Constitucionalização superveniente?
Melina Breckenfeld Reck*
No Brasil, há exemplos desse fenômeno: (i) embora o Supremo Tribunal Federal (STF) tenha, histórica e reiteradamente, afastado a possibilidade de cobrança de IPTU progressivo, com a edição da Emenda n. 29/2000, o §1o, do art. 156, da CF passa a admitir expressamente a progressividade; (ii) a Lei 9783/99, no dispositivo relativo à contribuição previdenciária dos inativos, foi julgada inconstitucional, porém a Emenda n. 41/03 fez constar expressamente na Carta a cobrança da contribuição dos inativos, sendo que o E. STF a considerou constitucional, em 18/08/2004, analisando medida cautelar em ADIN; (iii) Lei 9718/98 prevê que a contribuição para o PIS/PASEP e a COFINS seriam pagas pelas pessoas jurídicas de direito privado, ao passo que a Carta de 1988 apenas previa o empregador como sujeito passivo dessas contribuições, no entanto, com o advento da Emenda Constitucional 20/98 (art.195, I), ampliou-se a sujeição passiva, abrangendo, além do empregador, a empresa e a entidade a ela equiparada; (iv) em face de julgados do STF no sentido da inconstitucionalidade de taxa de iluminação pública, foi promulgada a Emenda Constitucional n. 39/2002 prevendo a possibilidade de cobrança, por Municípios e Distrito Federal, de contribuição para o custeio de iluminação pública.
Problematizando o tema, cumpre questionar se, no direito brasileiro, o advento de emenda constitucional, pondo fim à contrariedade de lei em relação à Lei Fundamental, implica a recepção ou convalidação da lei inconstitucional? A fim de solucionar essa indagação, são necessárias algumas considerações sobre fiscalização da constitucionalidade, vício da inconstitucionalidade, reforma constitucional.
A inconstitucionalidade caracteriza-se por ser a mais grave invalidade de um sistema jurídico e pode ser definida como a desconformidade do conteúdo do ato normativo ou do seu processo de elaboração em relação a algum preceito ou princípio constitucional.
Analisando o vício da inconstitucionalidade à luz da distinção entre os planos da existência, validade e eficácia, segundo a qual somente é possível falar em validade e eficácia, se o fato jurídico existir, pois o ser válido (valer), ou inválido (não-valer) e o ser eficaz pressupõem a existência do fato jurídico, ao passo que o existir independe, completamente, de que o fato jurídico seja válido ou de que seja eficaz, conclui-se que se trata de vício que afeta o plano da validade, uma vez que norma existente é norma posta no sistema, enquanto norma válida é aquela que se apresenta em conformidade com a norma superior que lhe confere fundamento, isto é, com a Constituição. Contrariando a Constituição, é norma inválida.
Ainda à luz dessa distinção entre os planos, constata-se que o ser inválida não implica necessariamente que a norma seja ineficaz, na medida em que a validade está na ordem do dever-ser e a eficácia na do ser. Vale dizer, a norma inconstitucional, embora inválida, pode produzir efeitos, eis que a presunção de validade/constitucionalidade permite tal produção de efeitos, no entanto se trata de mera presunção, logo não é possível falar que a lei inconstitucional foi válida, mas tão somente que era presumida/tida/considerada como válida, porém válida nunca foi. Portanto, norma inconstitucional constitui uma norma existente, inválida, que pode ser eficaz, é dizer, que pode operar efeitos.
Desse modo, a decisão judicial que reconhece a inconstitucionalidade atinge o plano da eficácia, de modo que a partir dessa declaração tal norma não surtirá mais efeitos. Quanto aos efeitos produzidos, antes dessa decisão, verificar-se-á, conforme os direitos e princípios envolvidos no caso concreto, a possibilidade ou não de preservar alguns desses efeitos, não obstante tenham sido decorrentes de norma inválida.
Na medida em que uma decisão judicial não possui apenas uma carga eficacial, e sim apresenta várias ao mesmo tempo, a decisão judicial de inconstitucionalidade possui tanto eficácia declaratória de invalidade da norma inconstitucional, conferindo certeza a existência do estado de inconstitucionalidade, quanto eficácia constitutiva de ineficácia, ou seja, constitutiva negativa da eficácia, sendo que, em relação à carga constitutiva, os efeitos da decisão podem operar tanto prospectivamente, quanto retroativamente.
Deveras, separando-se os planos do mundo jurídicio sobre os quais atua a decisão de inconstitucionalidade, isto é, a carga declaratória atinge o plano da validade e a carga constitutiva o da eficácia, não somente se resolve a discussão em torno da eficácia declaratória ou constitutiva da decisão de inconstitucionalidade, mas também se refuta qualquer alegação de paradoxo em relação seja à constatação de que a norma inconstitucional, embora inválida, surta efeitos antes da decisão, seja à possibilidade de, no caso concreto, atribuir-se efeitos prospectivos ou retroativos à decisão.
Desta forma, na declaração de inconstitucionalidade, a atribuição de efeitos ‘ex nunc’ ou ‘ex tunc’ não está vinculada a um critério causal (do vício existente), mas sim a um critério finalístico. Não se considera o tipo de vício que a norma apresenta, e sim a conseqüência que pode acarretar uma ou outra modalidade de efeito. Assim, o efeito ‘ex tunc’ não advém da nulidade da norma, mas da decisão que declara a inconstitucionalidade, a qual poderá ou não retroagir.
