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A nova Súmula 363 do STJ e sua flagrante inconstitucionalidade

Recentemente o Superior Tribunal de Justiça editou a Súmula nº 363, relatada pelo Ministro Ari Pargendler, com o seguinte conteúdo: “Compete à Justiça estadual processar e julgar a ação de cobrança ajuizada por profissional liberal contra cliente.”

6/11/2008


A nova Súmula 363 do STJ e sua flagrante inconstitucionalidade

Alexandre Reis Pereira de Barros*

Recentemente o STJ editou a Súmula nº 363, relatada pelo Ministro Ari Pargendler, com o seguinte conteúdo:

"Compete à Justiça estadual processar e julgar a ação de cobrança ajuizada por profissional liberal contra cliente."

Tal posicionamento jurisprudecial foi fruto de vários julgamentos de conflitos de competência entre juízes de direito e do trabalho, mormente após a alteração do art. 114 da Constituição da República (clique aqui), tendo em vista a competência do Tribunal da Cidadania para julgar incidentes desta natureza, fixada no art. 105, I, "d" /CF.

Ocorre que tal verbete vem causando espécie aos operadores do Direito do Trabalho, já que contraria totalmente o que se apregoou, após a alteração da competência da Justiça do Trabalho pela Emenda Constitucional nº 45, de 31 de dezembro de 2004  (clique aqui). É que (ainda que haja vozes dissonantes entre os próprios juslaboralistas) a maioria da doutrina e da própria jurisprudência, inclusive do STF, vem entendendo que a Justiça do Trabalho teve suas atribuições ampliadas, passando a julgar não só os conflitos decorrentes da relação de emprego, mas também da relação de trabalho lato sensu1.

Estes estudos visam analisar o que levou o STJ a adotar tal entendimento e sua total discrepância com o Texto Constitucional, em seu art. 114, inciso I, com a redação dada pela EC 45/2004.

Pois bem: a análise de qualquer enunciado de súmula não prescinde do estudo dos precedentes que a originaram. Sendo assim, é necessário verificar qual o conteúdo das decisões que deram origem à novel Súmula 363 do STJ. Os precedentes são os Conflitos de Competência 52.719-SP, 65.575-MG, 93.055-MG, 15.566-RJ, 30.074-PR, 36.517-MG, 36.563-SP, 46.562-SC e 51.937-SP.

No CC 52.719-SP, em ação de arbitramento e cobrança de honorários advocatícios perante a 3ª Vara Cível da Comarca de Mogi Guaçu/SP, o juiz declarou sua incompetência para julgamento do litígio, determinando a remessa dos autos à Justiça do Trabalho, sob o fundamento de que a EC 45/2004 transferiu para a Justiça Laboral a competência para julgamento de todas as ações que se originam de relações de trabalho. Por sua vez, entendendo-se também incompetente, o Juiz do Trabalho local suscitou o incidente processual, entendendo que "nem todas as formas de prestação de serviços são alcançadas pela norma constitucional do art. 114. Em verdade, o advogado que presta serviços a inúmeros clientes, profissional liberal que trabalha por conta própria, equipara-se a uma pessoa jurídica, sendo comum que ele próprio possua empregados em seu escritório de advocacia. (...) As efetivas relações de trabalho que a Justiça do Trabalho deverá analisar exigem que o prestador de serviços seja pessoa física e preste uma atividade pessoal, e que seja, como o empregado, um hipossuficiente".

Ao julgar o Conflito de Competência em tela, o STJ, através de sua 1ª Seção, em acórdão relatado pela Ministra Denise Arruda, decidiu que a competência é da Justiça comum estadual, ao fundamento de que "a demanda em questão possui natureza unicamente civil e se refere a contrato de prestação de serviços advocatícios, celebrado entre profissionais liberais e seus clientes, razão pela qual a relação jurídica existente entre os autores e os réus não pode ser considerada como de índole trabalhista."

