Patriotismo Desportivo
Adauto Suannes*
Eduardo Galeano, que, além de nos ter mostrado Las Venas Abiertas de América Latina, livro que líamos às escondidas na distante mocidade, além de torcer pela vitória de la sufrida clase obrera, como era próprio da chamada Teologia da Libertação, demonstrou entender como poucos de outro assunto bastante popular ao publicar o El Fútbol a Sol y Sombra. Verdade que tinha apenas 10 anos de idade quando a seleção de seu país nos impôs aquele cala-boca inesquecível em pleno estádio do Maracanã, mas ele certamente já pertencia à hincha uruguaya. Poucos aficionados - passe a palavra importada - foram tão fundo ao mostrar as motivações psicossociais que estão por trás da paixão futebolística do que o nosso vizinho Galeano.
Quando, há muitos anos, dois grupos de torcedores se engalfinharam numa luta campal - perdoado o necessário trocadilho - e disso resultou a morte de um deles, o governo do Estado de São Paulo promoveu uma série de palestras e seminários, onde discutimos A Violência no Esporte, nome depois dado a um livro multi-autoral publicado após o encerramento do certame.
Lembrei, naquela oportunidade, que, se nos dispusermos a estudar a origem e a motivação dos esportes, veremos que todos eles estão, invariavelmente, ligados a fatos naturais da vida do homem, sendo, quase sempre, resultado de uma sublimação - ou seja, a substituição de algo reprovável ou menos aceitável por algo mais aceitável socialmente - daquela natural tendência para a prática de atos agressivos. Seria cômodo ilustrar isso com o óbvio esporte do boxe, onde, sem subterfúgio algum, temos a briga entre dois homens. A correspondência entre a agressividade natural e a agressividade sublimada é evidente, até porque as normas de civilidade exigem que os punhos sejam cobertos por uma luva acolchoada, que se poderia indagar se são assim para proteger o rosto de quem apanha ou o punho de quem bate. Ressalvo agora que naquela ocasião não se falava nessa brutalidade do full combat, algo digno de uma arena romana.
O mesmo se poderia dizer da esgrima, uma sublimação dos sangrentos e mortais duelos. O arremesso de dardo – por que dardo se aquilo é uma lança? -, considerado um dos jogos olímpicos, tanto quanto a disputa de arco e flecha ou mesmo de tiro-ao-alvo não estão aí para nos indicar que o espírito do caçador, que se eternizou nas pinturas rupestres, continua dentro de cada um de nós?
E por falar em jogos olímpicos, qual a origem da mais clássica das provas olímpicas, a corrida da maratona? Segundo reza a lenda, após uma árdua batalha na região de Marathon, quando os persas acabaram desistindo de invadir a Grécia, no ano 490 a.C., o soldado Filípedes foi encarregado de avisar os seus compatriotas da vitória dos atenienses. Para isso, correu cerca de 36 quilômetros, para levar a boa-nova a seu povo. Depois de fazer o feliz anúncio, morreu de exaustão. Aquela prova seria uma homenagem àquele herói grego e, portanto, recordação de uma batalha sangrenta.
Mais difícil será aceitar que o civilizadíssimo jogo de tênis, que há poucas décadas exigia que os disputantes, homens ou mulheres, se vestissem como vestais, roupa impecavelmente branca - até que uma brasileira, Maria Esther Bueno, como boa representante de nossa irreverência, quebrasse a tradição - seja sublimação de um duelo a espada: por força das normas de civilidade, a ponta dessa arma mortal voltou-se em direção ao próprio punho e ali se fixou, para afastar o perigo de ferir o adversário. Ficou um espaço vazio, ovalar, que foi coberto com um cordoamento, transformando-se em raquete. Não será, obviamente, por acaso que os jogadores usam a expressão matar o ponto, quando dão um golpe vencedor. Mata-se o ponto em lugar de matar o adversário.
