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O ISS e a lista de serviços veiculada pela Lei Complementar 116/03

O Imposto sobre serviços de qualquer natureza, o ISS, está previsto na Constituição Federal como imposto de competência dos Municípios.

19/8/2008


O ISS e a lista de serviços veiculada pela Lei Complementar 116/03

Isabella Costa Moysés*

1. Introdução

O Imposto sobre serviços de qualquer natureza, o ISS, está previsto na Constituição Federal (clique aqui) como imposto de competência dos Municípios. O artigo 156, III da Constituição Federal, que autoriza a instituição do ISS pelos Municípios, tem causado discussões jurisprudenciais e doutrinárias, em razão da parte final do artigo, que exige a produção de lei complementar para tratar dos serviços tributados pelo ISS.

A Lei Complementar exigida é a Lei Complementar 116 (clique aqui), que introduziu no ordenamento jurídico pátrio uma lista de serviços passíveis de tributação pelos Municípios, o que levou tomada de posicionamentos da doutrina e da jurisprudência.

2. Hierarquia entre lei complementar e lei ordinária

As normas jurídicas do sistema de direito positivo estão postas de forma que compõem uma estrutura escalonada de normas. Norma superior é o fundamento de validade de norma inferior. A Constituição Federal é o fundamento de validade de todo o ordenamento jurídico, devendo todas as normas infraconstitucionais buscar fundamento de validade no texto constitucional. No sistema de direito positivo pátrio a Constituição Federal é hierarquicamente superior em relação a todas as normas que não compõem o texto constitucional. Ou seja, os veículos introdutores postos no sistema devem buscar o fundamento de validade da Carta Magna. É bom esclarecer que podemos falar em hierarquia até mesmo entre as normas constitucionais. Existem normas postas na Constituição que podem ser modificadas mediante introdução de Emenda Constitucional no sistema de direito positivo. Contudo, há normas constitucionais que não podem ser supridas, nem mesmo por Emenda Constitucional, podendo haver supressão de tais normas somente por meio de inauguração de uma nova ordem constitucional. São as denominadas cláusulas pétreas, previstas no §4º do artigo 60 da Constituição Federal. A hierarquia entre normas de determinado sistema normativo é tecida pelo próprio sistema1.

Podemos falar em fundamento de validade em sentido formal e fundamento de validade em sentido material. Vejamos excelente exemplo de Tárek Moysés Moussallem:

"Tome-se, a título exemplificativo, uma sentença judicial de mérito em matéria cível: a enunciação-enunciada tem seu fundamento de validade no Código de Processo Civil, e o enunciado-enunciado no Código Civil"2.

A análise da hierarquia das normas no sentido material e formal também ocorre no momento de análise da hierarquia entre lei complementar e lei ordinária. "Determinar a superioridade da lei complementar em relação à lei ordinária depende de tomada de posição prévia da função exercida pela lei complementar no direito brasileiro3".

Quando uma norma busca na outra norma superior apenas pressupostos de forma estabelecidos pelo ordenamento, somente haverá relação hierárquica no sentido formal. Ou seja, quando uma norma tiver que respeitar procedimentos e forma de estrutura do veículo introdutor conforme regras estabelecidas em outra norma, haverá subordinação das normas apenas sob o aspecto formal. Quando a norma busca fundamento de validade em outra norma em relação ao conteúdo veiculado, aí teremos relação de subordinação hierárquica sob o aspecto material.

O parágrafo único do artigo 59 da Constituição Federal prescreve que:

Parágrafo único: Lei complementar disporá sobre a elaboração, redação, alteração e consolidação das leis.

Em razão de tal previsão constitucional, foi inserida no ordenamento pátrio a Lei Complementar 95/98 (clique aqui), que dispõe sobre "a elaboração, a redação, a alteração e a consolidação das leis". A Lei Complementar 95/98 é hierarquicamente superior em relação aos demais veículos introdutores, inclusive em relação a outras leis complementares, sob o aspecto formal.

A Constituição estabelece em seu artigo 69 que lei complementar é aquela que dispões sobre matéria de prevista de maneira expressa ou implícita na Constituição e que está submetida ao quorum qualificado, ou seja, deve ser aprovada pela maioria absoluta na Câmara dos Deputados e no Senado Federal.

Matérias reservadas à lei complementar, na maioria das vezes, estão previstas de forma expressa. Mas não significa que possa haver uma previsão implícita. Há casos em que apenas o legislador constituinte expressou que determinada matéria deve ser regulada por lei, sem trazer de forma expressa que se trata de lei complementar. Por meio de uma interpretação da Constituição como um todo, chega-se à conclusão que se trata de lei complementar.