Também foi precedente da Súmula 363 o CC 65.575-MG (1ª Seção; Rel. Min. Castro Meira), que trata de conflito negativo de competência instaurado entre as Justiças estadual e do Trabalho, em ação de cobrança de honorários contratuais proposta em desfavor do Município de Coromandel/MG. Diante da alteração de competência trazida pela Emenda Constitucional nº 45/2004, o Juízo de Direito da 20ª Vara Cível de Belo Horizonte/MG remeteu o feito à Justiça Laboral para processamento. Entendeu o magistrado, em síntese, que "não se pode negar que a cobrança de honorários advocatícios envolve relação de trabalho, relação profissional. Dessa forma, a competência para o julgamento de ações tais como a presente passa a ser da Justiça do Trabalho". O Juízo da Vara do Trabalho de Patrocínio/MG, para quem foi enviada ação, por sua vez, igualmente declinou da competência, tendo suscitado conflito negativo a ser dirimido pelo STJ. Sustentou o juiz trabalhista ser a competência da Justiça estadual, sob o fundamento de que "a pretensão autoral não está abrangida pela nova competência atribuída pelo texto constitucional a esta Especializada, porquanto a prestação de serviços advocatícios caracteriza-se como relação de consumo e, como tal, deve ser dirimida pela Justiça comum".

Ao decidir, uma vez mais, o STJ entendeu ser a Justiça comum a competente para processar a demanda, ao fundamento de que "mesmo com a ampliação da competência da Justiça do Trabalho, em decorrência da alteração da expressão ‘relação de emprego' para 'relação de trabalho', a EC nº 45/04 não retirou a atribuição da Justiça estadual para processar e julgar ação alusiva a relações contratuais de caráter eminentemente civil, diversa da relação de trabalho. Com efeito, é cediço que a competência ratione materiae se define pela natureza jurídica da controvérsia, delimitada pelo pedido e pela causa de pedir. Na espécie, o autor da ação pretende receber honorários advocatícios tidos como pactuados com o Município de Coromandel/MG. Ante a índole civil da pretensão que objetiva a cobrança de honorários profissionais supostamente devidos pela prestação de serviços advocatícios, forçoso é concluir que o termo 'relação de trabalho' não abarca a relação jurídica contratual existente entre o advogado e o Município contratante, o que afasta a competência da Justiça laboral."

Passemos ao CC 93.055-MG (1ª Seção; rel. Min. Teori Albino Zavaski), outro precedente da Súmula 363, cuja ementa seguiu os mesmos entendimentos anteriores:

"CONFLITO NEGATIVO DE COMPETÊNCIA. JUSTIÇA DO TRABALHO E JUSTIÇA ESTADUAL. EXECUÇÃO DE HONORÁRIOS PROFISSIONAIS PREVISTOS EM CONTRATO DE PRESTAÇÃO DE SERVIÇOS ADVOCATÍCIOS. RELAÇÃO JURÍDICA DE DIREITO CIVIL. ALTERAÇÃO INTRODUZIDA PELA EMENDA CONSTITUCIONAL Nº 45/2004. INEXISTÊNCIA DE RELAÇÃO DE TRABALHO. COMPETÊNCIA DA JUSTIÇA ESTADUAL.

1. Não se enquadra na competência da Justiça do Trabalho, nem mesmo com a ampliação da sua competência promovida pela EC nº 45/2004, causa relativa à cobrança de honorários profissionais previstos em contrato de prestação de serviços advocatícios, movida por advogada contra cliente. Além de a relação jurídica que se estabelece entre as partes ser disciplinada pelo direito civil, não há vínculo trabalhista entre os sujeitos da relação jurídica litigiosa, nem qualquer espécie de relação de trabalho. Por isso, a competência é da Justiça Comum. Precedentes: CC 90.707-MS, 2ª Seção, Min. Humberto Gomes de Barros, DJ de 26.11.2007; CC 46.722-PB, 2ª Seção, Min. Castro Filho, DJ de 3.4.2006; CC 65.575-MG, 1ª Seção, Min. Castro Meira, DJ de 27.8.2007.

2. Conflito conhecido e declarada a competência do Juízo de Direito da 23ª Vara Cível da Comarca de Belo Horizonte/MG, o suscitado."