Inúmeros esportes coletivos, tanto quanto o mencionado tênis, são disputados em torno de uma bola. E que é a bola senão a simbolização da cabeça do adversário? Terminado o torneio, o vencedor recebe uma taça. Por quê? Que é a taça senão o utensílio com o qual os vencedores beberão, simbolicamente, o sangue do adversário derrotado, para incorporar em si a bravura daquele?
E por que os jogadores haveriam de usar uniformes, não poucas vezes de cores berrantes? Quando uma tribo pretendia partir para a guerra, a primeira preocupação era pintar o corpo com cores muito vivas, o que, evidentemente, também estava sendo providenciado pela tribo adversária. Para que isso? Para que, durante a refrega, o guerreiro não perdesse tempo tentando descobrir se a cabeça em que pretende desferir o golpe de borduna pertence a alguém de sua tribo ou da tribo adversária. Pela diferença de cor da tintura essa dúvida não teria mais razão de ser, ganhando-se precioso tempo. No futebol, por exemplo, onde o contato físico entre adversários é freqüentíssimo, aquele cuidado dispensa explicação.
Admira, pois, concluía eu então, que os meios de comunicação reajam com tanta indignação diante da chamada violência nos estádios de futebol. Um pouco mais de atenção àquilo que ali é representado mostraria que não estamos diante de algo tão extraordinário assim. É entender o que ali se passa, para prevenir a ocorrência dos excessos, dizia eu em conclusão.
Posteriormente aquelas reflexões foram por mim incluídas num livro que aguarda segunda edição: Ninguém Sofre Porque Quer.
Passadas não muitas décadas, um fato novo deve ser acrescentado àquilo tudo, decorrência da notória diminuição dos espaços mundiais, por força da chamada globalização tecnológica. Talvez aí esteja a resposta à nossa indagação inicial.
Se o esporte está, em sua origem, relacionado à vida tribal, seria inconcebível que um membro de uma tribo se passasse com armas e bagagem para a tribo concorrente. Da mesma forma era impensável que o tradicional uniforme de uma tribo fosse alterado de acordo com algo que não dissesse com propósitos estratégicos. Para isso havia o chamado segundo jogo de camisas dos times de futebol. Se houvesse risco de confundirem-se as camisas de um time com a do seu adversário, o time da casa, por um gentlemen’s agreement, entrava em campo com a camisa reserva. Mas as cores básicas, tradicionais, sagradas haveriam de ser mantidas. Fosse Palestra Itália ou fosse Palmeiras o nome do clube, isso tinha menos importância do que o sagrado verde do uniforme. Mudem-se as cores do pavilhão nacional, mas a cor da camisa do meu clube é, no dizer do celebrado ministro de Estado, simplesmente imexível. Propor a substituição da cor alvi-negra por um impensável roxo seria o mesmo que convidar a torcida a por fogo nas instalações do clube.
Mas veio a globalização, com a notória diminuição dos espaços físicos, trazendo, dentre outros resultados, a ubiqüidade. Os fatos que neste momento estão a ocorrer na China ou no Japão são por nós vistos instantaneamente no Brasil. O ouvir um jogo de futebol realizado na Argentina, com silvos, apitos, roncos e sumiço da voz do locutor no momento mais crucial da partida foi substituído por ver o jogo em alta definição pela televisão no instante mesmo em que o jogo ocorre do outro lado do mundo. Estamos aqui mas, de certa forma, também estamos lá.
Acresça-se a isso o chamado profissionalismo, que, originariamente, dizia com a necessidade de os profissionais de qualquer área especializarem-se cada vez mais para desempenhar com eficiência cada vez maior o mister que escolheram como meio de vida. Galeano ironiza esse tópico, atribuindo-lhe, talvez sem razão, grande parcela de culpa no enfeamento das partidas de futebol. Prefiro ver como resultado mais relevante dele o fato de os jogadores passarem a pôr seus interesses econômicos pessoais acima de suas preferências clubísticas. Se a tribo inimiga de ontem me oferece remuneração que a tribo que eu sirvo hoje não pode ou não me quer pagar, não haverá o menor escrúpulo em fazer aquilo que no passado era alvo de censura e xingamento: eu mudo de camisa. Ser vira-casaca era, no tempo das casacas, um defeito de caráter que justificava ostracismo e banimento. Hoje é apenas e tão somente expressão de pragmatismo profissional.
