O papel da arbitragem nas relações internacionais
Vicente Oliva Buratto*
Isto porque controvérsias acerca do desenrolar contratual, referente a tais relações de comércio, são inevitáveis, principalmente pelo fato de que se trata de relações entre culturas muitas vezes diversas, senão de ideais mercantis opostos em sua natureza. Não se tratam acontecimentos constantes nas referidas relações, mas sim de fato comum, natural em contratações comerciais, notadamente no âmbito internacional.
Segundo o professor Irineu Strenger, a arbitragem, amplamente considerada, é realidade irreversível em nossos dias. Ignorar o fato significa colocar-se em plano jurídico cultural de inferioridade e de desatualização. E prossegue afirmando que a modalidade arbitral é o procedimento de maior eficácia para resolver os litígios ocorrentes no comércio internacional.
Assim, seja como tendência doutrinária, seja conclusão decorrente da prática comercial internacional, o compromisso arbitral - senão inserido no âmbito contratual, apartado em documento próprio - traduz-se como forma mais coerente na resolução dos mencionados conflitos, como a seguir demonstrar-se-á.
Como já fora dito, tendo em vista que a oposição de interesses é da própria natureza da relação contratual, os conflitos dela decorrentes, senão comuns, não podem ser considerados excepcionais. Como formas de solução, podemos citar três espécies de procedimento, caracterizadas com bastante propriedade no pensamento do professor Boaventura de Souza Santos, Catedrático da Faculdade de Economia da Universidade de Coimbra.
Segundo Boaventura, existem três formas básicas de solução dos conflitos oriundos das relações sociais - nelas inseridas as decorrente do comércio internacional -, quais sejam: a adjudicação, a negociação e a mediação (espécie da qual arbitragem é gênero).
Pela adjudicação, entende o professor que, no sentido técnico que lhe é atribuído na antropologia do direito, designa-se um modelo de decisão que se caracteriza pela imposição de uma determinação, normativamente fundada, que clara e inequivocamente favorece uma das partes com exceção da restante. Ou seja, possui estrutura do vencedor/vencido. Dita forma de solução de conflitos domina basicamente todas os sistemas jurídicos oficiais dos estados modernos em geral. É a forma pela qual o Estado distribui o direito, através de sua função jurisdicional, exercida pelo Poder Judiciário, democraticamente estabelecido.
Outra forma de resolução de conflitos denomina-se negociação. Trata-se de uma estrutura decisória em que o juiz ou árbitro (terceira pessoa estranha à relação), quando existente, é mera correia de transmissão de uma sequência de propostas das partes com vistas à convergência possível. A figura do árbitro, neste caso, é dispensável, e quando existente, possui pouca importância na solução almejada. Trata-se tão somente de uma tentativa entre as partes de solucionar a divergência entre elas existente, através de uma acerto, ou negócio.
Por fim, segundo o professor português, existe o procedimento da mediação para a resolução de conflitos. Por mediação, entende ser o termo médio entre adjudicação e negociação. Nela, o árbitro/ juiz desempenha um papel ativo e constitutivo, no qual se tece a distanciação que lhe permite afirmar-se como sede da decisão, ainda que se trate de um afastamento precário, na medida em que aspira à sua auto negação na adesão das partes, isto é, no ato pelo qual as partes fazem sua a decisão.
Não obstante a definição por demais abstrata do que viria a ser a mediação - passível, por conseguinte, de inúmeras classificações -, podemos inserir a arbitragem como uma de suas formas. Há, outrossim, quem considere a arbitragem como sinônimo de mediação. Isto porque nela, as controvérsias entre as partes resolvem-se através de regime contratualmente estabelecido, com procedimentos próprios, através dos quais procura-se chegar a um entendimento para o conflito de interesses, munido de força executória. A arbitragem internacional, nesses casos, terá suas peculiaridades a seguir expostas.
A arbitragem obteve significativo ganho no ordenamento jurídico nacional com a edição da lei 9.307/96. Nela, regula-se a mediação arbitral para efeito de solução de conflitos nacionais, notadamente a formalização do compromisso arbitral, o procedimento pela qual deverá dar-se a arbitragem, dentre outros. Não se olvida, entrementes, de referir-se ao reconhecimento e posterior execução de sentenças ou laudos arbitrais de origem estrangeira. Esta lei alterou radicalmente o regime jurídico da arbitragem no país, particularmente no âmbito da arbitragem internacional privada.