O CC 15.566-RJ, também citado como precedente, não serve à análise em questão, por ser de 1996, muito antes da Emenda Constitucional 45/2004, quando foi ampliada a competência da Justiça Laboral. O mesmo se diz em relação aos conflitos de números 30.074, 36.517 e 36.563. Já o CC 46.562-SC, embora tenha sido julgado pelo STJ em 2005, teve origem em ação de cobrança proposta na Justiça comum estadual também anteriormente à EC 45/2004, o que, uma vez mais, não serve ao presente estudo.

Por fim, o CC 51.937-SP (2ª Seção; Rel. Min. Menezes Direito) teve a seguinte ementa:

"CONFLITO NEGATIVO DE COMPETÊNCIA. INDENIZAÇÃO. CONTRATO DE PRESTAÇÃO DE SERVIÇOS.

1. Verifica-se da petição inicial e da causa de pedir que a natureza do pleito não tem índole trabalhista. Os autos tratam de ação de indenização, não estando em discussão qualquer obrigação de índole trabalhista ou de vínculo empregatício, mas, essencialmente, pedido relacionado à indenização decorrente de rescisão de contrato de prestação de serviços, o qual, por si só, não caracteriza relação de trabalho para efeito de definir a competência em favor da Justiça do Trabalho após a Emenda Constitucional nº 45.

2. Hipótese em que há simples pedido de compensação por ter deixado o autor de ser empregado, passando a ser prestador de serviço. O dano teria ocorrido, então, quando prestador de serviços para a ré, ausente qualquer pedido de índole trabalhista.

3. Conflito conhecido para declarar competente o Juízo da 2ª Vara Cível de Araçatuba/SP."

Neste último, em que pese ter podido o autor pleitear nulidade do contrato de natureza civil e o reconhecimento de vínculo empregatício, preferiu não fazê-lo, optando por requerer indenização por perdas e danos decorrentes de fraude contratual.

O que se percebe nos incidentes em questão é que o STJ tem como marco diferenciador entre relação de trabalho (lato sensu) e relação de emprego apenas a natureza do pedido, ou seja, se se trata de verba trabalhista típica ou de reconhecimento de vínculo de emprego, sem analisar a relação jurídica subjacente à demanda.

Ocorre que há pelo menos dois equívocos na interpretação dada pelo Tribunal da Cidadania ao artigo 114 do Texto Magno. O primeiro deles é dar ao mesmo uma interpretação restritiva, como se a Emenda Constitucional em nada houvesse alterado a competência da Justiça do Trabalho. Os ministros do STJ vêm entendendo a relação de trabalho como sinônimo de relação de emprego e, com isso, não teria havido qualquer mudança em função da EC 45/2004. É o que se depreende da decisão do CC 93.055, acima mencionada: "Além de a relação jurídica que se estabelece entre as partes ser disciplinada pelo direito civil, não há vínculo trabalhista entre os sujeitos da relação jurídica litigiosa, nem qualquer espécie de relação de trabalho. Por isso, a competência é da Justiça Comum." Justifica ainda o STJ, em uma de suas decisões (no CC 65.575-MG, também já mencionado), corroborando seu entendimento, que "o legislador, antes da Emenda nº 45/04, já teria utilizado o termo 'relação de trabalho’ como sinônimo de 'relação de emprego', como se observa no caput e no inciso XXIX do artigo 7º da Constituição Federal."

Tal interpretação, data venia, não se mostra a melhor. De fato, a expressão "relação de trabalho", constante do inciso I do art. 114, da Constituição da República, deve ser interpretada de forma ampliativa, para atingir o objetivo do legislador de criar uma Justiça Especializada na proteção do trabalho humano. Até porque a redação anterior do art. 114/CF assim dizia: "Compete à Justiça do Trabalho conciliar e julgar os dissídios individuais e coletivos entre trabalhadores e empregadores (...)". Como se vê, apesar de tal texto não fazer menção a "empregados", deixava claro que em um dos pólos da relação de direito material deveria estar o empregador e não o mero tomador de serviços ou contratante de obrigação de natureza civil: “Ante a inviabilidade de falar-se em empregador como um dos pólos de uma relação jurídica sem que no outro pólo o sujeito que se apresenta seja o empregado, interpretava-se por ‘trabalhador’ a figura do empregado."2 Logo, a relação era mesmo a de emprego.

