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Terras de marinha, demarcar antes de cobrar

A Comissão de Constituição e Justiça do Senado decidiu retirar da pauta o Projeto de Emenda à Constituição 53/07, de autoria do senador Almeida Lima (PMDB), que trata das questões relativas aos terrenos de marinha. A medida foi tomada em decorrência da decisão do presidente Lula de encaminhar ao Senado um projeto de lei para regular a questão.

9/10/2008


Terras de marinha, demarcar antes de cobrar

Natália Ribeiro do Valle*

A Comissão de Constituição e Justiça do Senado decidiu retirar da pauta o Projeto de Emenda à Constituição 53/07, de autoria do senador Almeida Lima (PMDB), que trata das questões relativas aos terrenos de marinha. A medida foi tomada em decorrência da decisão do presidente Lula de encaminhar ao Senado um projeto de lei para regular a questão.

Acompanho esse assunto de perto há pelo menos cinco anos e fico pasma com tanto vaivém desnecessário. Existem dezenas de projetos do mesmo tema parados, alguns até repetitivos, sobre questões já previstas em lei há dezenas de anos. Sabe-se que o Brasil conta com uma das legislações mais completas do mundo. Aliás, lei é o que não falta ao nosso país. O que falta é fiscalização e cumprimento. Isso se aplica aos terrenos de marinha. Contamos com uma lei eficiente, que resguarda os terrenos considerados estratégicos para a segurança nacional.

Ao invés de fazer novas leis, o governo federal seria mais assertivo se oferecesse aos órgãos competentes condições de cumpri-las. Equipar a Secretaria de Patrimônio da União, órgão responsável pela administração dos bens do estado, entre eles os terrenos de marinha, para que atue dentro do que prevê a legislação, seria um bom começo.

Diz o Decreto-lei 9.760/46 (clique aqui), em seu artigo 2º, que "são terrenos de marinha, em uma profundidade de 33 (trinta e três) metros, medidos horizontalmente, para a parte da terra, da posição da linha do preamar-médio de 1831, os situados no continente, na costa marítima e nas margens dos rios e lagoas, até onde se faça sentir a influência das marés". Para que assim sejam classificadas, essas áreas precisam ser antes demarcadas.

A SPU não conta com técnicos, topógrafos, capazes de demarcar, com base no que determina a lei, quais são efetivamente os terrenos de marinha. Pior, ao invés de demarcar, utiliza atos normativos para alterar conceitos da lei. Em 1981, editou a Instrução Normativa nº. 01, em que passou a utilizar como cálculo dos 33 metros a maré de sizígia (ponto mais alto que a maré pode alcançar), ao invés da preamar média, como média aritmética de todas as preamares. Totalmente ilegal, a manobra permitiu incluir imóveis em seus cadastros que, por lei, não estão em terrenos de marinha.

A lei determina ainda que esta demarcação seja informada nominalmente a cada proprietário com título legítimo para que tenha ciência e possa participar juntando plantas, documentos e o que entender necessário para uma correta demarcação dos terrenos de marinha. Não há notícia, nem mesmo por parte da SPU, dessa demarcação ter sido feita algum dia. Aliás, o órgão assume publicamente que nunca demarcou essas áreas.

Face à irregularidade flagrante, o Superior Tribunal de Justiça, em 14 de novembro de 2006, posicionou-se a favor dos proprietários cobrados, publicando o acórdão que diz ser "necessária a convocação pessoal dos interessados certos, com imóvel registrado no respectivo cartório, para participar do procedimento administrativo de demarcação da linha preamar média de 1831, conforme dispõe o art. 11 do DL n. 9.760/1946. A convocação por edital só é cabível quando os interessados são incertos, ou seja, aqueles não identificados ou com domicílio não encontrado nos registros da União. Não pode a Administração, por livre vontade, escolher a forma de convocação".

A despeito da determinação do STJ, a SPU não demarcou, não fez contato nominal, mas cobrou. Lançou um edital informando o início do procedimento de cálculo da maré de sizígia, e não da preamar média, sem fazer constar o nome de qualquer interessado, utilizou um cadastro desatualizado de proprietários e distribuiu boletos bancários com cobranças indevidas a cidadãos que não ocupam terrenos de marinha ou que há décadas não são proprietários dos imóveis.

Sentindo-se lesadas, as pessoas entram em contato com a SPU, que nada faz para resolver a situação, e acabam sendo forçados a mover ações judiciais para fazer valer os seus direitos. Isso não impede que seus nomes figurem nos cadastros de proteção ao crédito, suas dívidas sejam inscritas em Dívida Ativa da União e, por conseqüência, não consigam obter certidões negativas e tenham sua vida e seus negócios prejudicados.

A explicação da SPU sobre essas questões chega a ser prosaica. "Isso ocorre porque os sistemas de banco de dados da secretaria estão em uma plataforma arcaica. É difícil fazer uma alteração. Tirar alguém da base é bastante complexo, não é só apertar um botão."

No final das contas, pessoas que tinham certeza de possuir um patrimônio descobriram que na realidade têm uma dívida sem fim com o estado. Passaram de proprietárias a ocupantes do terreno e devedoras de taxas atuais e retroativas relativas ao imóvel. Algumas, por desconhecimento da lei ou por temor, pagam. Elas, de fato, não devem nada à União e, portanto, não deveriam pagar.

Com indignação, noto que o projeto retirado da CCJ do Senado não corrige essa injustiça. Propõe a divisão dos terrenos de marinha em cinco categorias e o destino para cada uma delas, sendo a venda aos ocupantes mediante contrato de aforamento uma das saídas. Mas, se nunca houve uma demarcação correta e a grande maioria está fora dos terrenos de marinha, por que essas pessoas têm que pagar por um bem que já é delas?

Ao que tudo indica, será nessa linha o documento a ser elaborado pelo Executivo Federal. Talvez a distância dos legisladores da realidade dos fatos os conduza a esse caminho equivocado. Cabe ao Estado demarcar corretamente os terrenos de marinha e ressarcir aqueles que pagaram indevidamente.

Volto a dizer, ao invés de criar novas leis, basta fazer cumprir as que já existem e, neste caso, a ordem é "demarcar antes de cobrar".

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*Advogada do escritório Ribeiro do Valle Associados






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