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Cessão fiduciária e recuperação judicial

Os parágrafos 3º e 4º do artigo 49 da Lei 11.101, de 9 de fevereiro de 2005, têm sido objeto de acaloradas discussões, tendo em vista recente decisão adotada pelo TJ/ES, que esposa tese divergente daquela que outros tribunais têm seguido, notadamente o TJ/SP e o TJ/PR.

8/10/2008


Cessão fiduciária e recuperação judicial

Maria do Carmo Garcez Ghirardi*

Os parágrafos 3º e 4º do artigo 49 da Lei 11.101, de 9 de fevereiro de 2005 (clique aqui), têm sido objeto de acaloradas discussões, tendo em vista recente decisão adotada pelo TJ/ES, que esposa tese divergente daquela que outros tribunais têm seguido, notadamente o TJ/SP e o TJ/PR.

O debate nos parece muito adequado, considerando que em breve o Superior Tribunal de Justiça deverá se pronunciar a respeito do tema, de grande interesse para as empresas, para as instituições financeiras e para os operadores do Direito. Vemo-nos, portanto, diante da oportunidade de discutir aspectos técnicos de uma forma de financiamento que é largamente utilizada pelas empresas, com vantagens sobre outros meios de obtenção de crédito. É preciso, porém, que essa discussão seja feita com a necessária isenção, sem que se tome partido deste ou daquele lado, sob pena de se ferir o equilíbrio desejado pelo legislador e pelo Judiciário.

Enquanto para os Tribunais do Estado de São Paulo e do Estado do Paraná os empréstimos havidos como cessão fiduciária de direitos creditórios, que têm como garantia os recebíveis futuros das empresas financiadas, estariam excluídos da recuperação judicial, o TJ/ES proferiu recente decisão no sentido inverso. A análise do fundamento das decisões em comento parece indispensável à compreensão do embate.

O TJ/ES, em Agravo de Instrumento nº 030.08.900014-2, publicado em 7 de julho de 2008, assevera que a cessão fiduciária de títulos de crédito não estaria abarcada pela exceção prevista no parágrafo 3º do artigo 49 da Lei 11.101/05, uma vez que não há menção expressa à mesma no texto legal.

O TJ/PR manifestou-se em diferentes ocasiões, destacando-se os arestos do Agravo de Instrumento nº 472.495-6, julgado em 16 de julho de 2008, e do Agravo de Instrumento nº 472.508-8, julgado em 27 de agosto de 2008. A fundamentação destas decisões encontra arrimo na natureza jurídica da cessão fiduciária, através da qual se transfere ao credor cessionário a titularidade dos créditos cedidos. Diferencia-se esta categoria de credor daquela mencionada no § 5º do artigo 49 da Lei 11.101/05, na medida em que a garantia outorgada a estes é o penhor, e não a cessão fiduciária. Os créditos oriundos de cessão fiduciária de títulos ou recebíveis estariam, assim, afastados dos efeitos da recuperação judicial, nos termos do § 3º do mesmo artigo legal supra citado.

Já o TJ/SP, em julgados de 27 de agosto de 2008 (AI nº 548.032-4/7-00 e AI nº 547.893-4/8-00), confirma a inclusão da cessão fiduciária de títulos de crédito dentre as exceções previstas pelo parágrafo 3º do artigo 49 da Lei 11.101/05, fundamentando tal entendimento na natureza jurídica da cessão operada. Assevera o Relator Boris Kauffmann que por "força da cessão fiduciária, a devedora transferiu ao credor a propriedade das duplicatas, de sorte que, em relação a elas, aplicável o disposto no § 3º do art. 49 da Lei nº 11.101/05, no limite desta garantia. Em conseqüência, à medida que o credor for recebendo o valor desses títulos, abaterá no valor do seu crédito frente à recuperanda. Assim, os valores não ficam em conta vinculada à disposição do juízo, já que a propriedade dos títulos, por força da cessão fiduciária", é da instituição financeira (AI nº 547.893-4/8-00). Tal entendimento já vinha sendo adotado pelo Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo, mencionando-se exemplificativamente o Agravo de Instrumento nº 541.816-4, de 7 de maio de 2008, da lavra do E. Relator Des. José Araldo da Costa Telles.

Acreditamos, assim, que a discrepância encontra-se no plano da interpretação dada pelos Tribunais ao texto legal. E, evidentemente, em tema de interpretação, os interesses conflitantes – devedores e credores – tendem a privilegiar aquela que lhes pareça mais favorável, o que pode levar a uma indesejada situação de insegurança jurídica.

