Migalhas de Peso

Bate Outra Vez

Imortal é quem pelos seus bons feitos transcende as fronteiras do seu tempo. É quem não tendo que morrer nunca some em pessoa, mas fica.

30/10/2008


Bate Outra Vez

Edson Vidigal*

Imortal é quem pelos seus bons feitos transcende as fronteiras do seu tempo. É quem não tendo que morrer nunca some em pessoa, mas fica.

Imortais são, por exemplo, os poetas para os quais há a eternidade do amor, efêmera conquanto, enquanto dure, e assim lecionava Vinicius.

Angenor de Oliveira, o Cartola, nem precisou da glória das academias para ser imortal.

Quem o conheceu bem de perto diz que ele era de uma altivez quase principesca, mas sem arrogância e de uma humildade suave, mas sempre altaneira.

Soube viver sem concessões, sem abrir mão do seu jeito manso e simples de lidar com as pessoas e de encarar as coisas, de se inspirar até em cordas de aço. Era a ternura em pessoa.

Nunca ligou para fama nem para dinheiro. Fazia da dignidade uma convocação permanente ao trabalho. Sempre trabalhou e nunca teve vergonha do trabalho ou medo de trabalhar. Trabalhou até como despachante.

Despachante, Cartola? Sim, na adolescência lhe pagavam para deixar nas encruzilhadas os despachos de macumba. Não acreditava naquelas coisas. Fazia a sua parte encarando aquilo como um trabalho normal.

Fundou a Escola de Samba da Mangueira, mas a sua inspiração voltada mais para o telúrico foi suavizando o samba em seus batuques e letras, multiplicando-o em formosas canções.

O que estás fazendo aí, Cartola?

Era Sérgio Porto, o Stanislaw Ponte Preta, a caminho do Banco do Brasil onde trabalhava na parte da manhã, quase não acreditando no que via.

Sim, era ele mesmo, o grande Cartola, sumido há anos, metido num macacão surrado, os pés em sandálias de borracha, incontáveis noites sem dormir, lavando carros naquela garagem.

Sérgio Porto tinha prestígio bastante para conseguir, e conseguiu, um trabalho melhor para o Cartola.

De terno branco e gravata serviu cafezinho no gabinete do Ministro da Agricultura, até que o Ministro, sabendo que por dentro daquele garçom se escondia um grande homem, um poeta e compositor de grande respeito, lhe deu mais tempo para as inspirações.

Enquanto Zé Keti e João do Vale cantavam com Nara Leão desafios ao regime militar no show "Opinião", Cartola e sua mulher dona Zica acolhiam em sua casa noturna outros jovens insurgentes que também faziam da música popular poderosa arma das liberdades civis então reprimidas.

Teria ficado rico se quisesse ganhar dinheiro com a casa noturna. Mas só queria mesmo agradar aos amigos, vê-los juntos na mesma alegria.

Trincado em dívidas, o ZiCartola fechou. Muitos comiam e bebiam sem pagar e o dono nem se aborrecia.

O mais certo quem disse foi Nelson Sargento, da velha guarda da Mangueira, – Cartola nunca existiu, foi um sonho que a gente teve.

Em verdade, viveu duas vidas. Na primeira, amigo e parceiro de Noel Rosa, semeou uns sambas geniais, sua fama de grande compositor se espalhou enquanto, apaixonado por uma mulher e com doenças do mundo, foi sumindo, sumindo, até que ninguém mais o viu.

(Esquece o nosso amor, vê se esquece...)

Na segunda vida, sobre a qual a gente sabe mais, a glória o foi agarrando aos poucos até não o largar mais.

A vida para Cartola não começou aos quarenta, mas aos sessenta e seis anos de idade quando gravou num estúdio moderno, montado só para ele no morro da Mangueira, o seu primeiro disco, ele próprio cantando as suas próprias canções.

Agora o Brasil o celebra pelos cem anos do seu nascimento. Por isso mesmo, amiga, amigo, corram e olhem o céu que o sol vem trazer bom dia!

Ou então cantem, preciso ir, preciso andar, vou por aí a procurar, sim, pra não voltar, quero assistir ao sol nascer, ver a água do rio correr, e ver os pássaros cantar.

Ou então, se a saudade aperta, bate outra vez com esperanças o meu coração, pois já vai terminando o verão, enfim...


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*Ex-Presidente do STJ e Professor de Direito na UFMA





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