Comentários sobre a desconsideração da personalidade jurídica no novo código civil1
Stanley Martins Frasão*
A final rendeu-se o legislador à força da opinio juris doctorum e às decisões iterativas dos tribunais, para erigir a “Disregard Doctrine” em instituto de lei escrita (“de lege lata”), conforme se observa no Código de Defesa do Consumidor (Artigo 28), e, agora, no Código Civil (Artigo 50).
A Doutrina da Desconsideração da Personalidade Jurídica (“Lifting the Corporate Veil” ou “Disregard Doctrine”): Do Pensamento da Doutrina à Construção Pretoriana - Um Instituto em Elaboração (“de lege ferenda”)
Durante os oitenta e sete anos de vigência do Código Civil de 1916 (até
O professor OSMAR BRINA CORRÊA-LIMA (Responsabilidade Civil dos Administradores de Sociedade Anônima, 1989, p.140) sintetizou o dispositivo: “como corolário, tem-se que o patrimônio de uma sociedade não se confunde com os patrimônios dos sócios, que a compõem”2.
Assim, como regra geral, vigorou a separação patrimonial da sociedade das pessoas de seus sócios.
Mas os nossos Tribunais, há tempos, vêm aceitando a teoria construída pelo direito anglo-americano, conhecida como “doutrina da desconsideração da pessoa jurídica”, quebrando a norma do aludido dispositivo, quando praticados atos ultra vires.
O Projeto de Código Civil do professor MIGUEL REALE, hoje Lei 10.406 de 2002, acolheu a “doutrina da desconsideração da pessoa jurídica”3.
O professor RUBENS REQUIÃO transcreveu na Conferência proferida na Faculdade de Direito da Universidade Federal do Paraná a observação de Rolf Serik sobre o assunto:
Naquela mesma Conferência, concluiu o professor RUBENS REQUIÃO:A disregard doctrine aparece como algo mais do que um simples dispositivo do Direito americano de sociedade. É algo que aparece como conseqüência de uma expressão estrutural da sociedade. E, por isso, em qualquer país em que se apresente a separação incisiva entre a pessoa jurídica e os membros que a compõem, se coloca o problema de verificar como se há de enfrentar aqueles casos em que essa radical separação conduz a resultados completamente injustos e contrários ao direito4.
..., diante do abuso de direito e da fraude no uso da personalidade jurídica, o juiz brasileiro tem o direito de indagar, em seu livre convencimento, se há de consagrar a fraude ou o abuso de direito, ou se deva desprezar a personalidade jurídica, para, penetrando em seu âmago, alcançar as pessoas e bens que dentro dela se escondem para fins ilícitos e abusivos5.
Outro docente de Direito Civil da Faculdade de Direito da Universidade Federal do Paraná, o professor José Lamartine Corrêa, em artigo pioneiro, hoje igualmente clássico, fez, entre os primeiros, o discurso inaugural sobre a doutrina da desconsideração da personalidade jurídica e seu potencial de aplicação por vir no direito brasileiro.
Com isso, na lição do civilista (Lamartine Corrêa), ou no ensino do comercialista (Rubens Requião), lançaram-se as bases doutrinárias e proposições “de lege ferenda”, para que se levantasse o véu da personalidade jurídica (“lifting the corporate veil”) e se desconsiderasse a pessoa moral (“disregard doutrine”), sempre e onde a personalidade jurídica fosse desviada em proveito da fraude à lei e para a prática de atos ilícitos.
A professora MARIA HELENA DINIZ (Curso de Direito Civil Brasileiro, 2002, p. 262) sobre o assunto esclarece:
Essa doutrina tem por escopo responsabilizar os sócios pela prática de atos abusivos sob o manto de uma pessoa jurídica, coibindo manobras fraudulentas e abuso de direito, mediante a equiparação do sócio e da sociedade, desprezando-se a personalidade jurídica para alcançar as pessoas e bens que nela estão contidos6.
O Código de Defesa do Consumidor (Artigo 28) e o Código Civil (Artigo 50): um instituto de lei escrita (“de lege lata”)
Das proposições para um direito futuro (“de lege ferenda”), a Teoria da Desconsideração ganhou foro de direito positivo (“de lege lata”).
A aludida doutrina, nas relações consumeristas, a partir da vigência da Lei 8.078, de 11.09.1990 – Código de Defesa do Consumidor, conhecido como CDC, foi mitigada a rigidez do célebre artigo 20, do Código Civil de 1916, em face da normatização da desconsideração da personalidade jurídica nos campos do Direito Civil e Comercial. O CDC em seu artigo 28 prescreve:
Art. 28. O juiz poderá desconsiderar a personalidade jurídica da sociedade quando, em detrimento do consumidor, houver abuso de direito, excesso de poder, infração da lei, fato ou ato ilícito ou violação dos estatutos ou contrato social. A desconsideração também será efetivada quando houver falência, estado de insolvência, encerramento ou inatividade da pessoa jurídica provocados por má administração.
§ 1º (Vetado).
§ 2º As sociedades integrantes dos grupos societários e as sociedades controladas, são subsidiariamente responsáveis pelas obrigações decorrentes deste Código.
§ 3º As sociedades consorciadas são solidariamente responsáveis pelas obrigações decorrentes deste Código.
§ 4º As sociedades coligadas só responderão por culpa.