O método de interpretação adotado pelo sistema brasileiro expresso no artigo 5º da Lei de Introdução ao Código Civil determina que o juiz atenda, na aplicação da lei, aos fins sociais a que ela se dirige e às exigências do bem comum. É nesse momento que se revela o impasse gerado pelas recentes discussões veiculadas acerca do tema: busca-se um antagonismo entre os interesses de empresas e instituições financeiras que não nos parece ser real, pois surge no momento em que se decreta a recuperação judicial, mas não antes disso.

Seria simplista imaginar que os fins sociais e as exigências do bem comum buscadas pelo parágrafo 3º do artigo 49 da Lei 11.101/05 resumem-se à inclusão da cessão fiduciária de títulos de crédito, com as chamadas "travas bancárias", sob o regime da recuperação judicial. Se é verdade que as empresas em regime de recuperação judicial precisam de meios para superar este difícil momento, não é menos verdade que as demais empresas precisam de crédito menos oneroso para dar continuidade a suas atividades.

Não se pode imaginar o bem comum buscado pelo legislador sob a óptica exclusiva seja da empresa recuperanda seja da instituição financeira, em determinado caso específico. Evidentemente o legislador buscou, ao estabelecer o regime da recuperação judicial, propiciar meios para que as empresas em dificuldades financeiras retomem sua plena capacidade econômica, preservando suas atividades e os empregos dos trabalhadores que delas dependem.

O legislador não se olvidou, por outro lado, dos fatores que propiciam o desenvolvimento das atividades empresariais, dentre os quais o crédito oferecido pelas instituições financeiras a taxas mais acessíveis. O produto das instituições financeiras (crédito) pode ser oferecido a preços mais ou menos competitivos, em função do maior ou menor risco envolvido na operação. Havendo garantia de recebimento do valor repassado, por meio de cessão fiduciária de títulos de crédito, cujo pagamento seja feito diretamente em conta corrente da empresa tomadora, junto à instituição financiadora ("trava bancária"), é evidente que o risco torna-se substancialmente menor, proporcionando a oferta de crédito a juros competitivamente menores.

É nesse contexto que se sugere agora a leitura do parágrafo 3º do artigo 49 da Lei 11.101/05, de forma a interpretá-lo conforme os fins sociais e as exigências do bem comum – leia-se gerais, e não particulares a um caso específico – a que se destina.

O artigo 49 da Lei 11.101/05 estabelece a sujeição à recuperação judicial de todos os créditos existentes na data do pedido. Essa a regra, cujas exceções encontram-se nos parágrafos 3º e 4º, e são estatuídas justamente em função dos fins sociais e bem comum almejado pelo legislador. Que outra razão teria o legislador para excluir da regra geral alguns credores em detrimento de outros, senão para fazer cumprir o equilíbrio social desejado?

O parágrafo 3º do artigo 49 da Lei 11.101/05 exclui da regra estabelecida no caput os credores titulares "da posição de proprietário fiduciário de bens móveis ou imóveis, de arrendador mercantil, de proprietário ou promitente vendedor de imóvel cujos respectivos contratos contenham cláusula de irrevogabilidade ou irretratabilidade, inclusive em incorporações imobiliárias, ou de proprietário em contrato de venda com reserva de domínio". Nessas hipóteses, continua o mesmo parágrafo, os credores não estarão sujeitos aos efeitos da recuperação judicial, prevalecendo os direitos de propriedade sobre a coisa e as condições contratuais, vedando-se a retirada ou venda de bens de capital que se encontrem no estabelecimento do devedor e sejam essenciais à sua atividade empresarial pelo prazo de 180 (cento e oitenta) dias contados do deferimento do processamento da recuperação.

A exceção estabelecida no parágrafo 4º do artigo 49 da Lei 11.101/05 refere-se à restituição em dinheiro da importância entregue ao devedor em decorrência de adiantamento a contrato de câmbio para exportação. Os credores de valores entregues como adiantamentos a contrato de câmbio (ACCs), portanto, também não se sujeitam aos efeitos da recuperação judicial, por força da exclusão mencionada.