Por que então a expressão "empregadores" não teria sido repetida no novo artigo 114? Justamente porque o legislador constituinte pretendeu alargar a competência da Justiça do Trabalho, permitindo que os demais trabalhadores, que não tenham um efetivo vínculo empregatício, pudessem se valer de suas vantagens, notadamente a celeridade e informalidade, "pois a mens legis possui, a nosso ver, forte conotação de inclusão social daqueles trabalhadores – não empregados – que, de fato, estão em situações econômicas e sociais que exijam um rápido e efetivo acesso à Justiça."3

A tal respeito, vale registrar a manifestação do então presidente da AMATRA, Grijalbo Fernandes Coutinho, que participou ativamente do processo de discussão e aprovação do projeto que resultou na Emenda Constitucional 45/2004:

"(...) É de grande relevância a fixação da competência da Justiça do Trabalho, seja qual for o regime contratual a que esteja submetido o trabalhador, ampliada para analisar todas as controvérsias oriundas da força de trabalho humano, pela sua natural vocação social e pela própria especialização da matéria. A divisão de competências entre justiças para julgar o valor trabalho, além da notória irracionalidade, consagra a fragmentação obreira verificada na fábrica da nova ordem econômica, reduzindo milhões de pessoas ao patamar dos que não têm acesso ao Judiciário que julga as causas dos trabalhadores. Era com se ‘os sem direitos trabalhistas' também pudessem ser chamados de 'os sem justiça'. O que não mudou ao longo dos anos foi a competência da Justiça do Trabalho, restrita à apreciação dos casos entre empregadores e empregadores, mas nem mesmo em toda a sua extensão. (...) Ao invés dos termos restritos do original artigo 114 da Constituição Federal, que disciplinava a relação 'entre trabalhadores e empregadores', agora o novo texto da reforma manda julgar 'as ações oriundas da relação de trabalho', sem delimitar os atores deste processo. Havendo relação de trabalho lato sensu, seja de emprego ou não, os seus contornos serão apreciados pelo juiz do trabalho. (...) A Justiça do Trabalho está mais bem aparelhada para julgar os referidos casos e a sua especialidade é o trabalho humano. Hoje, é verdade, muitos desses trabalhadores autônomos sequer levam os seus litígios para os outros ramos do Judiciário, havendo uma demanda reprimida que será revelada nos próximos meses, propiciando ao trabalhador e ao tomador dos serviços um verdadeiro acesso à justiça. Aliado ao conjunto de fatores que justificam o deslocamento da competência, deve estar presente a garantia da maior rapidez no julgamento dos processos, uma das características da Justiça do Trabalho em todo o país, que agora mais do que nunca está a merecer o nome que ostenta."4

Assim, após o advento da EC 45/04, a Justiça do Trabalho deixou de ter como principal competência o exame dos litígios relacionados com o contrato de trabalho, para julgar as ações que disserem respeito ao trabalho da pessoa natural em geral. "Daí que agora lhe compete apreciar também as ações envolvendo a atividade de prestadores autônomos de serviço, tais como corretores, médicos, engenheiros, arquitetos ou outros profissionais liberais, além de transportadores, empreiteiros, diretores de sociedade anônima sem vínculo de emprego, representantes comerciais, consultores etc., desde que desenvolvida a atividade diretamente por pessoa natural."5

Afinal, se, de acordo com o STJ, nada mudou, por que mudou a redação do Texto Constitucional? Ao que parece, os ministros do Tribunal da Cidadania deram ao artigo 114 o que a doutrina chama de "interpretação retrospectiva", ou seja, interpretaram um texto novo (no caso, o do artigo 114 da Constituição) sob um viés conservador, mantenedor de uma ordem jurídica extirpada pelo novo texto constitucional, o que merece o mais veemente repúdio.6

Ora, a alteração da redação do artigo 114 foi feita justamente para desvencilhar, definitivamente, a competência da Justiça do Trabalho do reconhecimento do vínculo de emprego, enquanto trabalho subordinado, prestado de forma habitual, pessoal e remunerada (cf. arts. 2º e 3º da CLT), com o escopo de permitir a máxima proteção ao valor social do trabalho (art. 1º, IV, CF), da cidadania7 (art. 1º, II, CF) e da própria dignidade da pessoa humana (art. 1º, III, CF), cabendo então falar-se em efeito expansionista dos direitos trabalhistas, ao contrário da raquítica e pouco edificante interpretação dada pelo STJ.

