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Alterações de controle societário e seus possíveis reflexos em contratos com terceiros

A pessoa do contratante pode, em muitas situações, ser elemento essencial para a celebração de determinados contratos, seja em razão de características próprias do contratante, seja pela natureza do negócio jurídico.

23/8/2004


Alterações de controle societário e seus possíveis reflexos em contratos com terceiros


Ana Helena Pacheco Savoia

Daniela Barbosa Schablatura*

1 - A pessoa do contratante pode, em muitas situações, ser elemento essencial para a celebração de determinados contratos, seja em razão de características próprias do contratante, seja pela natureza do negócio jurídico.

2 - Mesmo em contratos entre pessoas jurídicas, a identidade e características próprias dos contratantes têm relevância em muitos negócios. Em algumas situações a importância da empresa contratante ou contratada vai além da sua personalidade jurídica, para atingir os seus sócios controladores e/ou administradores. Freqüentemente, é o bom nome, a capacidade profissional e/ou o patrimônio sólido dos sócios e/ou administradores de uma empresa que lhe abrem as portas para bons negócios.

3 - Como, todavia, o controle de uma empresa é ordinariamente sujeito a mutações, é de se perquirir sobre o impacto que eventual mudança dessa natureza pode vir a ter sobre relações jurídicas da empresa com terceiros. Essa questão já foi enfrentada pela jurisprudência, em matéria de fiança e locação, por exemplo:

“Se a pessoa jurídica afiançada assume novo quadro societário, a fiança prestada resta descaracterizada, pois inexistente seu principal elemento, qual seja, a fidúcia, posto ser contrato intuitu personae.”1

“Irrelevante, por sua vez, o fato da cessão de quotas não alterar a personalidade da pessoa jurídica locatária, que continua a mesma. (...)

O controle é realmente importante. Verifica-se mesmo para as sociedades anônimas (...).

Que não dizer, então, das sociedades por quotas?

(...) Não podem ficar os locadores na expectativa, a cada cessão de quotas, do procedimento dos novos sócios da sociedade locatária. Se os locadores manifestaram, desde o início da locação, sua preocupação com o controle e administração da sociedade, a ponto de inserir cláusula contratual nesse sentido, não é justo que vejam, agora, a declaração de nulidade desta regra estabelecida.”2

“(...) As características da sociedade locatária como exploradora de pequeno negócio, não lhe retiram o caráter de sociedade de pessoas. O locador certamente levou em consideração o quadro social que a compunha para dar o imóvel em locação (idoneidade, capacidade econômica, comercial, e outros dos sócios).

(...) Como bem esclareceu o Juiz NARCISO ORLANDI, em declaração de voto vencedor, cláusula dessa natureza não significa ingerência do locador na constituição da pessoa jurídica locatária nem impedimento para sua alteração; ao locador interessa a manutenção do contrato enquanto presentes os sócios que lhe inspiraram a confiança para entregar o prédio alugado em condições de ser bem utilizado, mediante o pontual pagamento dos aluguéis ajustados e receber o imóvel finda a locação, em bom estado de conservação.”3

4 - A questão pode ganhar relevância em contratos envolvendo renegociação de dívidas, em que a situação da pessoa jurídica devedora corra o risco de agravar-se com eventual mudança do seu controle e/ou administração. Essa preocupação do credor com a estabilidade do devedor é legítima. Contudo, determinadas cláusulas, como a de rescisão ou vencimento antecipado do contrato por motivo de alteração de controle da empresa devedora, têm sido questionadas em juízo:

“(...) Reconhecida a nulidade da estipulação que considera vencida a dívida, em caso de transferência do controle do capital social ou de substituição dos dirigentes da devedora ou de modificação de seu contrato social, sem concordância do banco, por ser abusiva, eis que implica ingerência na empresa - Recurso do réu improvido.”4

5 - Resta saber, todavia, se em determinados casos, não obstante a autonomia da personalidade jurídica em relação à pessoa do sócio, as partes poderiam, por motivos justificados, transformar o controle societário de uma empresa em elemento essencial do negócio jurídico. Em outras palavras, indaga-se sobre a possibilidade de as partes transformarem um contrato, que normalmente seria impessoal, em contrato acidentalmente pessoal, em que as pessoas dos controladores e/ou administradores das partes fossem essenciais à celebração do contrato.