§ 5º Também poderá ser desconsiderada a pessoa jurídica sempre que sua personalidade for, de alguma forma, obstáculo ao ressarcimento de prejuízos causados aos consumidores.
O Código Civil de 2002 foi promulgado trazendo, dentre muitos, o artigo 50, sem correspondência com o Codex de 1916, que deve ser objeto de análise, a saber:
Art. 50. Em caso de abuso da personalidade jurídica, caracterizado pelo desvio de finalidade, ou pela confusão patrimonial, pode o juiz decidir, a requerimento da parte, ou do Ministério Público quando lhe couber intervir no processo, que os efeitos de certas e determinadas relações de obrigações sejam estendidos aos bens particulares dos administradores ou sócios da pessoa jurídica. (grifo nosso).
O professor RUY ROSADO DE AGUIAR JÚNIOR (Projeto do Código Civil: As Obrigações e os Contratos, p. 4)7, sobre o citado artigo 50, antes da promulgação do Código Civil, se manifestou no seguinte sentido:
É a teoria objetiva, a prescindir da fraude e se satisfazendo com o desvio da finalidade ou a confusão de patrimônios, com ou sem fraude, com ou sem prejuízo a terceiro (...). A disposição do projeto não é igual à do Código de Defesa do Consumidor (...) [porque] não inclui o fato objetivo da confusão de patrimônio como causa de desconsideração, ao mesmo tempo em que se refere a outras situações específicas, não contempladas no Projeto.
Dessa forma, o Código Civil de 2002 abandonou, parcialmente, o princípio romano societas distat a singulis, porque o patrimônio dos sócios poderá se fundir ao da sociedade, em duas hipóteses: (i) abuso da personalidade jurídica, caracterizado pelo desvio de finalidade; ou (ii) abuso da personalidade jurídica, caracterizado pela confusão patrimonial. Buscar-se-á, com isso, a adequação da justa indenização do dano causado, sem que isso cause qualquer desestímulo à atividade empresarial.
Mas se a sociedade limitada for regida pelas normas da sociedade simples (regime supletivo interno), o parágrafo único do artigo 1.015 prescreve uma exceção de imediato à desconsideração da personalidade jurídica em caso de abuso, caracterizado pelo desvio de finalidade, porque o excesso por parte dos administradores poderá ser oposto a terceiros quando se tratar de operação evidentemente estranha aos negócios da sociedade, ampliando-se, pois, a importância e a necessidade de se conhecer o contrato social da sociedade.
Agora se o contrato social da sociedade limitada tiver a regência pelas normas da sociedade anônima (regime supletivo externo), não haverá exceção, na forma do artigo 158 da Lei 6.404/1976.
Assim, se o administrador abusar da personalidade jurídica, caracterizada pelo desvio de finalidade, estará envolvendo diretamente não somente os seus bens particulares, mas os dos sócios, que nesta hipótese passarão a ter a responsabilidade solidária.
A responsabilidade dos sócios é subsidiária, isto é, o sócio demandado pelo pagamento da dívida; poderá exigir que sejam primeiro excutidos os bens do administrador e da sociedade (art. 596 do CPC).
A esse respeito, o professor AMÍLCAR DE CASTRO (Do Procedimento de Execução: Código de Processo Civil, 2000, p. 76-77) esclareceu:
A responsabilidade subsidiária dos sócios só aparece depois de verificada a insuficiência dos haveres sociais. Os sócios são solidários para as obrigações da sociedade, e em primeiro lugar deve ser executado quem contratou: a sociedade. Por isso os credores, sem acionar e executar a devedora, não podem executar os sócios por obrigações sociais, como se os mesmos tivessem contratado diretamente por conta própria8.
Dessa forma, administrador e sócios responderão, no cumprimento de suas obrigações, “com todos os seus bens, presentes e futuros (responsabilidade), salvo as restrições estabelecidas em lei (impenhorabilidade)”9, (art. 591).
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1Capítulo VI extraído da Dissertação “A RESPONSABILIDADE CIVIL DO ADMINISTRADOR DA SOCIEDADE LIMITADA” apresentada e defendida ao Curso de Pós-Graduação, Mestrado em “Stricto Sensu”, com área de concentração em Direito Empresarial da Faculdade de Direito Milton Campos, como requisito à obtenção do Título de Mestre sob a orientação do Prof. Doutor Osmar Brina Corrêa-Lima.
2CORRÊA-LIMA, Osmar Brina. Responsabilidade Civil dos Administradores de Sociedade Anônima. Rio de Janeiro: Aide, 1989. p.140.
3Art. 50, parágrafo único, do Projeto de Lei do Senado Federal n. 118/84.
4In RT 410/14.
5Ob. Cit. 410/14.
6DINIZ, Maria Helena. Curso de Direito Civil Brasileiro. 19 ed. São Paulo: Saraiva, 2002, vol. I. p. 262.
7AGUIAR JÚNIOR, Ruy Rosado de. Projeto do Código Civil: as Obrigações e os Contratos. São Paulo: Revista dos Tribunais. p. 4.
8CASTRO, Amílcar de. Do Procedimento de Execução: (Código de Processo Civil). Obra atualizada e revisada por FRASÃO, Stanley Martins; BARROS, João Pedro da Costa. 2 ed. Rio de Janeiro: Forense, 2000. p.76-77.
9CASTRO, Amílcar de. Ibid., 2000, p.52._______________
*Advogado do escritório Homero Costa Advogados
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