Autonomia da vontade nos contratos internacionais
Paulo Eduardo Lilla*
A determinação da legislação aplicável ao contrato, bem como do foro no qual serão dirimidas eventuais controvérsias, é questão de suma importância, uma vez que na contratação internacional há diferentes elementos de estraneidade que vinculam o contrato a mais de um ordenamento jurídico, causando situações típicas de conflitos de leis e de jurisdições. Citamos como exemplos de elementos de estraneidade o país de domicílio ou sede das partes contratantes, o local de assinatura do contrato, o local de cumprimento da obrigação principal, dentre outros. Dessa forma, nos contratos internacionais as sedes das empresas contratantes geralmente estão localizadas em diferentes países, da mesma forma que o país onde o contrato é assinado pode, muitas vezes, ser diferente do país onde será de fato cumprido, de modo que muitas vezes pairam dúvidas sobre qual dos ordenamentos jurídicos deve prevalecer tanto para reger o contrato, como para servir de foro para suas eventuais controvérsias.
Para lidar com esse tipo de situação, as normas de direito internacional privado de cada país estabelecem critérios objetivos para a determinação da lei aplicável no contrato internacional, critérios estes denominados de "elementos de conexão", que funcionam como setas indicativas de qual lei nacional deverá prevalecer, dentre aquelas que estão ligadas ao contrato internacional. Contudo, como cada país estabelece suas próprias normas de direito internacional privado e, por conseguinte, seus próprios elementos de conexão, situações de conflitos de leis e de jurisdições, em muitos casos, acabam sem solução, gerando insegurança jurídica e imprevisibilidade nos negócios internacionais.
Uma outra forma de lidar com esse tipo de situação, e que pode garantir maior segurança às partes, é permitir que os próprios contratantes escolham a lei aplicável ao contrato e o foro onde serão dirimidas eventuais controvérsias. Trata-se do princípio da autonomia da vontade, que determina que as partes possuem total liberdade para contratar, desde que o objeto do contrato seja lícito. Essa liberdade contratual incluiria a possibilidade de escolha da lei e do foro num contrato internacional que possa ser submetido a diferentes ordenamentos jurídicos. Muitos países, especialmente os desenvolvidos, estabelecem em suas legislações internas regras que permitem a autonomia da vontade das partes para a escolha da lei aplicável e do foro no contrato internacional, contribuindo muito para a redução daquelas situações de conflitos de leis e jurisdições.
No Brasil sempre houve discussão sobre a validade da autonomia da vontade das partes para a escolha da lei e do foro. A nossa Lei de Introdução ao Código Civil - LICC (clique aqui), que estabelece as normas brasileiras de direito internacional privado e que entrou em vigor ainda na década de 40, determina os critérios para a determinação da lei aplicável ao contrato internacional, bem como define as situações em que a autoridade judiciária brasileira será competente para solucionar as controvérsias oriundas desse contrato. Assim, nos termos do art. 9º da LICC, "para qualificar e reger as obrigações, aplicar-se-á a lei do país em que se constituírem", ou seja, a lei do país onde o contrato foi assinado. Já o parágrafo 2ª do mesmo artigo estabelece que "a obrigação resultante do contrato reputa-se constituída no lugar em que residir o proponente", ou seja, nos contratos celebrados entre partes ausentes, a lei aplicável será a do país de domicílio ou sede do proponente do contrato. Quanto ao foro para dirimir controvérsias, o art. 12 do mesmo diploma legal determina que "é competente a autoridade judiciária brasileira, quando for o réu domiciliado no Brasil ou aqui tiver de ser cumprida a obrigação", regra esta repetida pelo artigo 88, II, do Código de Processo Civil (clique aqui), que estabelece os casos de competência concorrente da autoridade judiciária brasileira.
Muitos invocam os dispositivos supracitados para afirmar que o ordenamento jurídico brasileiro impede a autonomia da vontade das partes para a escolha da lei aplicável e do foro nos contratos internacionais. Esse entendimento já foi alvo de críticas de diversos juristas internacionalistas que acreditam que a autonomia da vontade das partes para a escolha da lei e do foro deveria ser respeitada, tendo em vista a constante inserção do país no comércio internacional e o conseqüente aumento das transações internacionais envolvendo empresas brasileiras, tanto como exportadoras, como importadoras de bens, serviços e capitais.