Por está previsto no rol do artigo 59 da Constituição Federal a lei complementar logo abaixo da Emenda Constitucional e acima da lei ordinária, muitos doutrinadores sustentam a superioridade hierárquica da lei complementar em relação à lei ordinária. De forma brilhante explica Paulo de Barros Carvalho4:

Foi José Souto Maior Borges quem pôs a descoberto as erronias desta tese, baseada, rudimentarmente, na topologia do enunciado legal e no procedimento legislativo preconizado para a edição dessas normas. Com argumentos sólidos, demonstrou que as leis complementares não exibem fisionomia unitária que propicie, em breve juízo, uma definição de sua superioridade nos escalões do sistema. De seguida, propõe critério recolhido na Teoria Geral do Direito, para discernir as leis complementares em duas espécies:

a) aquelas que fundamentam a validade de outros atos normativos;

b) as que realizam sua missão constitucional independentemente da edição de outras normas.

A hierarquia da norma é analisada pelo seu fundamento de validade. Ou seja, pode existir hierarquia da lei complementar em relação à lei ordinária ou não. Se a lei ordinária buscar fundamento de validade na lei complementar, haverá relação hierarquia. Se a norma vinculada por lei ordinária não buscar seu fundamento de validade na lei complementar, não há que se falar em relação de hierarquia.

Legislador federal, legislador estadual, distrital e municipal exercem suas competências em âmbitos diferentes, conforme já salientado no capítulo anterior. Contudo, os legisladores que compõem o Congresso Nacional são agentes credenciados pelo sistema para produzirem normas federais e normas nacionais. Daí o motivo de a doutrina fazer a distinção entre legislador federal e legislador nacional. Explica Geraldo Ataliba5 que o Congresso Nacional é órgão legislativo do Estado Federal e da União. De forma mais específica, teríamos:

i) constituinte derivado, ao discutir e votar Emendas à Constituição, e é o legislador ordinário da União sob duas modalidades:

ii) legislador federal ao exercer as competências típicas da União, na qualidade de pessoa de direito público interno, plenamente autônoma;

iii) legislador nacional, ao dispor sobre normas gerais aplicáveis às quatro pessoas políticas, nas matérias previstas no art. 24, da CF, e em outras previstas no corpo da Constituição6.

Assim, legislador derivado, legislador federal e o legislador nacional são os membros do Congresso Nacional, que exercem competências distintas. A lei nacional deve ser obedecida pela a União, pelos Estados, pelo Distrito Federal e pelos Municípios. Geraldo Ataliba explica:

(...) a Constituição confere à lei nacional amplíssimo poder para regular matérias específicas em todo o território nacional, abstração feita da sujeição dos destinatários da norma, quer à União, quer aos Estados e Municípios. Já a lei federal, embora editada pelo mesmo órgão, onera, circunscritamente, somente os jurisdicionados da União. Donde se vê que a lei federal se opõe- no mesmo plano que está- à lei estadual e à lei municipal, enquanto que a lei nacional abstrai de todas elas- federal, estadual e municipal- transcendendo-as7.

Antes de ingressar na discussão acerca do conteúdo das "normas gerais de direito tributário" é importante analisar a superioridade hierárquica da lei complementar que veicula as denominadas "normas gerais de direito tributário" para em momento posterior pesquisar o seu conteúdo.

Os representantes do Congresso Nacional, ao introduzirem no ordenamento jurídico as normas gerais de direito tributário estão agindo na condição de legisladores nacionais e não legisladores federais. As normas gerais de direito tributário são normas nacionais, sendo hierarquicamente superiores às demais normas tributárias veiculadas por meio de leis complementares e leis ordinárias.

Dessa forma, não existe qualquer hierarquia da lei federal em relação à lei estadual e municipal. Mas a lei complementar nacional é hierarquicamente superior em relação às leis federais, estaduais, distritais e municipais. Devem as normas federais, estaduais, distritais e municipais buscar fundamento de validade na lei complementar nacional que veicular normas gerais de direito tributário. Sendo assim, não pode o legislador nacional veicular normas que atinjam a própria competências dos entes políticos. Deve apenas veicular as normas gerais de direito tributário de forma que não viole a própria autonomia dos entes, que está assegurada na Constituição Federal.

O Código Tributário Nacional, Lei 7512/66 (clique aqui), foi recepcionado pelo atual ordenamento jurídico brasileiro inaugurado em 1988. É o fundamento de validade de normas infraconstitucionais federais, estaduais e municipais em matéria tributária. Os entes políticos competentes devem buscar no Código Tributário Nacional o fundamento de validade ao produzirem normas tributárias. É a lei complementar nacional que veicula as "normas gerais em matéria tributária".

