Caso Enron: breve análise da empresa em crise
William Eustaquio de Carvalho*
Resumo
Palavras-chaves: Falência; Empresa em Crise; Auditoria
1 - Introdução
Ao elaborarmos este texto, procuramos fazer a análise de um caso que servisse como fundamento crítico ao tão aclamado projeto de lei 4.376/93 - em trâmite na Câmara - no que se refere à recuperação judicial de empresas.
A análise do caso “Enron” vem corroborar o entendimento de que a tão aclamada recuperação de empresas deve ser vista com reservas e não como um instrumento de aplicação indiscriminada concedido a todas as empresas em crise.
Ademais, poderia o leitor questionar o motivo da escolha por um caso americano se o que se pretende demonstrar é uma realidade brasileira. A resposta reside em dois aspectos: o primeiro é o fato de que o caso “Enron” representa um dos maiores fracassos empresariais da atualidade e demonstra a crise do sistema econômico global; o segundo é que os fatores motivadores da crise vivenciada pela “Enron” não se distanciam da realidade brasileira.
Além disso, a realidade econômica da “Enron” nos fez refletir sobre a fragilidade de outros institutos que norteiam a sobrevivência de uma empresa, tais como a Contabilidade e a Auditoria.
2 - A estrutura Enron
A “Enron” - então considerada uma potência empresarial – divulgou, em 2 de dezembro de 2001, seu pedido de concordata e, dez dias após, o Congresso Americano começou a analisar a falência do grupo, o qual possuía uma dívida aproximada de 22 bilhões de dólares. Em diversos artigos, foi considerada a falência mais importante da história empresarial americana.
A “Enron” era a sétima maior empresa dos Estados Unidos e uma das maiores empresas de energia do mundo. No Brasil, a “Enron” mantinha participações na CEG/CEGRio, no Gasoduto Brasil / Bolívia, na Usina Termoelétrica de Cuiabá, na Eletrobolt, na Gaspart e na Elektro, esta última, empresa paulista de energia elétrica que atende aproximadamente 1,6 milhões de consumidores.
A “Enron” atuava, principalmente, em cinco grandes áreas: (1)
a) “Enron Transportation Services”: condução interestadual de gás natural, construção,administração e operação de gasodutos; investimento em atividades de transporte de óleo cru;
b) “Enron Energy Services”: compra, comercialização e financiamento de gás natural, óleo cru e eletricidade; administração de risco de contratos de longo prazo de commodity; gasodutos estaduais de gás natural; desenvolvimento, aquisição e construção de centrais de energia de gás natural; extração de gás natural líquido;
c) “Enron Wholesale Services”: negócios globais da “Enron”, incluindo a negociação e entrega de commodities físicas e financeiras e serviços de gerenciamento de risco;
d) “Enron Broadband Services”: atividade implementada no ano 2000, que provê aos clientes uma fonte de serviços de telecomunicações;
e) “Corporate and Others”: provê serviços relacionados a abastecimento de água.
3 - A crise de confiança
Para compreendermos o que a crise da “Enron” representou para a economia mundial, é preciso refletir um pouco sobre a atitude que tomou conta de milhares de investidores que, na busca de lucros rápidos e fáceis, acabaram por apostar em empresas que não foram capazes de corresponder às expectativas.
Entendemos que um dos elementos que desencadeou o problema da confiança excessiva dos investidores foi a facilidade de acesso à negociação no mercado de ações. Tal fato tornou possível que, até pessoas sem nenhuma habilidade em perceber as oscilações e riscos dos negócios, investissem suas economias nesse mercado.
Percebe-se, além disso, que existe na cultura norte-americana um traço interessante: a escolha de ícones, os quais induzem as pessoas a neles acreditarem irrestritamente.
Um dos exemplos recentes foram as empresas “ponto com”, as quais, de repente, tiveram suas ações supervalorizadas levando os investidores a acreditarem que elas eram um ótimo negócio. Na verdade, o que se pôde perceber foi que elas criaram uma “bolha” de otimismo pouco duradoura em torno da qual investidores “amargaram” prejuízos consideráveis.
