Migalhas de Peso

Zé do Caixão

Como se o noticiário tivesse a força do vento a tanger papagaio, desses de menino empinar, e lá vai ele, ante - ontem Zé de Baixo e desde ontem, ainda hoje, por ora ainda, Zé de Riba, lá vai ele querendo saber se a notícia é sobre morte, quem morreu, quantos anos tinha, se era alguém importante, alguma celebridade.

8/9/2008


Zé do Caixão

Edson Vidigal*

Como se o noticiário tivesse a força do vento a tanger papagaio, desses de menino empinar, e lá vai ele, ante - ontem Zé de Baixo e desde ontem, ainda hoje, por ora ainda, Zé de Riba, lá vai ele querendo saber se a notícia é sobre morte, quem morreu, quantos anos tinha, se era alguém importante, alguma celebridade.

Se o defunto é anjo, criancinha morta de inanição, dessas doenças comuns na pobreza causada pela indiferença política dos que desmandavam há décadas e ainda querem voltar para continuar atrasando mais o Estado e, com os seus, se dando muito bem, se o defunto é anjo não interessa.

Ele próprio se beliscando todo dia e avaliando o estágio da sua morbidez e nem precisando por óculos para ter a certeza de que já está quase com o pé na cova, quase chegando na morada de Severina, ele próprio não desconfia dos sintomas que o denunciam enfermo, portador de irreversível enfermidade mental.

Problema é que quando a doença é mental, e ninguém por perto se encoraja a dizer, a pessoa mimada, e se é velho mimado pior ainda, vai esparramando autoritarismo não admitindo ser contrariado em nada.

Esboça as mais insanas querências, engendra as mais perversas reações, vira um ser insaciável querendo de volta todo o poder que passou, e já passou faz é tempo como um pau de enchente descendo o rio na correnteza célere e não tem mais como voltar.

Só doido é que não sabe que o poder, como tudo na vida, passa. A vida transcorre numa sucessão de momentos. Bons de alegria, ruins de tristeza, tudo passa, os momentos passam.

Não adianta querer ficar se agarrando às coisas momentâneas, como o poder e a glória, porque sendo invenções dos momentos ligeiramente passam. Aromas, sabores, passam. E até os amores, se chegaram enfeitiçados na brasa do momento, passam.

Daí os verbos serem conjugados em três tempos – passado, presente e futuro. O que passou passou, meu jovem, diria o sábio Professor Luis Rego. Presidente da Academia de Letras, tinha nos alunos do seu colégio a certeza de que nenhum conferencista chegado à cidade sofreria o vexame da falta de quorum.

Um francês, discípulo de Sartre, saiu contando que nunca vira tantos intelectuais tão entusiasmados com o existencialismo quanto naquela noite na Academia. Os alunos do colégio de Luis Rego, à paisana, lotaram o auditório e a cada pausa do francês choviam aplausos.

Não é só em velório e enterro as aparições públicas de Zé do Caixão. Se o noticiário disser hoje que um francês vai falar a um auditório sobre o existencialismo é previsível que ele apareça, quem sabe vestido de Napoleão. Ultimamente deu para isso.

Não é que queira encarnar algum personagem, tipo assim para cada situação um personagem diferente. Aos poucos, ele coleciona modelitos.

Num velório recente, Zé do Caixão por pouco não apareceu envergando um par de asas como o rapaz daquele filme O Céu Pode Esperar. A família viu o par de asas num cabide e o escondeu, impedindo mais um ridículo.

O problema de Zé do Caixão é outro.

Quando num velório desfila bem devagar em torno do caixão, olho no olho do defunto, ele aufere ali um gozo cruel, não literalmente necrófilo. Seu êxtase se resume à certeza de que ali há um a menos e que ele, sim, não vai morrer nunca, pois se acha mesmo um imortal.

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*Ex-Presidente do STJ e Professor de Direito na UFMA



 

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