O segundo equívoco cometido pelos ministros do Superior Tribunal de Justiça está em delimitar a competência da Justiça do Trabalho em função da natureza dos pedidos formulados na demanda: se de natureza trabalhista, a competência é da Justiça Laboral; se de natureza civil (ou qualquer outra que não prevista na legislação trabalhista), a competência é da Justiça comum estadual. É o que se depreende dos julgados acima transcritos.

Até pouco tempo atrás, doutrina e jurisprudência vinham, de fato, divergindo sobre a competência da Justiça do Trabalho, quando o pedido formulado por trabalhador, em reclamação trabalhista, não versasse sobre parcela salarial ou sobre direito previsto na legislação trabalhista. O maior e mais representativo exemplo era a questão dos danos morais provocados pelo empregador (através de ofensas físicas, verbais ou mesmo o atual assédio moral), matéria tipicamente de índole civil, mas que há tempos deixou de suscitar dúvidas sobre a competência da Justiça Especializada. Não custa relembrar que há não muito tempo também deixou de ser polêmica a questão da competência da Justiça do Trabalho para julgar pedidos de reparação por danos morais decorrentes de acidente do trabalho, após o julgamento, pelo Supremo Tribunal Federal, à unanimidade, do Conflito de Competência 7.204/MG.

Ocorre que na Justiça do Trabalho não se aplicam apenas normas de caráter estritamente trabalhista, como se extrai da leitura do art. 8º da CLT e seu parágrafo, que autorizam a aplicação de outros ramos do direito quando do julgamento de ações trabalhistas. Há uma decisão paradigmática do STF que bem elucida a questão:

"À determinação da competência da Justiça do Trabalho não importa que dependa a solução da lide de questões de direito civil, mas sim, no caso, que a promessa de contratar, cujo alegado conteúdo é o fundamento do pedido, tenha sido feita em razão da relação de emprego, inserindo-se no contrato de trabalho" (STF, Pleno, MV, CC nº 6.959-6. Rel. Min. Sepúlveda Pertence. DJU 22.02.91, p. 1.259).

Tal decisão se encaixa como luva ao tema ora enfocado. De fato, não é a natureza da matéria que determina a competência da Justiça do Trabalho, mas sim a circunstância de que os fatos que originam o pedido judicial tenham ocorrido em função do contrato de emprego (e, agora, após a EC 45, também da relação de trabalho lato sensu).

Sobre o tema, vale transcrever as palavras do Ministro do TST, Mauricio Godinho Delgado8:

"... o aspecto essencial a determinar a competência, nos parâmetros constitucionais, é a presença de uma lide tipicamente entre empregado e empregador, em derivação do contrato de trabalho, colocando tais partes como credores e devedores recíprocos. Litígio, portanto, que tenha como causa o contrato de trabalho ou seja por ele absorvido – não importando se o pedido for de natureza empregatícia e a lei regulamentadora, trabalhista."

Assim, independentemente da natureza do instituto, ou do ramo do Direito ao qual se enquadra o pedido formulado na petição inicial, se a lesão ao bem jurídico da vítima decorreu de um dever do estabelecimento/empregador (ou, repita-se, do contratante ou tomador de serviços, em se tratando de relação de trabalho lato sensu), implícito ou explícito, não resta dúvida que a competência é da Justiça do Trabalho.