Na seara da interpretação do texto legal, cumpre indagar por qual motivo teria o legislador retirado da regra geral os credores titulares da posição de proprietários fiduciários de bens móveis ou imóveis, entre outros, além dos credores de valores entregues por força de ACCs. Diferenciam-se estes dos demais credores da empresa recuperanda na medida em que a lei lhes confere o direito de reaver seu crédito sem que se submetam às regras do plano de recuperação. Não nos esqueçamos, também, que o projeto que resultou na Lei 11.101/05 foi apresentado em 1993 (PL 4.376/93), sendo o texto final aprovado pela Câmara dos Deputados em 15 de outubro de 2003, depois de 484 emendas e 5 substitutivos apresentados em seus dez anos de tramitação. Analisado pelo Senado Federal, foram apresentados outro substitutivo e novas 49 emendas, chegando à Comissão de Assuntos Econômicos em abril de 2004, o que mostra que seu texto foi cuidadosamente avaliado, inclusive no que respeita a questão aqui tratada, como anota o Des. José Araldo da Costa Telles, do Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo, no voto proferido no AI 541.816-41.

Ora, se o legislador debateu durante mais de uma década a questão, que originariamente propunha solução diversa daquela finalmente adotada, resta saber a ratio que informa o texto das exceções, e esta só pode ser alcançada se tomarmos o tecido social como um todo, envolvendo devedores e credores, empresas em pleno vigor e empresas em dificuldades econômico-financeiras, para que se determine qual de fato o objetivo almejado quando se optou pela redação atual.

Desnecessário mencionar que títulos de crédito são bens móveis e, portanto, passíveis de cessão fiduciária, tal como estabelecido na lei. De resto, a doutrina é assente ao incluir a cessão fiduciária, ao lado da alienação fiduciária, como espécies do gênero negócio fiduciário2. Num e noutro caso, transmite-se a propriedade, com cláusula resolutiva pois, uma vez quitado o débito, a propriedade é novamente transferida para o tomador dos recursos – o devedor original. Evidentemente, não quitado o débito, o credor, como titular absoluto dos bens, pode deles dispor como melhor lhe aprouver3. Assim, com a cessão fiduciária de direitos creditórios, o financiador recebe em garantia títulos de crédito que são os recebíveis futuros das empresas financiadas. Quis o legislador que tal credor não se submetesse aos efeitos da recuperação judicial, como já anotado pela doutrina4, exatamente para efetivar seus fins sociais e bem comum, na medida em que a sujeição desta categoria de credores ao processamento da recuperação judicial implicaria o encarecimento do crédito, em vista do expressivo aumento no risco envolvido no financiamento.

De fato, se a cessão fiduciária de títulos de crédito, garantida pelo mecanismo da "trava de domicílio bancário" ou "trava bancária" (como se convencionou na prática denominar o depósito em conta mantida junto à instituição financeira prestadora do crédito) estivesse sujeita aos efeitos da recuperação judicial, este modo de financiamento empresarial seria inviabilizado, por falta de uma garantia que justificasse a prática de taxas de juros menores. As empresas desejosas de financiar suas atividades teriam que oferecer à instituição financeira garantias mais gravosas ou, adicionalmente, sujeitar-se a custos consideravelmente mais elevados em função dos juros associados ao novo cenário de risco.

É nesse particular que a idéia esposada pelo julgado do Tribunal do Estado do Espírito Santo, supra mencionado, não nos parece, data maxima venia, estar em sintonia com a interpretação legal mais favorável ao bem comum ou ao fim social da lei. Ao se sujeitar a cessão fiduciária de títulos de crédito ao regime da recuperação judicial, pode-se imaginar inicialmente que se estará ajudando a empresa recuperanda e, talvez, isto de fato ocorra. Mas não se pode esquecer que, em função desta sujeição, todas as demais empresas, tanto as em recuperação como as que se encontram com as finanças equilibradas, serão afetadas por uma brusca modificação por parte das instituições financeiras que se verão desprovidas da única garantia que lhes permite ajustar para baixo sua margem de lucro neste tipo de financiamento.

A interpretação adotada pelo Tribunal do Estado de São Paulo parece mais consentânea com a realidade, a uma porque o texto da lei menciona expressamente a propriedade fiduciária de bens móveis (gênero no qual se inserem as espécies cessão fiduciária e alienação fiduciária) como exceção à sujeição dos credores aos efeitos da recuperação judicial e, a duas, porque permite que o fluxo de financiamento empresarial siga seu curso normal, sem o encarecimento do crédito. A esse argumento acrescenta o Des. José Araldo da Costa Telles que os contratos firmados entre cedente e cessionário devem ser igualmente respeitados, não havendo qualquer vício que os inquine de nulidade5.