Todo este esquema, na verdade, origina-se diante da necessidade que as empresas têm, inicialmente, de capitalizar-se - o que se poderia resolver captando recursos em bancos, assumindo um parceiro que invista capital ou colocando as ações em bolsas de valores. Esta última forma é a mais comum, utilizada pelas empresas americanas para suprirem a necessidade de capital, “alavancando” o necessário para o exercício pleno de suas atividades.
Resolvida a questão da escassez de capital das corporações, surge para o mercado a necessidade de acompanhar o desempenho das atividades dessas empresas - o que, quase sempre, só é possível através da análise das suas demonstrações financeiras, o que - no caso “Enron” - não foi suficiente para os investidores terem a segurança necessária em qualquer investimento.
Por óbvio, se alguém opta por investir em uma corporação, o faz consciente dos riscos que o mercado de capitais representa. Todavia, há uma grande diferença entre assumir riscos e admitir que as informações acerca de uma determinada empresa não sejam confiáveis.
No caso “Enron”, a confiança que os investidores possuíam não era despropositada. Aliás, a nosso ver, pelas informações que os analistas traduziam aos investidores, até mesmo os mais experientes não seriam capazes de perceber o que havia por trás de todo aquele otimismo.
Além disso, pela própria estrutura da “Enron”, era difícil acreditar que aquele império um dia poderia ruir. “A “Enron” era tida como uma das empresas da elite americana. Era a sexta maior empresa de energia do mundo em capitalização de mercado. Um conglomerado sediado em Houston, Texas, que faturou US$101 bilhões de dólares em 2000. A sétima maior empresa dos EUA em faturamento segundo a publicação Fortune 500”. (2)
Somado a tudo isso, a “Enron” ainda contava, a seu favor, com a imprensa e com a falta de informações dos analistas de mercado. É o que podemos perceber da brilhante análise de Cláudio Gradilone que fez uma retrospectiva das informações de mercado pouco tempo antes deste tomar conhecimento da concordata da “Enron”. (3)
“Consideramos as ações da “Enron” acima da média do mercado e mantemos nosso preço alvo de 85 dólares por ação. (Morgan Stanley Dean Witter, 12 de julho de 2001. As ações fecharam a 39,26 dólares nesse dia)”
“A “Enron” tem avançado no processo de reorientar seu foco para atividades mais lucrativas (...). Nosso preço-alvo para a ação é de 44 dólares. (Merrill Lynch, 9 de outubro de 2001. As ações fecharam a 26,55 dólares.)”
“Mantemos nossa recomendação de compra e nosso preço-alvo para os próximos 12 meses é de 45 dólares por ação. (CIBC, 17 de outubro de 2001. Ações a 29,06 dólares)”
“As notícias da morte da Enron são muito exageradas. A ação deve ter um desempenho superior ao do mercado, e o preço-alvo é de 30 dólares por ação. (Bemstein Research, 1º de novembro de 2001. Haja otimismo. As ações fecharam a 9,53 dólares, e a empresa esperava uma alta de 215%)”
Como veremos adiante, todo esse otimismo acabou influenciando os administradores da “Enron” a buscar, no mercado, informações que sustentassem a euforia em torno de suas ações - o que não foi mantido por muito tempo, culminando em sua ruína.
4 - O Papel dos administradores
Ao analisarmos o caso “Enron”, algumas opiniões quanto à forma como a fraude aconteceu foram uníssonas ao afirmar que o esquema girava em torno de manobras contábeis a fim de mascarar a real situação da corporação. Poderíamos perfeitamente invocar um velho provérbio para representar a situação da Enron: “Por fora bela viola, por dentro pão bolorento”
Entendemos que essas manobras foram influenciadas, sobretudo, pela ganância dos administradores em inflarem, manifestamente, seus lucros. Nesse sentido, grandes corporações comumente vinculam a remuneração dos seus administradores aos resultados obtidos em benefício delas.
Seria uma espécie de participação nos resultados - normalmente atribuída como fator motivacional - paga aos administradores com as próprias ações da corporação. São as conhecidas “Stock Options”. Nesse sistema, os administradores ou funcionários passam a ser proprietários de ações da empresa e podem ou não obter lucros, o que dependerá do desempenho da corporação.
