O princípio da boa-fé no Código Civil em vigor
Daniel Penteado Castro*
Entende-se boa-fé como um conceito ético de conduta, moldado nas idéias de proceder com correção, com dignidade, pautada a atitude nos princípios da honestidade, da boa intenção e no propósito de a ninguém prejudicar1.
Tal princípio encontra-se balizado em diversos dispositivos presentes na legislação estrangeira, dentre eles o artigo 1.134 do Código Civil Francês: “les conventions légalement formées tienent lieu de loi a ceux que lês ont faites”; o artigo 1.375 do Código Civil Italiano: “Il contratto deve essere esseguito secondo buona fede (1.337, 1.358, 1.366, 1.460)” e o artigo 157 do Código Civil Alemão: “Os contratos devem ser interpretados como exige a boa-fé, atendendo-se aos usos e costumes”
Assim, dentro do âmbito da legislação civilista brasileira, uma gama de disposições constantes no antigo Código Civil (Código Civil de 1916) já faziam menção à boa-fé como norma de conduta, ainda que extrinsecamente, sobrevindo em 1990 outros artigos no mesmo sentido, com o advento do Código de Defesa do Consumidor.
Segundo os ensinamentos de Sílvio de Salvo Venosa2, o Código Civil em vigor (Código Civil de 2002) veio trazer expressamente em seu bojo três momentos em que a boa-fé objetiva deve ser observada.
O primeiro momento é o do artigo 113, que tem uma função interpretativa, ao prescrever: “os negócios jurídicos devem ser interpretados conforme a boa-fé e os usos do lugar de sua celebração”. A seguir, é a vez do artigo 187, com sua função de controle dos limites do exercício de um direito, que assim prevê: “também comete ato ilícito o titular de um direito que, ao exercê-lo, excede manifestamente os limites impostos pelo seu fim econômico ou social, pela boa-fé ou pelos bons costumes.” Por fim, o terceiro momento é o mais importante para as obrigações, por apresentar uma função integradora dos negócios jurídicos, nos termos do artigo 422: “os contratantes são obrigados a guardar, assim na conclusão do contrato, como em sua execução, os princípios de probidade e boa-fé.”
Pela inteligência do artigo 113 verifica-se que o princípio da boa-fé está vinculado não só com a interpretação do negócio jurídico, mas também ao interesse social de segurança das relações jurídicas, uma vez que as partes devem agir com lealdade e também em consonância com os usos do local em que o ato negocial foi por elas celebrado.
Já o artigo 187, por sua vez, prevê a hipótese do abuso de direito ou exercício irregular do direito. Significa dizer que o uso de um direito, poder ou coisa, além do permitido ou extrapolando as limitações jurídicas, lesando alguém, traz como efeito o dever de indenizar. Ainda que seja um ato legal ou lícito, pode esconder-se a ilicitude no resultado, por atentado ao princípio da boa-fé e aos bons costumes ou em razão do desvio de finalidade sócio-econômica para o qual o direito foi criado e estabelecido.
Por fim, o disposto no artigo 422 materializa a boa-fé nas relações negociais, exigindo das partes em especial o dever de veracidade, integridade, honradez e lealdade, refletindo, desse modo, não só uma norma de conduta, mas também funcionando como paradigma na estrutura do negócio jurídico. Todavia, vale lembrar uma crítica tecida por diversos doutrinadores ao analisarem esse dispositivo, em particular no que diz respeito às limitações fixadas (período da conclusão do contrato até a sua execução), deixando de valorar a necessidade de aplicações da boa-fé às fases pré-contratual e pós-contratual, com a devida extensão do regramento.
Vale lembrar, outrossim, que a concepção do Código Civil de 2002 veio trazer diversas disposições entendidas como normas abertas, ou seja, normas em que, a despeito da existência de sua previsão expressa, a aplicabilidade estará condicionada a análise conjunta de outros elementos inerentes a cada caso concreto, tais como fato valor e a própria norma.
Desta feita, a observância da boa-fé, seja em sua função interpretativa do negócio jurídico, seja na constatação do abuso de direito ou, ainda, seja em sua avaliação na responsabilidade pré-contratual ou pós-contratual, estará condicionada à atividade do juiz na aplicação do direito ao caso concreto.
Caberá à jurisprudência sedimentar o alcance e limites da norma dita aberta do novo Código Civil, de modo a expor os entendimentos e novas tendências a cada peculiaridade inserta em dado caso concreto.
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1 Silvio Rodrigues, “Direito Civil”, São Paulo, 3º Volume, Ed. Saraiva,, 28ª ed, pág. 60.
2 Artigo publicado no Valor Econômico de 8/3/2002, p. E4.
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* Advogado do escritório Felsberg, Pedretti, Mannrich e Aidar - Advogados e Consultores Legais