Hoje 90% dos contratos comerciais internacionais contém uma cláusula arbitral, o que demonstra a preferência majoritária de que as lides decorrentes de tais contratos sejam decididas pelas cortes arbitrais e não pela justiça estatal.
Estes tribunais arbitrais são compostos em sua maioria por um ou mais árbitros. E quando regularmente instituídos pelas partes – seja pelo compromisso arbitral ou pela cláusula compromissória -, excluem a competência dos juízes estatais para o julgamento da lide. O próprio Código de Processo Civil possui disposição orientando pela extinção do processo, sem o julgamento do mérito, nos casos de arguição de convenção arbitral (inciso VI do Art. 267).
Há da mesma forma entendimento jurisprudencial firmado - inclusive STF -, de que a exceção do compromisso arbitral, na forma acima posta, não ofende a garantia constitucional prescrita no inciso XXXV, do art.5º, da Constituição Federal de 1988. Assim, a arbitragem constitui-se num meio alternativo hábil à solução de conflitos, notadamente daqueles oriundos das relações internacionais, dada a preferência pela sua instituição, como acima relatado.
A arbitragem, enquanto procedimento alternativo, possui, dentre outras, as seguintes características: a) é reconhecida pela ordem jurídica; b) tem por finalidade a solução definitiva dos conflitos; c) baseia-se numa convenção de arbitragem prévia e válida; d) suas decisões produzem efeitos jurídicos semelhantes às decisões proferidas pelos tribunais estatais, notadamente o efeito da coisa julgada, e possibilidade de execução forçada através do poder estatal;
Há nesse sentido uma tendência da comunidade comercial internacional pela adoção da arbitragem para a solução dos eventuais conflitos existentes do desenrolar das relações contratuais decorrentes, preferida à submissão de eventual lide aos Poderes Institucionais, pelo fato de tal procedimento apresentar algumas vantagens quando comparadas ao poder estatal, através do Judiciário, dentre as quais poderíamos listar as seguintes:
a) a celeridade mediante a qual um tribunal arbitral pode atuar, quando o processo estatal é tortuoso e por vezes excessivamente delongado;
b) a qualificação profissional e técnica dos árbitros, especializados em decidir litígios com conexão internacional e relacionados ao comércio, quando muitas vezes os juízes estatais não estão preparados para lidar com situações estranhas ao ordenamento jurídico pátrio;
c) o sigilo do procedimento arbitral, contrariamente ao princípio da publicidade dos atos públicos, notadamente na prestação da atividade jurisdicional;
d) baixo custo, quando comparado ao altíssimo custo não apenas das taxas judiciais, mas também dos honorários cobrados pelos profissionais do direito;
e) autonomia das partes em determinar as regras procedimentais, através das quais irá orientar-se o procedimento arbitral, possibilitando maior liberdade na solução dos conflitos, e contrariamente às regras procedimentais estatais, cogentes enquanto norma jurídica nacional, e muitas vezes inadequadas para as necessidades do comércio internacional;
f) maior confiança no árbitro que no juiz estatal, tendo em vista o comum acordo entre as partes na sua escolha, tendo em vista que muitas vezes a parcialidade do julgador estatal demonstra-se inescusável.
Tais vantagens são determinantes na designação do juízo arbitral ao qual as partes contratantes, no âmbito do comércio internacional, irão submeter as controvérsias decorrentes de tal relação contratual.
Ademais, considerando a autonomia das partes na escolha do juízo arbitral e do procedimento pelo qual solucionará seus conflitos, a instituição do compromisso arbitral é de suma importância. Isto porque existem diversos tribunais, e muitos outros procedimentos à escolha dos interessados.
No Brasil, existe a lei 9.307/96 como ordenamento especial, que, conforme anteriormente explanado, alterou substancialmente o regime arbitral no nosso país, inserindo inovações de suma importância à concretização e ao estabelecimento do regime arbitral no âmbito nacional. Vale esclarecer, todavia, que, nos termos da nova lei de arbitragem, somente as lides referentes a direitos patrimoniais disponíveis poderão ser submetidas ao juízo arbitral.
No âmbito internacional, no qual a arbitragem comercial é bastante relevante, podemos cita a Lei Modelo da UNCITRAL (United Nations Comission on International Trade Law), de 21 de junho de 1985, aplicável somente às transações comerciais internacionais. Isto porque dita norma conceitua de forma extensiva o que viria a ser comércio, abrangendo lides referentes às relações comerciais de toda espécie.