3.O artigo 146 da Constituição Federal

A Constituição de 1967 assim trazia em seu artigo 18:

Lei complementar estabelecerá normas gerais de direito tributário, disporá sobre conflitos de competência nessa matéria entre União, os Estados, o Distrito Federal e os Municípios e regulará as limitações constitucionais ao poder de tributar.

Doutrinadores já sustentavam nessa época a tripla função da lei complementar, que seria estabelecer normas gerais de direito tributário, dispor sobre conflito de competência entre os entes e regular as limitações constitucionais ao poder de tributar. Conforme ensina Paulo de Barros Carvalho8 esta corrente doutrinária que sustenta a tripla função das normas gerais parte de uma "interpretação singularmente literal".

Contra tal entendimento a doutrina, preservando o pacto federativo, interpretava o artigo 18 de maneira diversa, sustentando que a lei complementar somente poderia veicular normas gerais de direito tributário com a função de dispor sobre conflito de competência e regular as limitações constitucionais ao poder de tributar.

O artigo 146 da Constituição Federal prescreve que:

Art. 146. Cabe à lei complementar:

I- dispor sobre conflitos de competência, em matéria tributária, entre a União, os Estados, o Distrito Federal e os Municípios;

II-regular as limitações constitucionais ao poder de tributar

III- estabelecer normas gerais em matéria de legislação tributária, especialmente sobre:

a) definição de tributos e suas espécies, bom como, em relação aos impostos discriminados nesta Constituição, a dos respectivos fatos geradores, bases de cálculo e contribuintes;

b) obrigação, lançamento, crédito, prescrição e decadência tributários;

c) adequado tratamento tributário ao ato cooperativo praticado pelas sociedades cooperativas;

d) definição de tratamento diferenciado e favorecido para as microempresas e para as empresas de pequeno porte, inclusive regimes especiais ou simplificados no caso do imposto previsto no art. 155, II, das contribuições previstas no art. 195, I e §§ 12 e 13, e da contribuição a que se refere o art. 239.

Interpretar o artigo 146 da Constituição Federal não é uma tarefa simples. Para se chegar a uma interpretação das normas do artigo 146 devemos analisar de forma conjunta o pacto federativo, a autonomia dos entes políticos, o papel da lei complementar. Não podemos esquecer que as normas jurídicas formam um sistema. Assim, devem estar dispostas em relação de coordenação entre si e subordinação em relação a um elemento aglutinante.

Ora, só com estas colocações já podemos dizer que o art. 146 da Lei Maior deve ser entendido em perfeita harmonia com os dispositivos constitucionais que conferem competências tributárias privativas à União, aos Estados, aos Municípios e ao Distrito Federal, pois a autonomia jurídica destas pessoas políticas envolve princípios constitucionais incontornáveis9.

Os veículos introdutores previstos no sistema devem introduzir normas jurídicas de acordo com a Constituição Federal. Dessa forma, deve a Lei Complementar, exigida pelo artigo 146 ser produzida nos ditames da Carta Maior.

Devemos observar que o artigo 146 não deve ser interpretado de uma maneira isolada. Não podemos esquecer que temos como forma de estado a federação, possuindo a União, os Estados, Distrito Federal e Municípios ampla autonomia político-administrativa.

O artigo 146, que prescreve a produção de lei complementar para introduzir as normas gerais de direito tributário, é um caso de lei nacional. Ou seja, norma que possui como âmbito de validade a União, os Estados, Distrito Federal e os Municípios. Tal norma não pode jamais invadir a competência dos entes, de forma que viole a própria autonomia político-administrativa. Por isso a necessidade de interpretar o artigo 146 da Constituição Federal de maneira conjunta com alguns princípios constitucionais, dando destaque ao princípio da autonomia dos entes políticos, em razão do pacto federativo.

As competências dos entes estão exaustivamente previstas na Constituição Federal, não podendo haver qualquer alteração das competências por normas infraconstitucionais. Mesmo se houver alguma mudança de competência por meio de Emenda constitucional, ainda sim tal alteração somente será constitucional se não existir supressão de autonomia de nenhum dos entes políticos. Não pode haver no sistema norma inserida por lei complementar no sentido de suprir as competências delimitadas na Constituição Federal. Excelente é a explicação de Carrazza:

Julgamos incontroverso que a Constituição não conferiu ao legislador complementar um "cheque em branco" para, por meio da edição deste ato normativo, traçar as competências tributárias, com suas limitações, da União, dos Estados, dos Municípios e do Distrito Federal. Apenas concedeu que ele, de duas, uma: ou dispusesse sobre conflitos de competência entre as entidades tributantes, ou regulasse as limitações constitucionais ao exercício da competência tributária10.