Comentando a decisão do STF supra mencionada (no CC 6.959-6), Antônio Álvares da Silva9 alerta que:

"Toda questão, de qualquer natureza, que for conteúdo de uma relação de emprego ou de trabalho, obrigação de contratar, obrigação de dar um apartamento sob certa condição, inscrição em plano de saúde, transferência de quotas, promessa de empréstimo, e tudo mais que provier do contrato de trabalho, será competência da Justiça do Trabalho."

Há de se registrar ainda que, na mesma esteira de entendimento, o Ministro Marco Aurélio, quando o julgamento do CC 7.204/MG pelo STF (que versava sobre a competência para julgar ações reparatórias por acidente do trabalho), em posição isolada (apenas quanto aos fundamentos do acórdão), defendeu que, antes mesmo da EC 45/04, a competência já seria da Justiça do Trabalho, em função das obrigações anexas ao contrato do trabalho.

O jurista Carlos Henrique Bezerra Leite10 segue a mesma linha interpretativa:

"Importante assinalar que antes da EC 45/2004 já havia entendimento doutrinário e jurisprudencial no sentido de que as ações que tivessem por objeto a indenização por danos morais propostas pelo empregado, estariam sob a competência da Justiça do Trabalho, ainda que o juiz tivesse de aplicar normas de direito civil. O critério era muito simples: havendo lide entre empregado e empregador, mesmo em se tratando de ação indenizatória por dano moral, a competência seria da Justiça do Trabalho, por força do critério ratione personae adotado pela primeira parte do art. 114 da CF, em sua redação original."

Portanto, se não é o seguimento do Direito que define se uma ação entre empregado e empregador será de competência da Justiça do Trabalho, não se pode concluir, como faz o STJ, que, se a pretensão for de natureza civil, tal característica, por si só, afastaria a competência da Justiça Obreira. Até porque, se o manifesto escopo da alteração do art. 114/CF pela Emenda Constitucional 45 foi alargar a competência da Justiça do Trabalho, “paradoxal se mostra o entendimento que a encurta, dela amputando os litígios decorrentes da prestação de serviço por autônomos, entre os quais sobressaem os profissionais liberais”.11

Por fim, ainda que en passant, também merece crítica o entendimento de que o vínculo entre advogado e cliente teria natureza de relação de consumo (como vêm decidindo alguns magistrados, inclusive motivando o CC 65.575-MG, acima transcrito). É que o advogado, em seu mister, não pratica relação de consumo (até mesmo por impedimento legal), mas relação de trabalho, não podendo praticar atos de mercancia, captação de causas ou, ainda, utilizar-se de agenciador. Na verdade, a atividade do advogado poderia até mesmo ser qualificada como uma relação de mandato (cf. arts. 653/666 do CCB), se não estivesse regulada pela Lei 8.906/94 (EOAB). Mas não será nunca uma relação de consumo.

Explico. O advogado, em seu mister, jamais poderá ser considerado um “fornecedor de serviços”, na esteira do que preconiza o art. 3º da Lei 8.078/90 (CDC), justamente por faltar o caráter mercadológico de sua atividade. Em seu labor, não só o advogado, mas todos os profissionais liberais, não visam ao lucro e sequer há que se falar em mercado, “noção hostil à dignidade da pessoa do trabalhador. Na relação de trabalho, o prestador de serviço não vende sua energia laborativa, não almeja lucro, apenas presta serviço mediante remuneração. Depende do trabalho para viver, não para atuar como negociante no mercado. Trabalho é fator de produção, não objeto de negócio no mercado de consumo.”12 Logo, enquadrar o labor do profissional liberal como modalidade de relação de consumo vai de encontro do princípio constitucional da dignidade da pessoa humana.

De fato, na relação entre advogado e cliente (podendo-se afirmar o mesmo em relação a todos os profissionais liberais) há diversos elementos que a afastam de uma típica relação de consumo, a saber: pessoalidade, o seu caráter intuito personae, a ausência de concorrência comercial e da prática de atos de mercancia. Por outro lado, em contrapartida, tem-se o elemento fiduciário como uma de suas principais características, já que a relação se baseia, precipuamente, na confiança – mais até do que no preço ajustado dos honorários – tanto é assim que o próprio Estatuto da OAB recomenda ao advogado que renuncie ao mandato se perceber que o cliente nele já não mais confia (o que seria inconcebível em uma relação de consumo típica). Tampouco se pode falar na vulnerabilidade, característica dos consumidores típicos (cf. art. 4º, inc. I do CDC), já que, na maioria das vezes, é o profissional liberal a parte mais fraca na relação.

