Migalhas de Peso

A privatização das prisões

É indiscutível que a nossa realidade carcerária é preocupante.

3/9/2004

A privatização das prisões


Rômulo de Andrade Moreira
*

É indiscutível que a nossa realidade carcerária é preocupante. Os nossos presídios e as nossas penitenciárias, abarrotados, recebem a cada dia um sem número de indiciados, processados ou condenados, sem que se tenha a mínima estrutura para recebê-los e há, ainda, milhares de mandados de prisão a serem cumpridos Ao invés de lugares de ressocialização do homem, tornam-se, ao contrário, fábrica de criminosos, de revoltados, de desiludidos, de desesperados. Por outro lado, à volta para a sociedade (através da liberdade), ao invés de solução, muitas das vezes torna-se mais uma via crucis, pois são homens fisicamente libertos, porém, de tal forma estigmatizados que se tornam reféns do seu próprio passado.

Hoje, o homem que cumpre uma pena ou de qualquer outra maneira deixa o cárcere encontra diante de si a triste realidade do desemprego, do descrédito, da desconfiança, do medo e do desprezo, restando-lhe poucas alternativas que não o acolhimento pelos seus antigos companheiros. Este homem é, em verdade, um ser destinado ao retorno: retorno à fome, ao crime, ao cárcere (só não volta se morrer).

Este é o nosso sistema penitenciário. Há solução?

Alguns advogam há algum tempo a idéia da privatização das prisões.

Somos intransigentemente contrários à privatização das prisões pelos motivos adiante aduzidos:

Como se sabe, é exclusividade do Estado manter a ordem pública mediante o uso da força, quando necessário, pois, salvo em casos excepcionais como a prisão em flagrante ou o desforço imediato, não é permitido ao particular coagir outrem com o uso da força; de regra, tal munus cabe à Administração Pública.

Em sendo assim, difícil é se admitir que seja delegada à iniciativa privada a possibilidade de ter sobre o homem o poder de sua guarda. Até do ponto de vista do Direito Administrativo isto não é possível. Analisando a questão sob este prisma, assim escreveu Ercília Rosana Carlos Reis:

“A execução penal, como vimos, não pode ser delegada a particular. As modalidades contratuais existentes hoje dentro da esfera da legislação administrativa não podem ser aproveitadas pelo programa de privatização, principalmente se o mesmo permitir que o particular aufira lucro e ainda se reembolse dos gastos com a construção de presídios através do trabalho dos presos. Essa forma de pagamento à empresa privada nada tem a ver com as que estão previstas na Lei de Licitações e Contratos hoje em vigor”1.

Aliás, já em 1955, a Organização das Nações Unidas, a ONU, em um documento que foi chamado de “REGRAS MÍNIMAS PARA O TRATAMENTO DOS RECLUSOS”, no seu item 73.1, orientava:

“As indústrias e granjas penitenciárias deverão, preferivelmente, ser dirigidas pela própria administração, e não por contratantes particulares”.

Demonstra-se, com este documento, que a preocupação com a privatização das penitenciárias não é de agora.

Dois anos depois, em 1957, o Professor Oscar Stevenson, em um Anteprojeto de Código Penitenciário que apresentou, na sua Exposição de Motivos, afirmou com salutar propriedade:

“Veda-se, por outro lado, a locação do trabalho dos recolhidos a empresas privadas. A enterprise, ou contract system, a direta sujeição do recolhido a contratantes particulares é sistema que a experiência condenou”.

Destarte, os responsáveis pela administração de um sistema penitenciário devem ser primordialmente funcionários públicos, cidadãos pagos pelos cofres públicos e que exercerão uma função exclusiva da administração pública.

Ademais, a execução penal, dirigida por um Juiz de Direito, fiscalizada pelo Ministério Público, não deve ter como órgão diretamente executor uma empresa privada que, antes de qualquer outro intuito, procura o lucro em suas atividades; e, então, exsurge a maior contradição da idéia: como se admitir que se extraiam lucros a partir da própria violência; como se conceber o ganho monetário a partir da criminalidade: é ou não é um contra-senso?

Sobre este assunto, há um importante estudo feito pelo americano Eric Lotke, onde se mostra o absurdo que se chegou com a privatização das prisões nos Estados Unidos. Ácido crítico da idéia, afirma o estudioso norte-americano o seguinte:

“As companhias de prisões privadas constituem hoje um novo ingrediente na economia dos EUA”.

“Oito companhias administram atualmente mais de 100 presídios em 19 estados. É uma indústria que cresceu vertiginosos 34 pontos percentuais nos últimos cinco anos. Existem hoje aproximadamente 70.000 presos em presídios privados. Em 1984 o número era de 2.500”.

“Os investidores perceberam isso. Uma pesquisa realizada em março de 1996 pela empresa Equitable Securities em Nashville descreve a indústria de prisões como ‘extremamente atraente’ e aconselha com muita ênfase aos investidores”.