Não pode a União, através dos agentes credenciados pelo sistema, produzir normas nacionais no sentido de alterar a própria competência dos entes. A interpretação do artigo 146 deve ser no sentido de preservar o pacto federativo. O Brasil é um estado federal, que prestigia a autonomia político-legislativa dos entes. Suprir a competência dos entes com o argumento de estar veiculando normas gerais de direito tributário é violar a cláusula pétrea do pacto federativo, previsto no §4º do artigo 60 da Constituição Federal, transformando o Brasil em Estado Unitário.

Muitos entendem que a lei complementar exigida pelo artigo 146 teria três funções. Deveria "dispor sobre conflitos de competências em matéria tributária, entre a União, os Estados, o Distrito Federal e os Municípios", "regular limitações ao poder de tributar" e "estabelecer normas gerais de direito tributário". Este entendimento é daqueles a própria doutrina denomina de corrente tricotômica.

O segundo entendimento é no sentido de que cabe a lei complementar introduzir normas gerais de direito tributário que versem sobre conflitos de competências e limitações constitucionais ao poder de tributar. Ou seja, o inciso III é aplicável apenas para alcançar as hipóteses do inciso I e II. Não atendendo a esses dois primeiros incisos do artigo 146, as demais normas veiculadas pela lei complementar seriam normas federais e não nacionais. Esse é o entendimento daqueles que se filiam à denominada corrente dicotômica.

Existe na doutrina uma dupla interpretação acerca do artigo 146 da Constituição Federal. E isso se dá justamente pelo alcance do sentindo das "normas gerais de direito tributário".

Somos da opinião que a melhor interpretação do artigo 146 da Constituição Federal é no sentido de caber a lei complementar inserir no sistema normas gerais de direito tributário que versem sobre a disposição de conflito de competências e sobre as limitações constitucionais ao poder de tributar. Apenas isso. Nada mais. Se assim não for, estará o legislador, através da produção da lei complementar, usurpando a competência dos entes políticos. Esse também é o entendimento de Roque Antonio Carrazza:

Portanto, somos de opinião que a lei complementar em exame só poderá veicular normas gerais em matéria de legislação tributária, as quais ou disporão sobre conflitos de competência, em matéria tributária, ou regularão "as limitações constitucionais ao poder de tributar"11.

Temos então que havendo matéria que possa gerar um conflito de competências, caberá à lei complementar inserir normas gerais no sentido de evitar o referido conflito. Deve também o legislador, por meio de lei complementar, inserir normas gerais em matéria tributária no sentido de estabelecer limitações constitucionais ao poder de tributar.

Com isso, o Código Tributário Nacional, Lei 5172/66, veicula normas gerais em matéria tributária quando dispõe sobre conflitos de competências e quando veicula as limitações constitucionais ao poder de tributar dos entes. Demais normas inseridas no sistema por meio do Código Tributário Nacional são normas federais.

Brilhante é o entendimento de Paulo de Barros Carvalho12:

Sim, porque na medida em que fosse deferida à legislação complementar produzir, indiscriminadamente, regras jurídicas que penetrassem o recinto que sob pretexto de fazê-lo mediante normas gerais, estar-se-ia trincando o postulado federativo, encarnado, juridicamente, na autonomia recíproca da União e dos Estados, sob o pálio da Constituição. Ao mesmo tempo, se tais preceitos, protegidos pela capa da generalidade, pudessem invadir as prerrogativas constitucionais de que usufruem os Municípios, sem limitações determinadas, precisas e antecipadamente conhecidas, teríamos inevitável esvaziamento do princípio que assegurava autonomia àquelas pessoas políticas.

Pode-se sustentar que a interpretação do artigo 146, denominada corrente dicotômica, com o intuito de preservar o pacto federativo, acabaria por violar a segurança jurídica, vez que cada ente político poderia produzir normas tributárias diversas quando não se tratasse de normas de competência do legislador nacional, que para tal corrente seria apenas normas gerais para dirimir conflitos de competência e para regular limitações constitucionais ao poder de tributar. Todavia, segurança jurídica não é sinônimo de generalização de normas.

Os agentes competentes para criarem normas jurídicas tributárias devem observar os diversos princípios constitucionais tributários, no momento de instituição, fiscalização e arrecadação dos tributos. O contribuinte está amparado por diversos princípios constitucionais tributários para não fica à mercê do poder do Fisco. São esses princípios que garantem uma instituição de tributos dentro de parâmetros previamente estabelecidos. É o que Carrazza, citando Paulo de Barros Carvalho, denomina de "estatuto do contribuinte".