Logo, em contraposição ao que vem decidindo o STJ, a Justiça do Trabalho é, sim, competente para julgar os litígios entre o advogado e seu cliente13. Esse foi, aliás, o entendimento consubstanciado no Enunciado nº 23 da 1ª Jornada de Direito Material e Processual na Justiça do Trabalho:

COMPETÊNCIA DA JUSTIÇA DO TRABALHO. AÇÃO DE COBRANÇA DE HONORÁRIOS ADVOCATÍCIOS. AUSÊNCIA DE RELAÇÃO DE CONSUMO. A Justiça do Trabalho é competente para julgar ações de cobrança de honorários advocatícios, desde que ajuizada por advogado na condição de pessoa natural, eis que o labor do advogado não é prestado em relação de consumo, em virtude de lei e de particularidades próprias, e ainda que o fosse, porque a relação consumeirista não afasta, por si só, o conceito de trabalho abarcado pelo artigo 114 da CF.”

Assim, a nova Súmula 363 do Superior Tribunal de Justiça encontra-se contaminada pela inconstitucionalidade, em clara afronta ao atual artigo 114, inciso I do Texto Maior, dissociando-se dos verdadeiros valores constitucionais, no sentido de se construir uma nova justiça social, até porque “a Justiça do Trabalho possui uma vocação natural, que se reverte em autêntica missão, qual seja: a proteção do valor social do trabalho e da dignidade da pessoa humana.”14

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Referências Bibliográficas:

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BONAVIDES, Paulo. Curso de Direito Constitucional. 20ª ed. São Paulo: Malheiros Editores, 2007.

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DELGADO, Mauricio Godinho. Curso de Direito do Trabalho. 6ª ed. São Paulo: LTr, 2007.

_________. Curso de Direito do Trabalho. 7ª ed. São Paulo: LTr, 2008.

GRINOVER, Ada Pellegrini et alii. Código Brasileiro de Defesa do Consumidor: comentado pelos autores do anteprojeto. 8ª ed. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2004.

LEITE, Carlos Henrique Bezerra. Curso de Direito Processual do Trabalho. 5ª ed. São Paulo: LTr, 2007.

________. Curso de Direito Processual do Trabalho. 6ª ed. São Paulo: LTr, 2008.

MALLET, Estevão. “Apontamentos sobre a Competência da Justiça do Trabalho após a Emenda Constitucional n. 45”. In: Revista do Tribunal Superior do Trabalho. Brasília, vol. 71, n. 1, jan/abr/2005.

PAMPLONA FILHO, Rodolfo. “A nova competência da Justiça do Trabalho (Uma contribuição para a compreensão dos limites do novo art. 114 da Constituição Federal de 1988)”. In: Revista LTr. 70-01. São Paulo: LTr, 2006.

PINTO, José Augusto Rodrigues. Processo trabalhista de conhecimento. 7ª ed. São Paulo: LTr, 2005.

ROMITA, Arion Sayão. “Prestação de serviços por trabalhadores autônomos: relação de trabalho ou relação de consumo?”. In: Revista LTr. 70-08. São Paulo: LTr, 2006.

SILVA, Antônio Álvares. Pequeno Tratado da Nova Competência Trabalhista. São Paulo: LTr, 2005.

SOUTO MAIOR, Jorge Luiz. “Em defesa da ampliação da competência da Justiça do Trabalho”. In: Revista LTr. 70-01. São Paulo: LTr, 2006.

