Um ciclo de debates imensamente oportuno
Francisco Cesar Pinheiro Rodrigues*
Ao lado da demora, a falta de eficácia prática, concreta, de se cumprir o que foi decidido. Tudo isso conseqüência da inadequação legislativa no lidar com uma avassaladora nova realidade: a imensa quantidade de processos, em todas as instâncias. O país afoga-se no mar de demandas, obrigando o legislador e os operadores do direito a inventar sucessivas fórmulas para solução do problema. Fórmulas essas que, por sua vez, são contestadas em infindáveis disputas interpretativas, provocadas por filosofias ou interesses conflitantes. O legislador ora é acusado de omisso, ora de precipitado. E as sutilezas jurídicas parecem não ter fim. Quando têm, são sempre recorríveis.
Essa demora no encerramento dos processos judiciais, no entanto, não pode ser eliminada apenas concebendo-se restrições estritamente processuais, desligadas da motivação econômica subjacente a toda petição apresentada em juízo. Para que a justiça possa funcionar sem a presente lentidão — decorrência de milhões de processos ajuizados — é preciso que se inocule um fator de risco, um "perigo" econômico "ameaçando" o interessado em protelar. E que "perigo" seria esse? Uma nova condenação em honorários — ou seria melhor chamar o ônus de "multa"? — toda vez que o recorrente perder totalmente um recurso, seja ele de apelação, agravo de instrumento, recurso especial, recurso extraordinário e embargos de declaração. Bem como outras formas indiretas de inconformidade, tais como agravos regimentais, mandados de segurança (contra decisão judicial) e reclamações.
Em suma, para se desafogar a justiça brasileira é preciso que os recursos judiciais não possam mais ser utilizados como técnica fácil, totalmente sem risco, de se jogar para um futuro incerto o pagamento de uma dívida ou cumprimento de uma obrigação, como ocorre atualmente. Afinal, os recursos processuais não foram concebidos como uma cômoda moratória imposta ao credor, por parte do devedor, com juros bem inferiores ao do mercado e sem qualquer previsível data de pagamento. Os recursos processuais foram concebidos somente para corrigir injustiças, não como artifício para obtenção de uma vantagem econômica qualquer, quase sempre injusta. Nada impede, no entanto — por sinal, recomenda-se — que uma eventual lei instituindo a "sucumbência recursal" (leia-se: novos honorários para cada recurso improvido totalmente) disponha que o tribunal, de ofício, verificando que o caso recomendava um prudente reexame, em razão de sua complexidade, deixe de impor o ônus de novos honorários, porque interposto de boa-fé. O "policiamento" da intenção do recorrente não seria com o uso da ofensa verbal de "litigante de má-fé". A condenação em honorários, a usual "sucumbência", não é sentida como castigo, ou "pito", sendo mera rotina em toda demanda cível.
Uma lei que institua a "sucumbência recursal" deve, necessariamente, estabelecer uma "vacatio legis" ampla, digamos 60 dias, com a finalidade de permitir que, nesse prazo, quem recorreu com finalidade apenas protelatória — ele tem plena consciência disso — possa, pesando custos/benefícios, desistir do seu recurso, poupando-se de nova condenação em honorários no julgamento realizado com a nova sistemática. Com a vigência da lei instituindo a "sucumbência recursal", o recorrente só poderá desistir do recurso com autorização da parte contrária. Presumo que, com tal inovação legislativa, haverá um notável e rápido "enxugamento" de recursos em todo o país. A menos que os proteladores habituais apostem na proverbial "bondade mole" dos magistrados brasileiros, impondo sanções ridículas a quem recorre apenas para ganhar tempo. Se os "honorários sucumbências" forem modestos demais — menos de 5% — a lei se tornará inútil, porque não incutiu suficiente receio financeiro no recorrente que prefere recorrer incessantemente a pagar o que deve. Desaparecerá o virtuoso "perigo" que salvará o Brasil do afogamento no mar de demandas judiciais e impulsionará os negócios, de modo geral. Os países progridem mais rapidamente quando os contratos são cumpridos sem as delongas inerentes à discussão judicial.
