A inversão do ônus da prova sob a ótica do fornecedor
Alessandra Portilho Gomes*
Muitas questões sobre a aplicabilidade de alguns dispositivos do Código de Proteção e Defesa do Consumidor ainda são controvertidas e pouco exploradas, entre as quais se encontra a inversão do ônus da prova em favor do consumidor.
Tal questão encontra-se amparada no art. 6º, inciso VIII do CDC, o qual constitui como direito básico do consumidor a facilitação da defesa dos seus direitos em juízo, inclusive com a inversão do ônus da prova a seu favor, quando a critério do juiz, no processo civil, for verossímel a alegação ou quando for ele hipossuficiente segundo as regras ordinárias da experiência.
O sistema processual civil instituiu que cabe ao autor comprovar os fatos constitutivos de seu direito, e ao réu a incumbência da prova da existência de fatos extintivos, modificativos ou impeditivos do direito do autor, conforme estatuído no art. 333, I e II, do CPC, respectivamente. Deverá, dessa forma, o consumidor provar o nexo de causalidade existente entre o fato danoso e o dano por ele experimentado e ao réu uma das causas extintivas, modificativas ou impeditivas desse direito.
Entretanto, não se deve impor ônus impossível à parte e até por isso o art. 333, parágrafo único, inciso II dispõe que "é nula a convenção que distribui de maneira diversa o ônus da prova quando tornar excessivamente difícil a uma parte o exercício do direito".
O mencionado dispositivo tem como um de seus fins obstar o uso indevido do processo para obtenção de vantagem indevida por qualquer uma das partes, pois, bastaria ao autor alegar falsamente um direito que a parte adversa não poderia provar o contrário e assim conseguir um título lícito, porém consubstanciado em fatos e intenções ilícitas.
Desta feita, a inversão do ônus da prova é direito do consumidor e com isto não se pretende afirmar que sempre deva o juiz dispensar o consumidor de provar ou então que, com a inversão, a procedência do pedido do consumidor seja automática. Ao contrário, haverá inversão se presente um dos requisitos mencionados, que ensejará a dispensa da prova das alegações do consumidor.
Logo, mesmo caracterizada a relação de consumo, a chamada inversão do ônus da prova deve ser compreendida no contexto da facilitação da defesa dos direitos do consumidor, somente sendo aplicada quando a parte requerente tiver dificuldade para a demonstração de seu direito dentro do que estabelecem as regras processuais comuns, ditadas pelo art. 333 e incisos e presentes os requisitos de verossimilhança das alegações ou hipossuficiência.
Ademais, o referido texto não está a conferir ao juízo um poder discricionário de inverter ou não o ônus da prova, já que tal inversão decorre da própria lei, uma vez presentes os requisitos ensejadores para sua aplicação e que somente são reconhecidos no caso concreto pelo juízo.
No entanto, a jurisprudência de nossos Tribunais tem nos mostrado algumas decisões aplicando de forma objetiva a inversão do ônus da prova, o que em muitos casos prejudica de forma grave o fornecedor de produtos ou serviços, já que vem a lesionar direito constitucional de alta linhagem, qual seja, o princípio do contraditório e da ampla defesa (art. 5º, inciso LV da Carta Magna).
A ocorrência de tal lesão vê-se, frequentemente, no momento em que a prova negativa é carreada ao fornecedor pela inversão do ônus da prova aplicada objetivamente. Para se evitar violações como esta, a inversão do ônus da prova não deve ser automática, devendo ser analisado pelo juízo se estão presentes um dos requisitos ensejadores para sua aplicação.
Como forma de ilustrar a situação acima descrita, temos a inversão do ônus da prova deferida pelo juízo nos casos em que as ações são propostas por pessoas jurídicas, que adquirem serviços como forma de complementar a atividade econômica por ela desenvolvida e que está muito longe da definição de consumidor insculpido pelo art. 2º do CDC, que o define como sendo "toda pessoa física ou jurídica que adquire ou utiliza produto ou serviço como destinatário final".
Observe-se que a expressão ao final utilizada não constitui mero acaso, sendo incontestável, pois, a exclusão deste conceito da pessoa jurídica que adquire bens úteis à atividade econômica por ela desenvolvida. Assim sendo, inaplicáveis os dispositivos da Lei nº 8.078/90 à hipótese descrita, caberia ao consumidor o ônus de provar os fatos constitutivos de seu direito, a teor do disposto no art. 333, inciso I do CPC.
Dessa forma, cabe ao julgador apreciar se é devida ou não a aplicabilidade da disposição contida no art.6º, inciso VIII do CDC, sendo certo que deverá levar em consideração que o mencionado dispositivo não deve proporcionar ao consumidor vantagem indevida ou ainda obstar ao fornecedor o contraditório e a ampla defesa.
O exercício do direito e a inversão do ônus da prova devem estar sujeitos a uma aplicação sistemática, de forma que todas as normas estejam harmonizadas e, sobretudo, que todas as garantias constitucionais sejam respeitadas.
Exatamente para que essas garantias sejam respeitadas é que deve ser vedado ao juiz à aplicação discricionária da inversão do ônus da prova, devendo estar presentes os requisitos da verossimilhança da alegação e/ou da hipossuficiência do autor, sob pena da aplicação objetiva violar frontalmente a garantia constitucional do fornecedor ao contraditório e ampla defesa.
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*Advogada do escritório Siqueira Castro Advogados
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