Define-se estatuto do contribuinte, ao pé de nossa realidade jurídico-positiva, como a somatória, harmônica e organizada, dos mandamentos constitucionais sobre a matéria tributária, que, positiva ou negativamente, estipulam direitos, obrigações e deveres do sujeito passivo, diante das pretensões do Estado (aqui utilizado na sua acepção mais ampla e abrangente- entidade tributante. E quaisquer desses direitos, deveres e obrigações, porventura encontrados em outros níveis da escala jurídico-normativa, terão de achar respaldo de validade naqueles imperativos supremos, sob pena de flagrante injuridicdade.13

Um princípio que muitas vezes é esquecido é o princípio do consentimento. Vivemos em um Estado Democrático de Direito. Ou seja, o poder emana do povo. É o povo que detém o poder, que é exercido por meio de seus representantes. Estes devem agir somente dentro dos limites previstos, e em prol do povo. Somente poderá o Fisco cobrar tributos que o povo assim consentir. As pessoas somente poderão ter parcelas de seus patrimônios retirados a favor do Fisco quando assim consentirem. Ensina José Artur Lima Gonçalves14:

Esse princípio- do consentimento- é aquele que exige que o particular consinta (i) em concorrer para os gastos públicos e (ii) em que medida o fará. E esse consentimento é expressado por intermédio dos representantes do povo no Legislativo. Ao aprovar a lei que institui ou majora tributo, o parlamentar está expressando o consentimento do eleitor em contribuir, nos termos da lei aprovada, para o custeio dos gastos públicos.

O poder constituinte, assim, produziu as normas constitucionais, que delimitam as competências dos entes políticos para instituírem os tributos. Estes somente podem ser instituídos, se respeitarem todos os parâmetros traçados pela Carta Magna.

Em outros termos, a União, os Estados-membros, os Municípios e o Distrito Federal, ao fazerem uso de suas competências tributárias, são obrigados a respeitar os direitos individuais e suas garantias. O contribuinte tem a faculdade de, mesmo sendo tributado pela pessoa política competente, ver respeitado seus direitos públicos subjetivos, constitucionalmente garantidos15.

Os tributos somente poderão ser instituídos por meio de lei, devendo o legislador respeitar a anterioridade, a irretroatividade, a capacidade contributiva, dentre outros princípios. Tudo isso gera para o contribuinte a segurança jurídica. O respeito à Constituição Federal é o que assegura a segurança jurídica. O respeito ao texto constitucional e a certeza de que toda e qualquer norma produzida de forma contrária à Constituição Federal será expulsa do sistema de direito positivo, e que todos os cidadãos estarão amparados pela lei, assegura para o contribuinte o respeito ao princípio da segurança jurídica. "Portanto, a certeza e a igualdade são indispensáveis à obtenção da tão almejada segurança jurídica"16.

A segurança jurídica é um valor que guarda íntima relação com a certeza do direito. (...) Enquanto valor puro, a segurança implica outros valores no ordenamento e requer limites objetivos que a tornem efetiva. Dentre esses limites, temos no direito tributário a estrita legalidade, a anterioridade e a irretroatividade.17

No campo do direito tributário, a segurança jurídica estará assegurada toda vez que os agentes credenciados pelo sistema produzirem normas instituidoras de tributos de acordo com a Constituição Federal. O legislador deve produzir a norma geral e abstrata instituidora do tributo, descrevendo a hipótese de incidência tributária de forma exaustiva e conforme os parâmetros constitucionais.

Assim, o princípio da segurança jurídica estará assegurado quando a norma for produzida com respeito à Constituição Federal, estando de acordo com os princípios constitucionais tributários, devendo a norma se expulsa do sistema se estiver em desacordo com o fundamento de validade de todo o sistema de direito positivo. Ou seja, a previsibilidade é característica do princípio da segurança jurídica. Caso alguém realize acontecimento previsto na hipótese normativa, saberá que se instaurará a relação jurídica. Não há que se falar em instituição de tributo sem que haja previsão legal.

Assim, a devida interpretação das denominadas normas gerais de direito tributário é algo que gera ao contribuinte a garantia da tributação nos exatos moldes traçados pela Constituição Federal, ficando assegurada, portanto, a segurança jurídica.

Partir de uma análise através de uma interpretação literal do artigo 146 da Constituição Federal é violar as bases do sistema de direito positivo pátrio. Isso porque se poderia chegar a uma conclusão que toda matéria tributária seria introduzida mediante lei complementar.

Normas gerais de direito tributário são aquelas que dispõem sobre conflitos de competência e que regulam limitações constitucionais ao poder de tributar.