Sem o "perigo" financeiro, toda restrição legislativa à protelação será contornável, frustrando a intenção do legislador. Quem estiver firmemente decidido a eternizar um processo cível não se perturbará, por exemplo, com o novel §1º do art. 518 do CPC (clique aqui) que diz que "o juiz não receberá o recurso de apelação quando a sentença estiver em conformidade com súmula do Superior Tribunal de Justiça ou do Supremo Tribunal Federal".
Se o cidadão estiver firmemente interessado em protelar, dirá, numa petição — incentivada pela ausência de risco —, que seu caso "não é exatamente igual" ao direito sumulado. Se o juiz mantiver seu ponto de vista, ao protelador abre-se uma larga e risonha avenida para a demora, apresentando agravo de instrumento que poderá subir até o Supremo Tribunal Federal, embora perdendo sempre, mas provocando demoras, não obstante — fator psicológico — a ausência de efeito suspensivo do recurso. Se o agravo de instrumento e novos recursos relacionados com este não forem suficientes para conturbar o andamento do processo, o interessado em protelar utilizará mandados de segurança, agravos regimentais e reclamações diversas que tornam o processo em um "cipoal minado". E pode até mesmo ocorrer, embora excepcionalmente, que um tribunal conclua que, naquele específico caso, a demanda tinha uma faceta algo diferente, as situações não eram iguais, apenas parecidas. Hipótese a justificar o argumento de que os recursos não devem ser simplesmente proibidos, mas processados, porém com o risco de conseqüências econômicas para o recorrente que o utilizou com segundas intenções. Em suma, o que se pretende salientar aqui é que se não criarmos um "perigo financeiro" pairando sobre a cabeça dos recorrentes, o Brasil não conseguirá se livrar do "tsunami" processual que pode desmoralizar, primeiro, o Judiciário; depois, a classe dos advogados, que passará a ser vista como sofisticada guardiã de caloteiros, públicos ou privados.
Se a demora excessiva dos processos, causada pela pletora de ações judiciais, fosse "curável" por inovações estritamente processuais — desligadas da motivação econômica — a Itália, avançadíssima no estudo do Processo Civil, não estaria também, como o Brasil, afogada em autos e demoras. Tanto assim que, diz a mídia, aquele país vai admitir pedido de indenização contra o Estado, fundamentada na demora excessiva na prestação jurisdicional. Esquecida, porém, que as próprias ações de indenização contra o Estado italiano vão, por sua vez, demorar imensamente, em razão dos inúmeros recursos interpostos pelo Estado. Alguém imagina que o Estado italiano não vai contestar essas ações? O que o legislador moderno precisa ter bem presente no espírito é que as partes, em qualquer demanda, preocupam-se muito mais com a máquina de calcular do que com as teorias processuais.
Há outros mecanismos incentivadores da eficácia. Por exemplo, no "rude" — mas, convenhamos, eficiente — sistema americano, transitada em julgado a decisão, o juiz convoca o devedor a comparecer e dizer se possui bens e onde estão, para que sejam alienados e transformados em dinheiro, com pagamento do credor. Se ele paga, ou combina com o credor uma solução que satisfaça a ambos, o processo pode ser encerrado. Se, porém, o devedor se nega a dizer onde estão seus bens — ou mente, negando sua existência, mas depois descobre-se que mentiu —, ele é preso por ofensa à justiça, "contempt of court". Preso, não por dever, mas por mentir ao juiz.
Quem se atreve a transformar em lei essa elementar obrigação, no Brasil? Não seria ilegal a inovação — sob o argumento de que ninguém pode ser obrigado a se auto-incriminar em juízo — porque, no caso, o julgamento da pretensão, já ocorreu. O processo, propriamente, já terminou. Trata-se apenas da execução de uma decisão da qual não cabe mais recurso. Se, no Brasil, já é crime o contribuinte omitir bens na declaração anual do Imposto de Renda, com muito mais razão poderia ser considerado crime ocultar bens após uma longa discussão judicial, em que houve direito de defesa. Atribuir ao credor, já encerrada a ação — como ocorre agora — a tarefa miraculosa de localizar os bens do devedor é atribuir-lhe missão impossível, beirando o ridículo. O credor teria que percorrer os registros de imóveis e instituições financeiras de todos os países, em busca de informações sobre o patrimônio do devedor. Pretensão vã, face ao sigilo bancário. O devedor pode ter imensos recursos investidos em ações ao portador, em várias partes do mundo. Como o credor poderá localizar essa riqueza, essencialmente móvel, sem auxílio do juiz?