6 - A questão não é nova nem estranha à doutrina. Com efeito, admite-se que as partes transformem em essenciais elementos ordinariamente acidentais nos contratos em geral. Um bom exemplo é citado por ORLANDO GOMES: “Só aceito o fornecimento de mercadorias, enquanto determinada pessoa dirigir a empresa fornecedora”.5

7 - Imagine-se, em outro exemplo, a situação de uma empresa inadimplente, interessada em renegociar a sua dívida. Comumente o credor, nesses casos, preocupa-se em estabelecer determinados requisitos e condições, a serem preenchidos pelo devedor, de modo a compensar ou limitar o risco de crédito. Nesse contexto, a idoneidade dos controladores e dirigentes da empresa devedora, a sua capacidade profissional, financeira e/ou patrimonial, são fatores que podem pesar na decisão do credor de concordar com uma novação e/ou renegociação de dívida. Com efeito, a alteração dos controladores da empresa devedora pode afetar significativamente as bases iniciais do contrato ou da novação e, conseqüentemente, a qualidade do crédito.

8 - No exemplo acima, põe-se, de um lado, o princípio da autonomia da vontade, com base no qual é possível sustentar a liberdade de contratar cláusula de rescisão e/ou de vencimento antecipado de contrato, na hipótese de alteração do controle societário de uma ou mesmo de ambas as partes. De outro lado, pende o direito da devedora, ou, mais propriamente, de seus sócios, de se associarem livremente com outras pessoas, ou mesmo de se desfazerem totalmente de suas participações societárias, ou de nomear novos dirigentes, dentro do princípio constitucional da livre empresa. No fundo, esses dois direitos são um só, pautados no princípio maior da liberdade, garantido pelo artigo 5º, caput, da Constituição Federal.

9 - No âmbito dos contratos particulares, a autonomia da vontade tem especial significado e importância, pois confere às partes contratantes liberdade para “suscitar os efeitos que pretendem, sem que a lei imponha seus preceitos indeclinavelmente”6, prevalecendo a vontade dos contratantes. As partes são livres para “determinar o conteúdo de contrato, nos limites legais imperativos”.

10 - O artigo 104 do CC estabelece os elementos essenciais do negócio jurídico: agente capaz, objeto lícito e forma prescrita ou não defesa em lei. Contudo, cada contrato pode adotar outros elementos que, não obstante ordinariamente acidentais, podem ser considerados determinantes para a contratação. O que não pode haver é arbitrariedade, ou imposição de condições desarrazoadas, incompatíveis com princípios maiores como o da função social do contrato e da boa-fé (artigos 421 e 422 do CC). Do contrário, haverá risco de a cláusula ser interpretada como abusiva e/ou potestativa, como já ocorreu no acórdão citado no item 4.

11 - Contudo, desde que livremente pactuada e amparada em motivos justificáveis, não há porque negar validade a cláusulas que contenham algum tipo de restrição a mudanças de controle de sociedades, seja para coibi-las durante certo prazo, ou mesmo condicioná-las ao prévio conhecimento do credor.

12 - Como forma de evitar ou diminuir o risco de futuro questionamento sobre a legalidade desse tipo de cláusula, é facultado às partes deixar expresso que a identidade do outro contratante, nela compreendida a sua estrutura, controle e administração existentes no momento da celebração, é condição essencial e determinante do contrato. Também poderão as partes relacionar, expressamente, os motivos que as levaram a contratar a cláusula, deixando claro que as restrições previstas e desejadas têm relação direta com fatores como a idoneidade e capacidade patrimonial, econômica ou mesmo profissional das partes e de seus controladores e/ou administradores, ou o risco de agravamento da situação de uma das partes, riscos de mercado etc.

13 - A julgar pelos precedentes citados nos itens 3 e 4 acima, pode-se concluir que não existe uma resposta absoluta para o tema em debate, tudo dependendo das circunstâncias do caso concreto, em especial da razoabilidade das restrições contratadas no contexto do negócio e da forma como as partes tenham expressado a sua vontade.
__________

1 (TAMG – 7ª Câmara Cível, Ac. 0361317-8, Rel. Juiz Vieira de Brito, j. 27.6.2002, in JUIS 32)
2 (2º TAC/SP - 8ª Câmara, Apelação nº 219.278-00/3, rel. Cunha Cintra, j. 7.6.1988, deram provimento, v.u.)

3 (2º TAC/SP - 2ª Câmara, Apelação nº 511.924-00/8, rel. Norival Oliva, j. 16.2.1998, deram provimento, v.u.)

4 (1º TAC/SP - 3ª Câmara, Apelação nº 775.084-1, rel. Itamar Gaino, j. 1.6.1999, deram parcial provimento ao recurso da autora e negaram provimento ao recurso do réu, v.u.)

5 (Contratos, 18ª ed., Rio de Janeiro, Forense, 1998, p. 82).

6 (ORLANDO GOMES, ob. cit, p. 23)
___________

*
Advogadas do escritório Pinheiro Neto Advogados

* Este artigo foi redigido meramente para fins de informação e debate, não devendo ser considerado uma opinião legal para qualquer operação ou negócio específico.

© 2004. Direitos Autorais reservados a PINHEIRO NETO ADVOGADOS











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