O debate acerca da amplitude das exceções estabelecidas pelos parágrafos do artigo 49, tal como vem se dando nos Tribunais e nas publicações especializadas, parece confirmar a ratio legis decorrente da natureza jurídica da cessão fiduciária – que confere ao credor a efetiva propriedade do bem ou direito cedido, aliada às necessidades sociais de equilíbrio entre prestadores e tomadores de financiamento a custos mais baixos. A cessão do bem ou direito retira-o da esfera patrimonial do tomador, que passa a integrar o patrimônio do prestador do crédito, até que o débito assegurado seja integralmente quitado. O bem ou direito garantidor da cessão de crédito, assim, não mais integra o patrimônio do cedente, não podendo ser retirado do domínio do cessionário pela superveniência de situação de desequilíbrio econômico-financeiro daquele, que determine a apresentação de pedido de recuperação judicial.

Com estas linhas espera-se contribuir para o debate sobre a questão, que tem merecido importantes análises sob os mais diferentes pontos de vista. Certamente o STJ haverá de sedimentar o assunto, após a habitual reflexão que a profundidade do tema requer.

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1 “Parece claro que o intento, vê-se, desde logo, não obstante o largo espectro do caput, é o de exclusão de determinados créditos, especialmente os de bancos, que, em geral, dispõem de garantias, da submissão à recuperação judicial.

Não era essa a proposta inicial, registra, até com certa revolta, o experiente advogado falencista Elias Katudjian, que integrou a Comissão de Estudos Roger de Carvalho Mange, constituída pelo Instituto dos Advogados de São Paulo e que elaborou o primeiro anteprojeto da reforma da lei de falências. Pretendia-se, na verdade, conferir efetividade à abrangência do art. 49, tanto que o § 3º do, então, art. 48, continha a possibilidade de se prever, no plano, outras condições para cumprimento dessa espécie contratual.

Tal possibilidade, no entanto, foi suprimida, a pretexto de se reduzir o spread, e o resultado final foi o de impedir a venda ou retirada de bens de capital essenciais à continuidade da empresa, mas apenas no período de suspensão do art. 6º, § 4º.” (TJSP – AI nº 541.816-4 – Relator Des. José Araldo da Costa Telles – julgado em 7 de maio de 2008)

2 “Entende-se por negócio fiduciário o negócio jurídico inominado pelo qual uma pessoa (fiduciante) transmite a propriedade de uma coisa ou a titularidade de um direito a outra (fiduciário), que se obriga a dar-lhe determinada destinação e, cumprido esse encargo, retransmitir a coisa ou direito ao fiduciante ou a um beneficiário indicado no pacto fiduciário.” (CHALLHUB, Melhim Namem. Negócio fiduciário. RJ, Renovar, 1998, p. 38)

3 “Segundo a estrutura peculiar do negócio fiduciário, uma vez concluída sua formalização, com o eventual registro da transmissão da propriedade, quando for o caso, o fiduciário passa a ser o titular pleno do bem ou do direito; incorporado, assim, ao seu patrimônio, passa o bem ou o direito a constituir garantia dos seus credores. De outra parte, o fiduciante, depois de efetivada a transmissão, deixou de ser o titular do bem ou de direito, passando a ter um direito de crédito contra o fiduciário.” (CHALLHUB, op. cit., p. 56)

4 “Também estão excluídos dos efeitos da recuperação judicial o fiduciário, o arrendador mercantil ou o negociante de imóvel (como vendedor, compromitente vendedor ou titular de reserva de domínio) se houver cláusula de irrevogabilidade ou irretratabilidade no contrato.

(....)

Os fundamentos para a exclusão de cada categoria de credor dos efeitos da recuperação judicial variam.

(....)

Os titulares de determinadas garantias reais ou posições financeiras (fiduciário, leasing, etc.) e os bancos que antecipam recursos ao exportador em função de contrato de câmbio excluem-se dos efeitos da recuperação judicial para que possam praticar juros menores (com spreads não impactados pelo risco associado à recuperação judicial), contribuindo a lei, desse modo, com a criação do ambiente propício à retomada do desenvolvimento econômico.” (COELHO, Fábio Ulhoa. Comentários à nova lei de falências e de recuperação de empresas. SP, Saraiva, 2005, pp. 131/132)

5 “Ora, no caso concreto, os bancos se apresentam munidos de contratos que lhes outorgam a condição de credores com garantia fiduciária ou pignoratícios, pelo que não haveria como, sob a letra da lei, submetê-los à recuperação judicial. (...) Os contratos, entretanto, não podem e não devem ser rompidos por conta da recuperação judicial e de forma unilateral.” (TJSP – AI nº 541.816-4 – Rel. Des. José Araldo da Costa Telles, julgado em 07 de maio de 2008)

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*Sócia do escritório Boccuzzi Advogados Associados

 

 

 

 

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