Não é necessário nenhum esforço interpretativo para compreender que os administradores, nesse contexto, teriam total interesse em que suas ações se valorizassem cada vez mais para obterem grandes resultados na sua comercialização. Foi o que aconteceu com um dos fundadores e CEO da “Enron”, Kenneth Lay. “Kenneth Lay reuniu mais de 200 milhões de dólares em ações nos últimos quatro anos vendidas antes que o escândalo estourasse e transformasse em pó o fundo de pensão de mais de 20 mil funcionários da empresa”. (4)
A atitude de Kenneth serve apenas para ilustrar o quão temerosa pode ser a prática de atribuir aos administradores lucros com base no resultado das empresas - o que tem levado o mercado americano a reivindicar ao governo que os salários e remunerações dos executivos sejam definidos, evitando, assim, a ocultação de resultados com o objetivo de aumentar seus rendimentos.
5 - A auditoria e a consultoria
Além dos interesses pessoais e ilícitos dos administradores em majorar os resultados da corporação, existia também a pressão dos investidores por bons resultados e a necessidade de demonstrar ao mercado que a corporação estava bem, para atrair mais investimentos.
Na verdade, não é possível identificar dentre essas causas qual mais motivou a ruína da “Enron”, seus investidores e empregados. Ousamos afirmar que a soma dessas condições à fragilidade dos mecanismos legais e contábeis que norteiam as corporações de capital aberto foram os responsáveis pelo desastre “Enron”.
“Tecnicamente, a Enron utilizou empresas coligadas e controladas para inflar seu resultado - uma prática comum nas empresas. Através de SPE's (Special Purpose Entities), a empresa transferia passivos, camuflava despesas, alavancava empréstimos, leasings, securitizações e montava arriscadas operações com derivativos”. (5)
Kenneth Lay, ao qualificar a engenharia contábil aplicada aos balanços da “Enron”, a traduziu como criativa e agressiva. (6)
Nesse mesmo sentido, o colunista da Revista Exame David Cohen resumiu de forma adequada a prática que levou a “Enron” à ruína. “A Enron varria débitos para entidades especiais das quais detinha participação majoritária mas que, por causa de uma norma contábil duvidosa, não eram consolidadas no balanço final”.
Cohen arremata afirmando que o resultado dessa falácia contábil foram: “lucros superestimados em 591 milhões de dólares e dívidas subestimadas em 628 milhões de dólares no último balanço.” (7)
Diante de todo esse quadro, o principal questionamento foi acerca do papel desempenhado pela auditoria independente que tinha o dever de informar todas estas operações e do seu dever de transparência com o mercado. O artigo 177, § 3º da lei brasileira número 6.404 de 1976, ao tratar da escrituração da companhia, reflete de forma clara que a auditoria deve ser um propagador da situação da corporação e, certamente, no contexto norte- americano não é diferente.
No caso da “Enron”, a auditoria responsável pelos balanços há quase 10 anos era a ARTHUR ANDERSEN. Além desse papel, a empresa também prestava consultoria à “Enron”, sendo que a concomitância dessas duas atividades pela mesma empresa são práticas totalmente incompatíveis, devendo-se ressaltar que, no Brasil, a incompatibilidade de tais atividades é disciplinada pela instrução normativa nº 308 da CVM, de 1999, que dispõe:
Art. 23. É vedado ao Auditor Independente e às pessoas físicas e jurídicas a ele ligadas, conforme definido nas normas de independência do CFC, em relação às entidades cujo serviço de auditoria contábil esteja a seu cargo:
I – adquirir ou manter títulos ou valores mobiliários de emissão da entidade, suas controladas, controladoras ou integrantes de um mesmo grupo econômico ou
II - prestar serviços de consultoria que possam caracterizar a perda da sua objetividade e independência.
Podemos dizer que a incompatibilidade das duas atividades exercidas pela ARTHUR ANDERSEN na “Enron” era conflitante porque, se, por um lado, a auditoria tinha como função verificar as demonstrações financeiras da corporação de forma isenta e transparente, por outro, a atividade de consultoria está diretamente relacionada à otimização de lucros e processos internos que muitas vezes se distanciam do dever de transparência da auditoria.