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1 Apesar de ser tema bastante conhecido pelos operadores do Direito do Trabalho, permitimo-nos relembrar a distinção entre relação de trabalho e relação de emprego: “A primeira expressão tem caráter genérico: refere-se a todas as relações jurídicas caracterizadas por terem sua prestação essencial centrada numa obrigação de fazer consubstanciada em labor humano. Refere-se, pois, a toda modalidade de contratação de trabalho humano modernamente admissível. A expressão relação de trabalho englobaria, desse modo, a relação de emprego, a relação de trabalho autônomo, a relação de trabalho eventual, de trabalho avulso e outras modalidades de pactuação de prestação de labor (como trabalho de estágio, etc.). Traduz, portanto, o gênero a que se acomodam todas as formas de pactuação de prestação de trabalho existentes no mundo jurídico atual. (...) A relação de emprego, do ponto de vista técnico-jurídico, é apenas uma das modalidades específicas da relação de trabalho juridicamente configuradas. Corresponde a um tipo legal próprio e específico, inconfundível com as demais modalidades de relação de trabalho ora vigorantes.” (DELGADO, Mauricio Godinho. Curso de Direito do Trabalho. 7ª ed. São Paulo: LTr, 2008, págs. 285/286) Destaque no original.

2 PAMPLONA FILHO, Rodolfo. “A nova competência da Justiça do Trabalho (Uma contribuição para a compreensão dos limites do novo art. 114 da Constituição Federal de 1988)”. In: Revista LTr. 70-01. São Paulo: LTr, 2006, pág. 39.

3 LEITE, Carlos Henrique Bezerra. Curso de Direito Processual do Trabalho. 6ª ed. São Paulo: LTr, 2008, p. 212.

4 Apud LEITE, Carlos Henrique Bezerra. Ob. cit., págs. 213/215.

5 MALLET, Estevão. “Apontamentos sobre a Competência da Justiça do Trabalho após a Emenda Constitucional n. 45”. In: Revista do Tribunal Superior do Trabalho. Brasília, vol. 71, n. 1, jan/abr/2005, pág. 200.

6 Vale aqui invocar os ensinamentos de Luís Roberto Barroso: "Atente-se para a lição mais relevante: as normas legais têm de ser reinterpretadas em face da nova Constituição, não se lhes aplicando, automática e acriticamente, a jurisprudência forjada no regime anterior. Deve-se rejeitar uma das patologias crônicas da hermenêutica constitucional brasileira, que é a interpretação retrospectiva, pela qual se procura interpretar o texto novo de maneira que ele não inove nada, mas, ao revés, fique tão parecido quanto o possível com o antigo." (BARROSO, Luís Roberto. Interpretação e Aplicação da Constituição. 2ª ed. São Paulo: Ed. Saraiva, 1998, p. 67)

7 O que se mostra deveras paradoxal, já que o Superior Tribunal de Justiça se auto-intitula o “Tribunal da Cidadania”, conforme consta, inclusive, em sua página eletrônica.

8 In: Curso de Direito do Trabalho. 6ª ed. São Paulo: LTr, 2007, p. 627.

9 In: Pequeno Tratado da Nova Competência Trabalhista. São Paulo: LTr, 2005, p. 234.

10 In:Curso de Direito Processual do Trabalho. 5ª ed. São Paulo: LTr, 2007, p. 234.

11 ROMITA, Arion Sayão. “Prestação de serviços por trabalhadores autônomos: relação de trabalho ou relação de consumo?”. In: Revista LTr. 70-08. São Paulo: LTr, 2006, pág. 903.

12 ROMITA, Arion Sayão. Ob. cit., pág. 908.

13 O mesmo podendo ser dito, repita-se, em relação aos demais profissionais liberais (v.g., médicos, dentistas, arquitetos, contabilistas, engenheiros, veterinários etc.), o que, uma vez mais, demonstra o lamentável equívoco da Súmula 363/STJ.

14 SOUTO MAIOR, Jorge Luiz. “Em defesa da ampliação da competência da Justiça do Trabalho”. In: Revista LTr. 70-01. São Paulo: LTr, 2006, pág. 14.

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* Advogado em Belo Horizonte. Professor de Direito Processual Civil e Direito Processual do Trabalho em cursos de graduação e pós-graduação, além de cursos preparatórios para concursos. Mestre em Direito do Trabalho pela PUC-Minas.

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