“A indústria líder no mercado, a Corrections Corporation of America, a primeira companhia privada a comercializar suas ações, foi aclamada em 1993 (pelos analistas financeiros) como o grande investimento dos anos 90”.

E onde estaria a vantagem de se investir em prisões privadas? Segundo explica o mesmo articulista “o grande atrativo da administração privada das prisões e das companhias de serviços é simples: eles podem realizar nas prisões o mesmo trabalho feito pelo governo a um custo mais baixo, normalmente de 5% a 15% abaixo dos custos do setor público”. E como isto é possível? Em detrimento dos salários dos empregados e no não investimento em serviços que “poderiam transformar os presos em membros produtivos da sociedade quando libertados”, pois “companhias preocupadas com os lucros preferem evitar os custos com tratamento para viciados, aconselhamento em grupo, programas de alfabetização”.

Concluindo, afirma o americano:

“As indústrias madeireiras precisam de árvores; as siderúrgicas precisam de ferro; as companhias de prisões usam pessoas como matéria prima. As indústrias enriquecem na medida em que conseguem apanhar mais pessoas”2.

Não podemos ceder ao lobby das empresas de vigilância, além das de alimentação, lavanderia e tantas outras, estas sim, que iriam lucrar e auferir rendas notáveis, mas, inteiramente ilegítimas.

Se as nossas prisões não têm condições mínimas para abrigar seres humanos (e isto é verdade), cabe ao Estado, com o dinheiro que arrecada do contribuinte, mudar o modelo que hoje constatamos e assegurar o pouco de dignidade que resta a alguém que já perdeu a sua liberdade. Cabe ao Poder Público procurar soluções que permitam o cumprimento da pena de maneira humana e, efetivamente, ressocializadora, processo que passa, inclusive, pela preparação profissional do respectivo corpo funcional e pelo aumento do número de estabelecimentos prisionais, desafogando os que hoje existem.

Não esqueçamos que o art. 1º. da Lei de Execução Penal diz que a execução penal tem por objetivo “proporcionar condições para a harmônica integração social do condenado e do internado”. É evidente que tal dispositivo legal é mais uma agigantada letra morta em nosso sistema jurídico, o que é lamentável.

Por outro lado, também garante a mesma lei (§ 1º., do art. 84), que o “preso primário cumprirá pena em seção distinta daquela reservada para os reincidentes”, exatamente visando a impedir que a promiscuidade entre presos perigosos e outros que não sejam assim considerados, possa tornar prejudicial a estes últimos.

Uma outra questão grave é que as colônias agrícolas, industriais ou similares, previstas na mesma lei para receber presos do regime semi-aberto, não existem em grande parte do País, inviabilizando o adequado cumprimento de pena no referido regime. O mesmo fenômeno ocorre com as casas do albergado, destinadas ao preso em regime aberto e com os conselhos da comunidade, cuja previsão legal é de um por cada Comarca (!!!), a fim de prestar assistência aos presos e fiscalizar os estabelecimentos penais.

As condições atuais do cárcere, especialmente na América Latina, fazem com que a partir da ociosidade em que vivem os detentos, estabeleça-se o que se convencionou chamar de “subcultura carcerária”, um sistema de regras próprias no qual não se respeita a vida, nem a integridade física dos companheiros, valendo intra muros a “lei do mais forte”, insusceptível, inclusive, de intervenção oficial de qualquer ordem.

Basicamente são estes os motivos pelos quais a idéia da privatização das prisões é, sobretudo, desumana, algo a mais a estigmatizar a personalidade do condenado, transformando-o, como dito acima, em objeto de lucro e não de recuperação (é evidente que não interessaria a uma empresa privada ressocializar ninguém, muito pelo contrário; um homem ressocializado seria menos um em suas celas).
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1Privatização das Prisões – A Privatização das Prisões sob a Ótica do Direito Administrativo, São Paulo: Revista dos Tribunais, 1995, p. 48.
2Revista Brasileira de Ciências Criminais, São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, nº. 18, p. 28.
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* Promotor de Justiça e Assessor Especial do Procurador-Geral de Justiça. Ex-Coordenador do Centro de Apoio Operacional das Promotorias Criminais do Ministério Público do Estado da Bahia. Professor de Direito Processual Penal da Universidade Salvador-UNIFACS na graduação e na pós-graduação, da Fundação Escola Superior do Ministério Público da Bahia, da Escola Superior da Magistratura - EMAB e do Curso PODIUM – Preparatório para Concursos. Pós-graduado, lato sensu, pela Universidade de Salamanca/Espanha (Direito Processual Penal). Especialista em Processo pela UNIFACS (Curso coordenado pelo Professor Calmon de Passos). Membro da Association Internationale de Droit Penal, do Instituto Brasileiro de Direito Processual e da Associação Brasileira de Professores de Ciências Penais - ABPCP. Associado ao Instituto Brasileiro de Ciências Criminais IBCCrim e ao Movimento Ministério Público Democrático. Autor da obra “Direito Processual Penal”, Rio de Janeiro: Forense, 2003.

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