Na verdade, a culpa da "impunidade cível" está é no atual sistema. Não há, propriamente, "culpados" individuais, pessoas físicas. O advogado do devedor apenas atende à vontade do cliente. Se não o fizer, agindo como um "santinho processual", simplesmente perde os melhores clientes. "Fracassa" como profissional. A sociedade, teoricamente tão valorizadora da "ética", não perdoa "fracassados", "losers", isto é, advogados pobres, embora honestos e competentes, com modestos escritórios, carros velhos e ternos comprados em liquidação. Tais "inocentes" serão encarados, socialmente, como "perdedores" porque rejeitam clientes de grande porte ( e dívidas idem) que queriam apenas protelar seus pagamentos, com ônus mínimo. A ética profissional, quando "exagerada", acaba se transformando em tiro no pé. O advogado pode ganhar o céu, mas antes amargará um longo purgatório aqui na Terra, "vítima" de um código de ética que, se cumprido com máximo rigor, funcionará contra o próprio virtuoso.
A culpa do excesso de recursos represados reside na insuficiência de um sistema processual que, não obstante teoricamente "elegante", sofisticado, já não serve para a sociedade brasileira atual que, crescendo muito — felizmente —, gerou direitos que não existiam poucas décadas atrás. Mas como os direitos são muitos e os deveres foram esquecidos, aquele que sabe não estar com a razão tira proveito do imenso congestionamento da justiça brasileira. E quanto maior o congestionamento, maior o estímulo para engrossá-lo com novos recursos, ou medidas equivalentes, porque assim não sofrerá tão cedo um desembolso, sempre desagradável.
Finalizando, uma outra sugestão de modificação legislativa que pode ser de grande alcance — agora incluindo a área penal — está em derrubar um tabu jurídico que não tem mais razão de ser, em razão da pletora de recursos congestionando nossos tribunais. Refiro-me à proibição da "reformatio in pejus". Essa proibição é um grande estimulador de recursos cíveis e criminais. Significa — explicando aos leigos — que quem recorre de uma decisão judicial, penal ou civil, tem o “direito” de não ver, com o recurso, piorada sua situação. Na pior das hipóteses, as coisas continuam como estavam. Nada a perder, portanto, com um recurso sem sentido. Se não há nada a perder com um recurso, por que não apresentá-lo? O lucro estaria na simples demora, patrimonial (no cível) ou visando a prescrição ( no crime) Milhares pensando assim, entende-se a sobrecarga dos tribunais.
A proibição da "reformatio in pejus" não tem, logicamente, muito sentido, a não ser em países em que quase não existam demandas. Seria um requinte bondoso para dar serviço a tribunais à cata de algum trabalho. E por que não tem sentido? Porque se alguém acha que seu direito ficou injustiçado com determinada parte da decisão, deve ter, claro, o direito de pedir um novo julgamento dessa parte (por exemplo o valor de uma condenação). Apenas isso: um novo julgamento da parte recorrida, mas um julgamento livre, sem proibição de "piorar" o que, eventualmente foi concedido por engano na decisão anterior. Esse novo julgamento, convenhamos, não deveria ser balizado com a proibição de piorar a situação do recorrente. Deveria ser livre. Se no novo julgamento verificar-se que o recorrente tem até menos direito que o concedido na decisão recorrida, por que não aproveitar a oportunidade para corrigir o engano, melhor aplicando a lei?
Comparemos situações: um político, derrotado nas urnas, recorre de decisão da Justiça Eleitoral pedindo recontagem de votos. Diz que, oficialmente, só recebeu 50.000 votos, mas "tem a certeza" de que obteve número bem maior de votos. Se, porém, na recontagem, mais minuciosa, se verificar que recebeu apenas 48.000 votos, pergunta-se, a verdade não pode prevalecer porque haveria uma "reformatio in pejus"? Isso é irracional e estimulador de uso indevido do serviço da justiça. Outra comparação, apenas para fins de convencimento: na justiça esportiva, um lutador de boxe, alegando que o árbitro favoreceu o adversário, em luta pelo título, recorre de uma decisão que reconheceu que ele perdeu uma luta por pontos, no 10º assalto. Provido o recurso, com determinação de nova luta, se nesta ele for nocauteado logo no 1º assalto, esse resultado — muito mais prejudicial à sua reputação de pugilista — não deveria valer porque teria havido, no caso, uma "reformatio in pejus" indireta? O elementar bom senso deveria dizer que cada luta é uma luta. Quem recorre de uma decisão judicial deve saber que para tudo há um risco. É essa "sensação salutar" que falta no sistema recursal brasileiro. Após a decisão de primeiro grau, "liberou geral". E quem sofre é quem tinha razão.