Pode a lei complementar exigida no artigo 146 da Constituição Federal veicular normas a que se refere as alíneas do inciso III do mesmo artigo. Mas poderá fazê-lo com a finalidade de dirimir conflitos de competência ou regular limitações constitucionais ao poder de tributar. Nada mais. Demais normas veiculadas pelo Código Tributário Nacional são leis federais, tendo como âmbito de validade apenas a União. Não pode a União, com o argumento de estar veiculando normas gerais de direito tributário introduzir no ordenamento jurídico normas que usurpem as competências dos Estados e dos Municípios. O poder constituinte originário não outorgou ao legislador uma carta em branco, em que possa alterar as faixas de competências já delimitadas na Constituição Federal. Se assim fosse, a Constituição perderia a característica de ser rígida, vez que poderia ser alterada por uma simples lei complementar.

4.A lei complementar 116/03

A Constituição de 1946 estabelecia aos Municípios a instituição do imposto sobre serviços não compreendidos na competência da União ou dos Estados, cabendo à lei complementar definir os serviços de competência municipal. Conforme salienta Sacha Calmon18, a função da lei complementar no ordenamento de 1946 era definir os serviços de competência dos Municípios, e não listá-los. Todavia, foi introduzida no ordenamento de 1946 uma lista de serviços, que explica Navarro Coelho que tinha como objetivo dirimir conflitos de competências entre Municípios (ISS), Estados (ICM) e União (IPI). Sustentava Baleeiro19 a taxatividade da lista, sendo que apenas os serviços lá previstos seriam tributáveis.

Antes da introdução da Lei Complementar 116/03 era o Decreto-lei nº. 406/68 que trazia lista de serviços a serem tributados via ISS. O referido Decreto sofreu algumas alterações, maioria delas através da Lei Complementar nº. 56/87, que acrescentou alguns serviços à lista.

O poder constituinte, ao delimitar as competências tributárias, estabeleceu aos Municípios a autorização para instituir tributos sobre serviços não compreendidos na competência dos Estados, e definidos em lei complementar. Veja-se que "serviços" para fim de tributação de ISS estão excluídos aqueles prestados em regime celetista , prestados em regime estatutário e os auto-serviços. Explica ainda Carrazza que "só por amor à brevidade dizemos que o tributo alcança serviços. Alcança, na verdade, as pessoas que, mediante contraprestação econômica vem prestá-los"20.

Em 2003 foi introduzido no ordenamento pátrio a Lei Complementar 116. Trata-se da lei complementar que veicula normas relativas à instituição do imposto sobre serviços de qualquer natureza, o ISS. Dentre algumas alterações, foi responsável pela majoração do rol de serviços tributáveis via ISS. Contém na referida lista 40 itens, com vários subitens, fazendo referência a mais de 500 serviços. Assim prescreve a Constituição Federal:

Art. 156. Compete aos Municípios instituir imposto sobre:

(...)

(...)

III- serviços de qualquer natureza, não compreendidos no art. 155, II, definidos em lei complementar.

A referida lei complementar trata de uma típica lei complementar nacional. Apesar de a própria Constituição veicular o termo "serviços de qualquer natureza", não se trata na verdade de todos os serviços, mas aqueles autorizados pelo ordenamento.

Antes da introdução da Lei Complementar 116/03 era o Decreto-lei nº. 406/68 que trazia lista de serviços a serem tributados via ISS. O referido Decreto sofreu algumas alterações, maioria delas através da Lei Complementar nº. 56/87, que acrescentou alguns serviços à lista.

A Lei Complementar 116/03 alterou o rol dos serviços a serem tributados pelos Municípios, classificando os referidos serviços em grupo de atividades. Insta ressaltar que alguns dos serviços listados são inconstitucionais por não se tratar de verdadeiros serviços. Todavia, não é nosso objeto. Analisaremos a constitucionalidade da própria lista de serviços.

Alguns doutrinadores sustentam o caráter taxativo do rol de serviços veiculados pela Lei Complementar 116. Grandes estudiosos se posicionam no sentido da taxatividade da lista de serviços como Rubens Gomes de Sousa, Ruy Barbosa Nogueira, Aliomar Baleeiro, José Afonso da Silva, Ives Granda Martins, entre outros21.

