A autonomia do Cade em momento de decisão
Lucia Helena Salgado*
Cabe lembrar que a engenharia institucional por trás da Lei 8.884, de 11/6/1994, introduziu princípios pouco depois consolidados com a criação de agências regulatórias, a saber, a autonomia decisória, a transparência e a prestação de contas à sociedade. Tais princípios são reconhecidos mundo afora como garantias de que as decisões tomadas por órgãos colegiados com funções regulatórias sobre mercados sirvam ao interesse público e sejam salvaguardadas de pressões por parte de grupos de interesse. Exemplos dos mecanismos que viabilizam tais garantias são as sessões públicas do Cade, em que as decisões colegiadas são tomadas por maioria, com base em relatórios e votos fundamentados, de relatores escolhidos por sorteio, com direito de manifestação das partes envolvidas ao longo de todo o processo; outro exemplo é o instituto do mandato, no curso do qual os membros do Cade, mesmo contrariando poderosos interesses, não podem ser afastados de suas funções (a menos de circunstâncias excepcionais, previstas em lei). Ressalte-se que o Cade, a despeito de seu diminuto orçamento, prima pela transparência de suas decisões – muitas delas polêmicas, em virtude da própria natureza do órgão, que zela por impedir o abuso do poder econômico –, tendo sido pioneiro, dentre os órgãos administrativos colegiados, ao dispor, nos primórdios da Internet no Brasil, de uma página virtual, onde atualmente é possível acompanhar, em tempo real, as discussões travadas durante as sessões públicas e conhecer em detalhe os fundamentos e o curso de sua atuação.
Uma das grandes inovações institucionais da Lei 8.884/94 foi dotar o Cade de uma procuradoria capaz de orientar juridicamente as decisões do colegiado, defender em juízo essas decisões buscando sua confirmação nas diversas instâncias judiciais e garantindo sua execução. Não incorre em erro quem atribuir à inexistência de uma procuradoria capaz de defender em juízo as decisões do Cade o papel figurativo ocupado pelo órgão em suas primeiras décadas, de 1962 a 1994: das 117 decisões tomadas durante o período, todas, sem exceção, foram derrubadas pelo Judiciário.
A construção de uma cultura da defesa da concorrência é uma tarefa que têm requerido, aqui como em outros países, gerações de cidadãos investidos de funções públicas. Não é do dia para a noite que se substitui uma cultura de atendimento velado de demandas dos grupos de interesse melhor organizados, a custa dos contribuintes – o que o sociólogo Fernando Henrique Cardoso alcunhou em célebre estudo de "anéis burocráticos" – pela aplicação técnica e transparente da lei, respeitadas todas as garantias do Estado de Direito.
Há pouco mais de uma década diferentes composições do Cade vêm se dedicando a firmar jurisprudência administrativa sobre os limites do exercício do poder econômico para a preservação das liberdades do mercado. A consolidação desse trabalho depende largamente da confirmação, pelo Judiciário, de tais salvaguardas. Se em meados da década passada o desafio era definir regras claras e estáveis para a aplicação da lei de defesa da concorrência e garantir seu cumprimento, nos últimos anos o desafio tem sido tornar tal aplicação eficaz, tarefa a que a procuradoria do Cade tem se dedicado tenazmente, obtendo sucessivos êxitos.
Assim, se à luz da lógica da organização de interesses não causa espanto a notícia de que grandes empresas mobilizaram-se para tentar pressionar senadores contra a indicação de Arthur Badin à presidência do Cade, tampouco se pode aceitar que agentes econômicos, com seus interesses, contrariados pela aplicação da lei de defesa da concorrência, logrem capturar as atenções dos membros do Senado que compõe a Comissão de Assuntos Econômicos. Sobre Badin "pesam" as "acusações" de ser muito jovem e ter pouca vivência acadêmica. Seus adversários, conforme noticiado, representantes de grandes empresas contrariadas pela firme atuação do jovem procurador em defesa das decisões do Cade, não poderiam enaltecê-lo mais ao revelar a falta de elementos substanciosos de "acusação". Em busca de elemento que desqualifiquem o nome encaminhado ao Senado, esquecem que a idade mínima para ser indicado para membro do plenário do CADE encontra-se fixada na própria Lei 8.884/94 – e que Badin detém a idade mínima legal. Tampouco as demais "acusações" prosperam, posto que mero exame do currículo de Badin pode fazer ver aos senadores o equilíbrio entre sua prática profissional e sua formação acadêmica, Com a ajuda da grande imprensa, que não deixou passar em branco o melancólico episódio, aguarda-se que a do Senado da República, dando curso à indicação do chefe do Executivo, cumpra o quanto antes seu papel de sabatinar Badin com rigor e transparência com base naquilo que se espera do presidente do CADE, estrita aplicação da Lei de Defesa da Concorrência, sem se deixar influenciar pela agenda dos grupos de interesse submetidos à atuação daquele Conselho. A consolidação e amadurecimento institucional do Cade como de outros órgãos regulatórios, são ainda uma meta a alcançar, para a qual muito há de contribuir o Senado Federal, no estrito cumprimento de suas funções.
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*Professora-adjunta da UERJ, pesquisadora do IPEA, ex-conselheira do Cade (1996-2000)
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