Ora, o Código Civil Brasileiro (clique aqui) é muito claro ao estabelecer que os negócios jurídicos serão válidos desde que os agentes sejam capazes, o objeto seja lícito e tenham forma prevista ou não proibida por lei. Assim, respeitados esses limites, as partes são livres para pactuarem o que quiserem. A questão é que quando estamos diante de um contrato internacional, com diferentes elementos de estraneidade que o vinculam a mais de um ordenamento jurídico, há questões de ordem pública que devem ser levadas em consideração.
Nos termos do art. 17 da LICC, "as leis, atos e sentenças de outro país, bem como quaisquer declarações de vontade, não terão eficácia no Brasil, quando ofenderem a soberania nacional, a ordem pública e os bons costumes". Portanto, contratos internacionais cuja lei aplicável seja estrangeira, somente terão validade no Brasil se não ofenderem a soberania nacional, a ordem pública e os bons costumes, conceitos que embora sejam abstratos, são constantemente aplicados pelos tribunais brasileiros. Da mesma forma, se uma sentença for proferida por autoridade judiciária estrangeira, esta deverá ser homologada pelo Judiciário no Brasil, mais especificadamente o STJ, para ter validade e ser exeqüível no país.
Feitas essas considerações, é importante mencionar que alguns tribunais brasileiros resistem em aceitar o princípio da autonomia da vontade para a escolha da lei aplicável e do foro, sob a argumentação de que a admissão dessa hipótese seria uma afronta à ordem pública, uma vez que os artigos 9º e 12º da LICC, bem assim o artigo 88 do Código de Processo Civil são normas imperativas que determinam a lei aplicável e o foro nos contratos internacionais, independentemente da escolha feita pelas partes. É claro que a redação de referidos dispositivos acabam levando a essa interpretação por não prever expressamente a autonomia da vontade das partes para a escolha da lei e do foro.
Entendemos, por outro lado, que a interpretação mais adequada, levando em consideração o contexto atual de inserção do país no comércio internacional, é no sentido de que somente quando as partes não houverem previamente escolhido a lei aplicável e o foro no contrato internacional, é que seriam aplicadas as regras previstas na LICC e no Código de Processo. É nessa linha que a Súmula 335 do STF estabelece que "é válida a eleição do foro para os processos oriundos dos contratos". Por outro lado, se as partes não usarem de sua liberdade contratual para escolher a lei e o foro, aí é que as normas contidas nos artigos 9º da LICC e 12º da LICC, e no artigo 88 do Código de Processo Civil deveriam ser aplicadas pelo julgador antes de julgar o mérito da controvérsia.
Nesse caso recente julgado pelo STJ, o fato de o contrato internacional de distribuição ser executado no Brasil foi suficiente para a Terceira Turma do STJ estabelecer a competência da autoridade judiciária brasileira, sem levar em consideração que as partes afastaram essa competência no contrato. Sem adentrarmos nas peculiaridades do mérito do caso, nos parece que a decisão deveria estabelecer critérios mais precisos para definir as situações em que as partes não poderão escolher a lei aplicável e o foro num contrato internacional. Ademais, a decisão não tratou de distinguir a lei aplicável ao contrato e o foro onde serão dirimidas as controvérsias, conceitos completamente distintos e que deveriam ter sido abordados com mais precisão. Ainda que a autoridade judiciária brasileira seja competente, nada impede que ela aplique a legislação estrangeira, desde que a parte interessada junte no processo uma tradução juramentada dessa legislação como prova de seu texto e de sua vigência, nos termos o art. 14 da LICC.
Outro ponto que merece ser abordado é o fato de que a Lei n.º 9.307, de 23 de setembro de 1996, a nossa Lei de Arbitragem (clique aqui), prevê, em seu art. 1º, §1º, que as partes, ao optarem pela arbitragem como forma de solução de controvérsias oriundas do contrato, "poderão escolher, livremente, as regras de direito que serão aplicadas na arbitragem, desde que não haja violação aos bons costumes e à ordem pública" (grifos nossos). Ora, a nossa Lei de Arbitragem protege totalmente a autonomia da vontade das partes para a escolha da lei aplicável, caso o contrato tenha uma cláusula compromissória submetendo eventuais litígios à arbitragem. Da mesma forma, a Lei de Arbitragem permite também que as partes escolham o local onde se desenvolverá a arbitragem, ou seja, onde serão dirimidas eventuais controvérsias oriundas do contrato.