O amor à tribo estava ligado a tradições imemoriais. Minha tribo havia sido a tribo dos meus antepassados e seria, fatalmente, a tribo dos meus filhos e dos meus netos. Cantávamos os mesmos cânticos e celebrávamos as mesmas festas. Meus antepassados haviam sido enterrados neste mesmo solo, o solum patrium, no qual eu e meus sucessores também haveríamos de ser eternizados. Foi dessa expressão solo de meus pais que surgiu a palavra pátria. Tanto na guerra propriamente dita como em sua encenação futebolística, as tribos internas se reúnem para ofertar os melhores de seus guerreiros para representar a pátria num cotejo inter-nacional. Seleciona-se o que há de melhor no país para levar o nome da pátria além fronteiras. O cantar o hino, o hastear a bandeira, o exibir as cores nacionais são motivações ultra-futebolísticas.
Voltemos à globalização. Um garoto promissor deixa sua cidade natal num Estado nordestino e vem para o Sul do país, para exibir-se, mercenariamente, em uma tribo futebolística que nada tem a ver com seus antepassados. É um membro desenraizado de sua tribo primitiva. Podemos dizer que ele está sentimentalmente expatriado, embora pertença, por vínculo meramente político, à mesma nação a que pertenceram ou pertencem seus pais. Mas é de todo evidente que esse vínculo puramente jurídico não diz com o seu íntimo, pois é meramente formal. Da mesma forma como a migração interna faz desse guerreiro um mercenário, tomada aqui a palavra sem conotação negativa, a vis atractiva exercida pelo Norte do planeta sobre os habitantes do Sul exercerá sobre ele e sobre tantos outros guerreiros futebolísticos, que não mais se sentem ligados sentimentalmente a tribo alguma, uma atração simplesmente irresistível, que, se não decorrer de oferta de melhor remuneração, decorrerá, com ou sem razão, da idéia de que no hemisfério Norte tem-se qualidade de vida superior à que os países do hemisfério Sul costumam oferecer.
Na próxima Copa do Mundo de futebol, por exemplo, estima-se que haverá jogadores nascidos no Brasil que se apresentarão em seleções de pelo menos quatro nacionalidades diferentes. Ter nascido no Brasil, para muitos profissionais, dentro ou fora do setor desportivo, passou a significar muito pouco e, a rigor, não há motivo algum, a não ser uma visão anacrônica dessa realidade globalizada, para censurá-los por isso.
Um último dado para reflexão do leitor: se o profissionalismo tornou superado o velho bordão do “amor ao clube”, pois, como diria o poeta Vinicius, esse amor é eterno apenas enquanto não termina; se não se pode mais falar, como visto, no clube de futebol como a tribo a que o guerreiro haveria de pertencer por toda a vida, pois seu vínculo hoje é eminentemente jurídico, com pré-fixação de valor a ser pago por quem resolva levar esse guerreiro para suas hostes; se até recentemente, como é de fácil percepção, a grande motivação para alguém desejar ser convocado para integrar a seleção do seu país era poder estar numa vitrine, exibindo-se para clubes e empresários estrangeiros, que motivação hão de ter jogadores que já ocupam posição de destaque no cenário futebolístico mundial para expor-se a acidentes atuando pela seleção de um país a que não mais se sentem sentimentalmente ligados? Qual o sentido de correr risco de dano físico que poderá trazer-lhe sério prejuízo econômico, temporária ou definitivamente, ao exibir-se nesse tipo de disputa?
Pense agora nos jogadores e jogadoras de basquete e de vôlei, ou mesmo de futebol feminino, que atuam no Exterior. Quanto essas pessoas perdem quando aceitam jogar na seleção brasileira de sua modalidade esportiva?
_________________
*Autor da coluna Circus