Partindo de uma interpretação literal do inciso III, do artigo 156 da Constituição Federal poderíamos concluir que cabe à lei complementar estabelecer quais são os serviços tributáveis pelo ISS. Contudo, partimos da premissa que norma é juízo de significação, resultado de um processo de interpretação. Assim, devemos buscar o sentido da norma com base em uma interpretação sistemática, observando diversos enunciados do sistema de direito positivo. Com base no entendimento que cabe ao legislador nacional veicular normas gerais em matéria tributária relativas a dirimir conflitos de competência e regular limitações constitucionais ao poder de tributar fica evidente que não pode o legislador nacional veicular uma lista de serviços passível de tributação pelos Municípios via ISS.

Apesar de a Constituição Federal veicular que podem os Municípios instituir impostos sobre serviços, definidos em lei complementar, entendemos que os Municípios podem instituir o ISS independentemente da atuação do legislador nacional.

De forma brilhante explica Aroldo Gomes de Mattos:

Impede ressaltar, por oportuno, que uma dar relevantes funções dessa "lista" consiste em obviar conflitos de competência na hipótese de fornecimento de mercadoria com simultânea prestação de serviços (operação mista)

O equívoco do legislador foi listar os serviços passiveis de tributação pelos Municípios, fazendo com que a o exercício da competência para instituir o ISS ficasse vinculada ao rol introduzido pela Lei Complementar 116/03.

Clélio Chiesa ao realizar estudo acerca da Lei Complementar 116/03, parte da premissa que a interpretação das normas gerais de direito tributário deve ser no sentido de preserva a autonomia dos entes político. Em relação aos Municípios destaca: "a autonomia financeira dos Municípios compõe uma das pilastras essenciais do sistema constitucional tributário brasileiro"22. Sustenta que a lista de serviços é meramente exemplificativa. Isso porque brilhantemente sustenta que a lei infraconstitucional não pode limitar a autuação dos Municípios, pois isso violaria a autonomia de tais entes políticos.

Admitir que a lei complementar possa apontar serviços que poderão ser tributados por meio de ISS, é transferir para o Congresso Nacional o poder de definir, por meio de lei infraconstitucional o campo de atuação dos Municípios no tocante a esse imposto, amesquinhando a autonomia das unidades municipais23.

O inciso III do artigo 156 deve ser interpretado de forma sistemática, e não ser de uma forma literal, pois isso feriria a autonomia municipal.

Podem os Municípios instituir o ISS sobre qualquer serviço, com exceção daqueles proibidos no próprio texto constitucional. Todavia, esse não é o entendimento dos nossos Tribunais Superiores. Alguns entendimentos do STF já foram no sentido de se tratar de uma lista taxativa, porém que comportaria o emprego de analogia. Hoje, todavia, apenas sustenta o Supremo que se trata de lista com caráter taxativo. Assim, conforme a orientação do STF e do STJ, se determinado serviço não estiver previsto no rol da Lei Complementar 116, será caso de não-incidência tributária. Para os Tribunais Superiores estão excluídos da competência dos Municípios serviços que não estejam previstos na lista de serviços da Lei Complementar 116/03.

Doutrinadores buscando preservar a autonomia dos entes e o pacto federativo sustentam que a lista de serviços é uma lista meramente exemplificativa. É o entendimento de Sacha Calmon Navarro Coêlho24, que busca evitar a restrição da competência municipal Explica brilhantemente que:

Em suma, com o fito de prevenir conflitos, poderá o Congresso, se quiser:

(a) definir os serviços como obrigação de fazer;

(b) precisar os casos em que, nas operações mistas é possível separar (e só quando possível) mercadorias e serviços, como na hipótese de concessionária de veículos que venda peças (ICMS) e prestar serviços (ISS); e, por decorrência;

(c) não fechar a lista, deixando ao município a possibilidade de legislar para exaurir os seus fatos jurígenos;

(d) enunciar o mais minuciosamente possível os serviços tributáveis, mas a título exemplificativo.25

O legislador nacional tem autorização constitucional para veicular normas gerais de direito tributário no sentido de dirimir conflito de competência e regular limitações constitucionais ao poder de tributar. Não pode alterar o feixe de competência dos Municípios. E introduzir lista de serviços passíveis de tributação pelo ISS é uma maneira de suprir a competência dos Municípios. E a competência dos Municípios não pode ficar condicionada a produção de uma lei complementar que insira no ordenamento um rol de serviços a serem tributados pelo ISS, pois haveria violação da autonomia municipal. "A lista, pela qual se enumeram taxativamente os serviços um a um, pecará por excesso ou por falta, atropelando a Constituição. Assim se manifestaram Geraldo Ataliba, Souto Maior Borges, Sacha Calmon e Roque Carrazza".

Roque Antonio Carrazza sustenta que não se trata de um rol taxativo, pois isso mutilaria a competência dos Municípios. Alega que também não é exemplificativa, vez que existem tópicos na lista que não se referem a serviços de qualquer natureza. Sustenta que se trata de lista sugestiva, podendo ser dispensada pelos Municípios.