Na área penal, a proibição da reforma para pior é um incentivo aos recursos, sobrecarregando os tribunais. E não se alegue que não há como piorar a situação do réu quando o promotor não apelou. Por que, pergunta-se, deveria o promotor apelar, se conformou-se com a condenação do réu? Deveria, então — aumentando a carga dos tribunais —, apelar sempre, em todas as condenações, só por presumir que o réu vai recorrer? Não tem sentido, hoje, estimular essa sobrecarga de recursos gratuitos, pró-forma, na área penal.
Uma outra sugestão para desafogar a justiça, na área cível, estaria em obrigar o autor, nas indenizações de dano moral, especificar, na inicial, o valor de seu pedido. Isso o estimularia a não vislumbrar grandes fortunas fáceis, via ações judiciais. A mera possibilidade de sucumbência parcial em seu pedido — receberia apenas cem, quando pediu milhões — o estimularia a não exagerar no valor financeiro da sua dor. Ele mesmo deveria, na inicial, mencionar o valor que pretende a título de dano moral. Uma baliza à vontade de enriquecer, inerente a todo ser humano. Conforme o valor mencionado na inicial talvez o réu prefira nem mesmo contestar. Do modo como está nossa legislação — permitindo a jurisprudência que o juiz imponha qualquer valor que lhe passe pela cabeça — o réu será sempre obrigado a contestar, porque a condenação, na sentença, pode vir em valor surpreendente, altíssimo, gerando apelações e outros recursos posteriores.
En passant, já que falamos em dano moral, seria o caso de a lei estabelecer que, também no caso de justiça gratuita, houvesse sucumbência nos recursos, embora apenas neles, não na decisão de primeiro grau. Que o Estado não cobre as custas do legalmente pobre, em todas as instâncias, é razoável, mas isentá-lo da condenação em honorários, em todas as instâncias, é estimulá-lo a "esticar" os processos quando sabe não ter razão. Nesses casos, a lei atual, dando ao assistido "carta branca" para recorrer indefinidamente — sem qualquer ônus financeiro —, está "fazendo cortesia com o chapéu alheio" (a parte credora, ou que tem razão) que vê-se obrigada a custear advogado para contrariar e acompanhar sucessivos recursos para ganhar tempo.
Fiquemos por aqui. Relembremos apenas que se a justiça brasileira quiser realmente se desvencilhar do excesso de "gordura recursal", que provoca desmoralizantes demoras, convém reexaminar velhos tabus e também inovar. Sempre lembrada do velho conselho de Voltaire, de que "a vantagem deve ser igual ao perigo". Máxima filosófica que precisaria ser aplicada a inúmeros conflitos de interesse, não só nas questões judiciais.
Foi visando uma maior penetração no exame das causas da demora judicial, com vista a soluções realmente eficazes, que o Conselho da Justiça Federal realizou o "Ciclo de Debates sobre a Efetividade da Reforma Infraconstitucional da Legislação Processual Civil".
Aplausos, portanto, ao Presidente do Superior Tribunal de Justiça, Min. Humberto Gomes de Barros, ao Min. Gilson Dipp, Coordenador do Centro de Estudos Judiciários, e a quem mais tenha dado sua contribuição a tão oportuno — e corajoso... — evento.
De modo especial, cumprimento aqui o Min. José Delgado que, como palestrante de grande eloqüência, fez longa, erudita, corajosa e cautelosa exposição sobre um tema tão novo e obviamente polêmico — a "sucumbência recursal" —, discutível proposta do subscritor deste artigo. Instituto(?) que deve despertar imensas iras daqueles que preferem esgotar todas as instâncias e sub-instâncias antes de pagar ou entregar algo que a justiça disse — várias vezes — não lhes pertencer.
_________________
*Desembargador aposentado do TJ/SP e Associado Efetivo do IASP - Instituto dos Advogados de São Paulo
_________