Os Justiceiros
Miguel Reale Júnior*
Espanta, sem dúvida, ter se aventado essa hipótese, pois fere o alicerce sobre o qual se assenta a relação com o paciente, ou seja, a confiança e a lealdade, transformando-se o psicólogo em testemunha, e a livre informação do cliente, que nele confia, em confissão de um crime, registrada na polícia com a autoridade e fidedignidade de um testemunho qualificado.
Sem dúvida, um dos mais graves problemas sociais de nosso país está na violência doméstica, maus tratos e lesões corporais, bem como de violência sexual, estupro e atentados violentos ao pudor, realizados dentro de casa. São vítimas não só as crianças, mas também a mulher e os velhos e até os moços. Grande parte dessas violências, maus tratos e lesões, são produzidas pelas próprias mães sobre um dos filhos.
Se o problema é grave em si, acentua-se e torna-se irreversível se institucionalizado em um Boletim de Ocorrência e em um processo criminal, o filho como vítima, depondo contra a mãe ou o pai, que estarão na ponta da mesa na condição de réus. E o psicólogo, o desencadeador não autorizado do procedimento criminal, assistindo de camarote, como testemunha presencial da confissão, ao drama judicial que destrói de vez a família do cliente, seja ele a criança vítima ou a mãe agressora.
Além de questões de ordem processual penal que exigem a representação da vítima para se registrar e dar continuidade a uma notícia de crime de lesões corporais leves e crimes sexuais, não pode o psicólogo dar-se a autorização para delatar à polícia um fato sem a expressa anuência da vítima, muitas vezes ardorosamente desejosa de que o acontecido não seja de conhecimento público, que sua família seja preservada, que não seja o parente, pai, mãe, padrasto, irmão, irmã levados à barra dos tribunais.
Imagino como seja a sessão de análise após ter o psicólogo delatado o paciente, o pai que cometeu violência, maus tratos ou lesões contra o filho de seis anos. Começa a consulta por dizer o psicólogo:
_ “por uma questão de lealdade devo informar que fui à delegacia noticiar a violência que me relatou na última sessão. Assim, se receber uma notificação da delegacia, saiba que o assunto é este”. Bem! E como transcorreram de lá pra cá as coisas em casa?”
Ou senão, sendo o cliente a criança, o psicólogo informa:
“Pedrinho, seu pai deve receber uma notificação da polícia, não se assuste, é que, diante do seu relato dos bofetões que recebeu, dei parte à polícia e você também será chamado para depor e deve submeter-se a um exame de corpo de delito. Mas isso passa rápido, uma ou duas tardes.”
O psicólogo não pode, terminada a consulta, colocar o colete de policial justiceiro e querer fazer justiça com as próprias mãos a respeito das injustiças (algumas imaginárias) de que tem conhecimento no seu consultório, um confessionário a ser preservado. A confissão de ter apanhado ou de ter batido foi fruto de um largo processo de abertura de alma a permanecer enclausurado naquelas quatro paredes e a ter continuidade se a confiança perdurar cimentando a relação com o psicólogo.
Do contrário, o Conselho Federal de Psicologia deve baixar uma resolução determinando que em frente à cadeira do paciente haja um aviso: “tudo que disser pode ser usado contra você”. Aí sim, concordo com a figura do psicólogo justiceiro.
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* Jurista, ex-ministro da Justiça e sócio do escritório Reale Advogados Associados.