Estes interesses conflitantes entre auditoria e consultoria teriam sido um dos motivos da manipulação de resultados, conforme apontaram alguns analistas. Segundo eles, exatamente pelo fato de a atividade de consultoria ser mais rentável, a ARTHUR ANDERSEN teria forjado os números para fazer jus às quantias recebidas pela auditoria. “Dos 52 milhões que a ARTHUR ANDERSEN recebeu no ano passado, 27 milhões, ou mais da metade, não vinham de serviços de auditoria, mas de consultoria contábil, legal e de outros serviços.” (8)
6 -
Não podemos afirmar quais foram as reais causas desse trágico desfecho da “Enron”, mas certamente a economia de mercado teve acentuada influência na prática de fraudes e manobras contábeis que culminaram na concordata da empresa e no prejuízo de milhares de investidores, credores e empregados.
Ademais, todas as atitudes praticadas pelos administradores da “Enron” comprovam a fragilidade dos mecanismos contábeis e de auditoria capazes de coibir abusos e evitar fraudes lesivas ao mercado.
Outra séria conclusão a que chegamos é que há que existir uma prática transparente entre administradores de corporações, seus investidores e empregados capazes de refletir a real situação financeira de uma empresa.
Ademais, não poderíamos deixar de confirmar relação entre o caso “Enron” e os problemas de direito concursal, os quais o projeto de lei 4.376/93 busca atenuar. Nesse sentido, devemos refletir sobre as diversas formas fraudulentas que poderiam ser utilizadas para “mascarar” a situação de empresas em crise e, conseqüentemente, levar os credores a aceitarem a recuperação judicial.
Por fim, questionamos se o Poder Judiciário, ainda que composto por profissionais sérios e competentes, mas, ainda assim, assaz estagnado terá meios para analisar possíveis recuperações de empresas em crise e se os critérios para mensurar se uma empresa merece ser liquidada ou recuperada serão capazes de conviver com abusos tais como os evidenciados no caso “Enron”.
7 - Referências Bibliográficas
AVALIANDO A QUEDA DE UMA GIGANTE: O caso Enron. Disponível em: https://www.investsul.com.br/textos_academicos> Acesso em 22 de junho de 2004
COHEN, David. Quem audita os auditores?. Revista Exame, São Paulo. ano 36, n.3, p.10 a 11, fev./ 2002.
______. Andersen, em consultas. Revista Exame, São Paulo. ano 36, n.7, p.14 a 16, abr./ 2002.
ENTENDA O CASO ENRON.Desenvolvido pela Solidus S.A. Corretora de Câmbio e Valores Mobiliários. Disponível em: https://www.investsul.com.br/textos_academicos> Acesso em 24 de junho de 2004
GRADILONE, Cláudio. Que análise!. Revista Exame, São Paulo. ano 36, n.4, p.23, fev./ 2002.
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1Disponível em: https://www.investsul.com.br/textos_academicos <_https3a_ www.investsul.com.br="" textos_academicos=""><_https3a_ www.investsul.com.br="" textos_academicos="">Acesso em 24 de junho de 2004
2Disponível em: https://www.solidus.com.br/semanal.asp?semsemcodigo=20 Acesso em 24 de junho de 2004
3EXAME. São Paulo: Abril, ed 760, n. 4, fev. 2002. p. 23
4EXAME. São Paulo: Abril, ed. 759, n. 3, fev. 2002. p. 10.
5Disponível em: https://www.solidus.com.br/semanal.asp?semsemcodigo=20<_https3a_ _semanal.asp3f_emsemcodigo="20" www.solidus.com.br=""><_https3a_ www.solidus.com.br="" _semanal.asp3f_semsemcodigo="20"> Acesso em 24 de junho de 2004
6EXAME. São Paulo: Abril, ed. 759, n. 3, fev. 2002.
7idem, p. 10
8EXAME. São Paulo: Abril, ed. 759, n 3, fev. 2002, p. 11.
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* Mestrando em Direito Empresarial pela Universidade Federal de Minas Gerais, graduado em Direito pela Faculdade Mineira de Direito da PUC MG, advogado da ALE Combustíveis S.A., membro do Clube do Petróleo.
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