5. Conclusão

Vivemos em um Estado Democrático de Direito, tendo como forma de estado a federação. A ordem jurídica de 1988 foi construída no sentido de assegurar a autônima dos entes políticos, sendo o pacto federativo, inclusive, uma cláusula pétrea.

Nenhuma norma infraconstitucional pode ferir a cláusula pétrea do pacto federativo, ainda que de forma indireta. Assim, a interpretação de qualquer norma jurídica deve ser feita de forma sistemática, observando fielmente as normas constitucionais. Com isso, preservando a autonomia dos entes políticos e o pacto federativo, entendemos que o artigo 146 da Constituição Federal prescreve que compete à União veicular normas gerais de direito tributário com a finalidade de dirimir conflitos de competências e regular limitações constitucionais ao poder de tributar.

O artigo 156 da Carta Magna deve ser, portanto, interpretada conforme orientação firmada acerca das normas gerais de direito tributário. Daí porque afirmar que a lista de serviços veiculadas pela Lei Complementar 116 é taxativa no que tange aos serviços que são objeto de conflito de competência, sendo exaustiva em relação a todos os demais serviços lá previstos.

A Constituição de forma exaustiva e bem delimitada estabeleceu a competência dos entes políticos. O poder constituinte outorgou aos Municípios a autorização de instituir imposto sobre serviços de qualquer natureza, não compreendidos aqueles do artigo 155, II. Assim, está delimitada a competência dos Municípios em relação a tributação de serviços. Estão os Municípios autorizados a instituir impostos sobre serviços de qualquer natureza, com exceção dos serviços de transporte interestadual e intermunicipal e o serviço de comunicação. Não pode o poder constituído alterar a Carta Magna por meio de lei infraconstitucional. É da competência municipal a instituição de imposto sobre todo e qualquer serviço, com ressalva daqueles de competência dos Estados. Qualquer produção de norma no sentido de restringir essa competência é inconstitucional. "Impende notar que nem mesmo a lei complementar nacional pode alterar o precitado esquema constitucional".

Cabe ao legislador produzir normas gerais de direito tributário no sentido de dirimir conflitos de competência e regular limitações constitucionais ao poder de tributar. Nada mais. Estabelecer quais serviços são passíveis de tributação de ISS é inconstitucional se a veiculação de uma lista de serviços não for para dirimir o conflito de competência entre entes políticos.

A autorização dos Município recebida pelo poder constituinte para instituir o ISS não pode ser mitigado por nenhuma norma infraconstitucional, sob pena de inconstitucionalidade.

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1 Moussallem, Tárek Moysés. Revogação em Matéria Tributária. 2005, p.157.

2 Moussallem. 2005. p. 160.

3 Ibidem. p. 162.

4 Carvalho, Paulo de Barros. Curso de Direito Tributário. 2007, p. 220.

5 Ataliba, Geraldo. Sistema Constitucional Tributário Brasileiro. SP: Revista dos Tribunais. 1968, p. 94-95.

6 Carvalho. 2007, p. 162.

7 Ataliba. 1968, p. 94.

8 Carvalho. 2007, p. 212.

9 Carrazza, Roque Antonio. Curso de Direito Constitucional Tributário. 2005, p. 868.

10 Carrazza. 2005, p. 870.

11 Carrazza. 2005, p. 871.

12 Carvalho. 2007, p. 213.

13 Carrazza. 2005, p. 410.

14 Gonçalves, José Artur. Imposto sobre a Renda. Pressupostos constitucionais. 2002, p. 86.

15 Carrazza. 2005, p. 406-407.

16 Ibidem. p. 413.

17 Carvalho. 2005, p. 877.

18 Coelho, Sacha Calmon Navarro. Curso de Direito Tributário Brasileiro. RJ: Forense. 2005, p. 619.

19 Baleeiro, Aliomar. Direito Tributário Brasileiro. RJ: Forense. 2006, p. 501.

20 Carrazza. 2006, p. 928-929.

21 Baleeiro. 2006, p. 503.

22 Chiesa, Clélio. O imposto sobre serviços de qualquer natureza e aspectos relevantes da Lei Complementar nº. 116/2003. In: ROCHA, Valdir de Oliveira (coord.). O ISS e a Lei Complementar. SP: Dialética, 2003. p. 53.

23 Ibidem.

24 Coêlho. 2005, p. 621.

25 Coêlho. 2005, p.621.

26 Baleeiro. 2006, p. 502.

27 Carrazza. 2006, p. 931.

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*Advogada


 


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