É bom que se diga que o Poder Judiciário brasileiro está respondendo positivamente à arbitragem, extinguindo o processo sem julgamento do mérito quando uma das partes aciona o Judiciário, apesar de ter aceitado a inserção de cláusula compromissória no contrato submetendo eventuais litígios à arbitragem. Esse fato passou a ser uma realidade concreta, sobretudo, após a declaração de constitucionalidade da Lei de Arbitragem pelo STF, em 2001. O próprio STJ tem corroborado esse entendimento em diversos casos. Por exemplo, no julgamento do Recurso Especial nº. 712.566 (clique aqui), a Relatora, Ministra Nancy Andrighi, afirmou em seu voto que "(...) a inserção de cláusula arbitral nos contratos internacionais constitui prática freqüente, sendo, muitas vezes, condição essencial para a celebração da avença. Neste contexto, portanto, a solução do conflito arbitral representa a manifestação de vontade das partes e está estritamente vinculada à observância do princípio da boa fé que deve animar, também, os contratos internacionais, sob pena, inclusive, de ser imputado à empresa brasileira prática de ato desleal por descumprimento do que foi pactuado" (grifos nossos).
O trecho citado do voto da Relatora é digno de elogios e nos leva à conclusão de que a autonomia da vontade das partes deve ser respeitada, sendo que sua observância nada mais é do que a concretização da boa-fé objetiva e do pacta sunt servanda, ou seja, da força obrigatória dos contratos celebrados conforme a manifestação da vontade das partes.
Resta indagar que se a Lei de Arbitragem salvaguarda a autonomia da vontade das partes para a escolha da lei aplicável ao contrato internacional, desde que a lei escolhida não viole os bons costumes e a ordem pública, como também permite a escolha do local, ou país, onde eventuais litígios serão resolvidos, por que nos contratos internacionais em que não há cláusula arbitral, as partes não poderiam também fazer essa escolha? Ora, embora a grande maioria dos contratos internacionais preveja a arbitragem como forma de solução de controvérsias, justamente para garantir maior segurança e previsibilidade às partes contratantes, alguns contratos internacionais, por diversas razões, podem não ser submetidos à arbitragem. A opção pela arbitragem ou pelo Poder Judiciário deve respeitar as peculiaridades de cada situação comercial, e deve depender de uma decisão conjunta entre as partes contratantes e seus respectivos advogados.
Dessa forma, para garantir maior segurança jurídica e previsibilidade para as partes no que concerne aos contratos internacionais não submetidos à arbitragem, o Poder Judiciário deveria passar a observar a autonomia da vontade das partes na escolha da lei aplicável e do foro, estabelecendo claramente as situações em que essa escolha seria prejudicial à ordem pública.
Nesse contexto, vale mencionar interessante decisão proferida em 18 de outubro de 2007 pelo Tribunal de Justiça de São Paulo, na Apelação nº. 7.030.387-8, na qual o Relator, o Desembargador Salles Vieira, analisando a validade da escolha das partes pelas leis e foro de Nova York num contrato de representação comercial internacional, afirmou o seguinte: "Não existe a alegada afronta a ordem pública internacional vez que, em face do direito, inclusive econômico, é salutar que as empresas brasileiras e estrangeiras, desde que o objeto do contrato seja lícito, tenham liberdade de contratar. Afronta haveria se o judiciário brasileiro fosse imprevisível na solução das relações internacionais, mormente quando envolve parceria comercial entre empresas privadas. Previsibilidade esta que se assenta no respeito às normas de direito internacional, as quais foram respeitadas no caso em exame" (grifos nossos).
Decisões modernas como essa, deveriam ser aplicadas para fazer valer os princípios da autonomia da vontade das partes, da boa-fé objetiva e do pacta sunt servanda, de modo a permitir e respeitar a livre escolha da lei aplicável e do foro nos contratos internacionais não submetidos à arbitragem. Enquanto isso não acontece, a opção pela arbitragem parece ser a única forma de garantir maior segurança e previsibilidade às partes no que concerne à escolha da lei e do foro em matéria de contratação internacional.
______________*Professor da Escola de Administração de Empresas de São Paulo da Fundação Getúlio Vargas (FGV/EAESP), Mestre em Direito Internacional, vice presidente da SOCEJUR - Sociedade de Estudos Jurídicos. Advogado do escritório Lilla, Huck, Otranto, Camargo e Munhoz Advogados
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