No que concerne à sanção e à decisão de inconstitucionalidade, embora seja, por muitos, utilizada a dicotomia nulidade e anulabilidade para explicar o vício, a sanção, a natureza, o valor jurídico da inconstitucionalidade, e inclusive para distinguir os dois tradicionais sistemas de controle da constitucionalidade (austríaco e americano), cumpre afastar qualquer tentativa de adaptar a teoria da inconstitucionalidade a institutos já existentes em outros ramos do direito. Urge, por outro lado, fixar o regime jurídico da inconstitucionalidade, dizer em que o vício consiste, quais são as suas características, suas implicações, sem olvidar que se cuida de vício – contrariedade/desconformidade à Constituição – concernente ao plano da validade.
O regime jurídico da inconstitucionalidade caracteriza-se pelo fato de se tratar de um vício de invalidade (plano de validade), insanável, inconvalidável, a cujo reconhecimento – através da decisão de inconstitucionalidade – pode-se atribuir, consoante o caso concreto, tanto efeitos retroativos quanto prospectivos.
Muito embora no Brasil o tema da natureza da decisão de inconstitucionalidade seja, também, tratado por meio da dicotomia nulidade/anulabilidade, predomina o entendimento que considera a nulidade da norma inconstitucional um princípio constitucional implícito e os efeitos da decisão como sendo, em regra, ex tunc, eis que há temperamentos em decisões do STF que reconhecem a impossibilidade de retroação absoluta da decisão.
Tais moderações do Excelso Pretório, na medida em que não se vinculam à sanção de nulidade, mas sim aos efeitos ex tunc, não implicam transformar a sanção em anulabilidade, tampouco atribuir validade à lei inconstitucional, o que, aliás, é impossível, eis que tal lei, no máximo, poderia ser tida/presumida como válida, mas válida jamais foi.
Neste aspecto, destaque-se que o advento das Leis n° 9.868/99 e n° 9.882/99, permitindo a atenuação dos efeitos retroativos da pronúncia de inconstitucionalidade, não importa considerar anulável a lei inconstitucional, tampouco torna possível a convalidação da lei inconstitucional; a um porque o postulado da nulidade possui esteio constitucional, logo não podem ser maculados ou modificados por lei infraconstitucional; a dois porque não há vínculo necessário entre nulidade e efeitos retroativos, isto é, os efeitos não decorrem do vício de nulidade mas sim da própria decisão; a três porque o próprio STF, antes dessas Leis, em alguns julgados, vinha reconhecendo a necessidade de atenuar a retroação absoluta sem, no entanto, passar a considerar anulável; a quatro porque a atenuação é decorrente da ponderação entre princípios constitucionais, de sorte a não haver eliminação do princípio que esteja em conflito, uma vez que não se aplica a lógica do tudo ou nada, mas sim se recorre à dimensão do peso e à concordância prática.
Assim, por força da separação entre os planos da validade e da eficácia, a modelação dos efeitos ocorre em relação ao plano da eficácia da norma inconstitucional, mesmo porque, embora seja inválida desde o ínicio (exceto em caso de inconstitucionalidade superveniente), tal norma pode ter surtido efeitos.
De tal sorte, reitere-se, a decisão de inconstitucionalidade apresenta tanto natureza declaratória ao se declarar a invalidade, quanto natureza constitutiva ao se determinar, mediante modelação, o grau de ineficácia (ex tunc e ex nunc) da lei inconstitucional.
A par dessas considerações em relação ao vício da inconstitucionalidade, a fim de solucionar a indagação formulada, isto é, para definir, se, com o advento de emenda superveniente compatível à lei inconstitucional, haverá ou não a recepção (novação), não se olvide que o surgimento de uma nova Constituição corresponde a situação completamente diversa da oriunda da reforma constitucional. Logo, quando o poder reformador é exercido, não é possível falar em novação, recepção das leis que apresentavam vício de inconstitucionalidade.
Demais disso, embora possa a lei inconstitucional, em virtude da presunção de validade (que faz com que ela seja tida como válida), apresentar eficácia, isto é, produzir efeitos antes da pronúncia de inconstitucionalidade, sendo o vício da inconstitucionalidade a mais grave invalidade e, por conseguinte, insanável, inconvalidável, cumpre refutar, integralmente, a possibilidade de, com a edição de emenda superveniente, haver convalidação do diploma legislativo que se apresentava desconforme à Lei Fundamental antes do exercício do poder reformador.
Com efeito, àquele que desrespeita a supremacia da Constituição, ao produzir lei desconforme aos ditames constitucionais, não se pode conceder a garantia de que bastará a aprovação de uma emenda constitucional para que a ofensa praticada seja olvidada.
Sendo inegável que as emendas constitucionais, editadas nos limites que lhes são impostos pela própria Constituição, implicam modificações e não substituição ao quadro constitucional anterior, pode-se dizer que servirão, dali por diante, como bom fundamento de validade para as normas produzidas em sua consonância.
Destarte, tratando-se de vício insanável, inconvalidável, não é possível cogitar a possibilidade de a reforma constitucional recepcionar leis originariamente inconstitucionais, tampouco convalidar, sanar tal vício seja retroativa, seja prospectivamente, mesmo porque, reitere-se, trata-se da mais grave invalidade que pode ser verificada no ordenamento jurídico.
Não havendo convalidação prospectiva nem retroativa, o único caminho possível é o legislador, após a promulgação da emenda constitucional, iniciar o processo legislativo para aprovar lei com o conteúdo daquela que se apresentava inconstitucional antes da Emenda.
Por fim, mencione-se que esse caminho foi adotado em relação à contribuição previdenciária dos inativos, vez que, após a E.C. 41/2003, foi editada a Medida Provisória n. 167/2004, de 19 de fevereiro de 2004, prevendo a realização da cobrança de tal contribuição, de modo que não se tentou ressuscitar, mediante convalidação, a Lei 9783/99.
____________
* Advogada do escritório Clèmerson Merlin Clève - Advogados Associados