Anatomia dos escândalos
Ricardo Tosto*
Um dos pilares da sociedade contemporânea é a Justiça. No Brasil, trabalha-se para reformar seu funcionamento de maneira a garantir à população uma justiça mais rápida. Mas há aspectos que podem anular qualquer avanço. O principal é o invocado pelo presidente Lula recentemente: o ''denuncismo''.
Trata-se de uma escalada de sucessivas e obstinadas acusações contra homens públicos, empresários e empresas, nas mais variadas formas e com as mais diversificadas origens. Apresenta-se como contraponto ao período autoritário, de origem militar, quando toda acusação era proibida. Deu-se o ''efeito mola'', a qual, quando liberada da contenção, salta em todas as direções, sem controle.
Imagine-se agora o efeito que pode ter a combinação de uma Justiça rápida com o da onda denuncista, em que o acusado se vê condenado, sem julgamento, no patíbulo desses ''júris populares''.
O fenômeno se repete com freqüência e pode ser identificado em cada um dos grandes escândalos recentes: a) surge a acusação, em geral com base num grampo qualquer ou documentos confidenciais (bancários, Imposto de Renda etc); b) os suspeitos são execrados e arrastados pelas ruas como Judas em sábado de aleluia; c) começam a ser constatadas inconsistências que, com menos apelo, vão decaindo de importância no noticiário; d) as suposições iniciais não se confirmam, no todo ou em parte.
Os erros de informação veiculados não são corrigidos. Ninguém se lembra de que às pessoas crucificadas se deve, no mínimo, um pedido de desculpas. Mas o que acontece é o contrário: graças à rede mundial dos computadores, as notícias desastrosas continuam à disposição de todos, como acusações perpétuas e sem que os erros sejam retificados.
O tempo da ditadura, no entanto, já vai longe e o efeito mola evidentemente já passou. Não deveria servir como justificativa para a atual onda ''denuncista''. O que há então é apenas o desejo da oposição de firmar-se e mostrar-se como oposição e guardiã da sociedade, visando às futuras eleições. Note-se que isto não ocorre apenas no atual governo; ocorria de igual modo no governo anterior, com os sinais trocados. Os ''denuncistas'' de hoje eram os patrulhados de ontem e vice-versa. A imprensa, por sua vez, surfa na onda das denúncias que sempre lhe rendem manchetes, estimulando-as, quando não as promovendo.
Acrescentem-se ao grupo aqueles que têm interesse na criação ou no agravamento de uma crise, onde vão buscar vantagens financeiras, em detrimento do país e, conseqüentemente, de toda nossa sociedade.
É importante, entretanto, separar esse ''denuncismo'' - que tem finalidade eleitoreira ou, o que é pior, econômica - da apuração de atos e fatos efetivamente ilícitos, praticados por autoridades, empresários ou cidadãos. Os atos ilícitos devem ser apurados e, se for o caso, punidos seus responsáveis.
A apuração responsável de eventuais atos ilícitos - desde que acompanhada da conseqüente punição dos implicados - é saudável para o país. Elimina perante as demais nações (e o mercado) a pecha de país onde a corrupção faz parte da cultura nacional.
Por outro lado, o ''denuncismo'' inconseqüente, eleitoreiro, produtor de manchetes, produz efeito extremamente deletério, pois reforça a opinião mundial de que a corrupção é imanente à nossa sociedade. Além disso, como não produz resultados, tem o efeito de esgarçar o tecido social, pelo fato de infundir na grande massa a idéia de que a ilicitude é vantajosa (embora em muitos casos, talvez a maioria, a ilicitude seja apenas aparente).
Não se pede à oposição, que sofreu o mesmo clima de denuncismo quando era governo, que, repetindo o Cristo, dê a outra face. Nem se pede à imprensa que se cale. Pede-se apenas que, mantendo uns suas disputas ideológicas e outros sua atividade jornalística, tenham o Brasil como foco principal.
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*Presidente da Comissão de Reforma do Judiciário da OAB-SP e advogado do escritório Leite, Tosto e Barros - Advogados Associados