Segundo os especialistas em arbitragem internacional, a tendência moderna é que os países ou outras instituições internacionais, sigam a orientação da Lei Modelo da UNCITRAL, adotando-se, por consequência, a noção extensiva do conceito de comércio.
A Lei Modelo da UNCITRAL define arbitragem como internacional se as partes, no momento em que celebram a convenção arbitral, tiverem seus estabelecimentos em diferentes estados, ou ainda, quando as partes expressamente acordarem que o objeto da convenção de arbitragem tenha relações com mais de um país.
Todavia, não obstante a mencionada tendência de seguimento da Lei Modelo por diversos países, há outros que persistem na idéia de manter seus conceitos e regulamentos acerca da arbitragem internacional, e, ainda, de natureza interna, tais com a Suíça, França, e o próprio Brasil.
Não obstante existir disposição na Lei 9.307/96 quanto a homologação e execução de laudos arbitrais estrangeiros no país, o Brasil ratificou a Convenção Interamericana sobre Arbitragem Comercial Internacional (Convenção do Panamá), o que trouxe significativas mudanças nos procedimentos de homologação e execução dos referidos laudos arbitrais.
Entretanto, como único país do Mercosul, o Brasil não assinou a Convenção de Nova Iorque sobre o Reconhecimento e a execução de Sentenças Arbitrais Estrangeiras, de 10.6.1958.
Sem embargo, apesar dessa situação peculiar do Brasil no campo da arbitragem internacional, nada obsta que brasileiros firmem compromissos arbitrais e, com base na autonomia da vontade, estabeleçam que outro ordenamento procedimental, que o não o pátrio (lei 9.307/96), reja a solução dos eventuais conflitos, oriundos da relação comercial celebrada.
No âmbito do Mercosul, vale ressaltar a importância do protocolo de Las Leñas sobre Cooperação e Assistência Jurisdicional em Matéria Civil, Comercial, Trabalhista e Administrativa, de 27 de junho de 1992, vigente em todos os países que compõem a mencionada área livre de comércio. E ainda, o Acordo sobre Arbitragem Comercial Internacional do Mercosul, firmado entre os países integrantes daquele bloco e a República do Chile e da Bolívia.
Individualmente, o Brasil assinou a Convenção de Cooperação Judiciária em Matéria Civil, Comercial, Trabalhista e Administrativa, celebrada com a França em 1981. Sua aplicação quanto as sentenças arbitrais possui disposição expressa, sendo este aspecto de suma importância prática com relação aos laudos proferidos no âmbito da câmara Internacional do Comércio de Paris (CCI/ICC), sediada em Paris.
Quanto aos tribunais institucionais, dotados de regulamentos de arbitragem próprios, vale expor os seguintes:
a) A Corte Arbitral Internacional da Câmara Internacional do Comércio de Paris, a mais importante e mais conhecida instituição de arbitragem dentre os agentes de comércio internacional;
b) A American Arbitration Association (AAA), fundada em 1926;
c) A Comissão Interamericana de Arbitragem Comercial, resultante de uma resolução da Organização dos Estados Americanos (OEA), sendo composta por delegados de cada um dos Estados membros da Organização.
No Brasil, foram fundadas algumas Câmaras, tais como a Câmara de Comércio Brasil-Canadá, em São Paulo, Comissão de Arbitragem da Câmara Internacional do Brasil, em Belo Horizonte, o Centro Brasileiro de Arbitragem, com sede no Rio de Janeiro, e a Câmara de Arbitragem do Estado do Paraná, instaurado em 1996 por iniciativa da Associação Comercial do Paraná.
Assim, restando demonstrada a inexorável importância da arbitragem nas relações internacionais, principalmente naquelas de natureza comercial, pode-se complementar a sumária explanação, com os dizeres do Profº. Beat Walter Rechsteiner segundo o qual se espera, à medida em que o Mercosul continue a se fortalecer, sejam criados tribunais arbitrais institucionais no Brasil.
Não obstante, entretanto, a ciência de que persistem alguns problemas relacionados à implementação do procedimento arbitral, cumpre reforçar que muito já foi feito nesse sentido, tanto pelo esforço doutrinário na explicitação dos benefícios decorrentes, como pelos interessados direitos através das referidas Câmaras de Comércio, constituindo-se tais instituições como exemplo modal para a efetiva aplicação da arbitragem na solução de conflitos oriundos das relações comerciais internacionais.
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*Advogado
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