anos: (...) VIII – a pretensão para haver o pagamento de título de crédito, a contar do vencimento, ressalvadas as disposições de lei especial;”

3“Art. 206. Prescreve: (…) §3º Em 3 (três) anos: (...) IV – a pretensão de ressarcimento de enriquecimento sem causa;”

 

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*Advogada do escritório Pinheiro Neto Advogados

* Este artigo foi redigido meramente para fins de informação e debate, não devendo ser considerado uma opinião legal para qualquer operação ou negócio específico.

© 2004. Direitos Autorais reservados a PINHEIRO NETO ADVOGADOS



 

 

 

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