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Breves considerações derredor da anencefalia perante o STF

Tema candente e palpitante, que tem gerado acerbos e acalorados debates na sociedade brasileira nos últimos dias, notadamente nas imprensas escrita e falada, é o que diz respeito à supressão da vida de fetos anencefálicos (sem cérebro).

17/8/2004

Breves considerações derredor da anencefalia perante o STF


Argüição de descumprimento de preceito fundamental 54-8 (ADPF) Distrito Federal

Gustavo Adolfo Hasselmann*

Tema candente e palpitante, que tem gerado acerbos e acalorados debates na sociedade brasileira nos últimos dias, notadamente nas imprensas escrita e falada, é o que diz respeito à supressão da vida de fetos anencefálicos (sem cérebro).

A discussão do tema, conquanto tenha adquirido foros de notoriedade a partir da medida liminar deferida pelo ilustre Ministro Marco Aurélio de Melo na ADPF em epígrafe, já fora submetida ao crivo do STF no emblemático caso do Hábeas Corpus 84025-6/RJ, cuja relatoria coube ao Ministro Joaquim Barbosa.

Embora a questão possa ser enfrentada sob diferentes matizes e vertentes de pensamento, a saber, jurídica, filosófica, científica, social, religiosa etc, daremos, no presente texto, primazia ao aspecto jurídico, sem descurarmos, contudo, quando necessário, de perfunctórias e breves incursões nos demais campos, cediço que o direito não pode ficar alheio à regência multidisciplinar dos fatos sociais, sobretudo em questões de grande relevância e magnitude como a que ora se examina.

Não sem antes aduzirmos que, pelos veículos de publicidade a que temos tido acesso, a esmagadora maioria dos opinantes, inclusive dos que se manifestam no ilustrado e proficiente site Migalhas, inclinam-se pela razoabilidade e acerto da decisão proferida pelo ínclito Ministro Marco Aurélio. Inobstante, respeitadas as opiniões em contrário, não podemos nos eximir de externar nosso posicionamento, sobretudo agora, quando o STF, na assentada do dia 02/08/04, decidiu, ao invés de referendar ou denegar a famigerada liminar, julgar, nos dias próximos vindouros, definitivamente o mérito da questão.

O eminente, culto e vanguardista Ministro Marco Aurélio, instado a se manifestar na ADPF 54-8-DF, promovida pela Confederação Nacional dos Trabalhadores na Saúde (CNTS), patrocinada pelo renomado advogado e constitucionalista Professor Luis Roberto Barroso, acatou pedido liminar, para reconhecer o direito das gestantes, em todo o País, portadoras de fetos anencefálicos (má-formação fetal conhecida como ausência de cérebro, que inviabiliza a vida extra-uterina) de interromperem a gravidez, sobrestando o andamento dos processos e decisões judiciais transitadas em julgado sobre a matéria. Proclamou o douto Ministro, com esse entendimento, a inserção em nosso ordenamento jurídico de uma nova hipótese de aborto, até então não contemplada em nosso Código Penal, art 128 (que admite o aborto apenas nas hipóteses de risco da vida da mãe ou de gravidez decorrente de estupro).

Em que pese a razoabilidade e consistência da tese sufragada na liminar sob comento, tendo em vista que o direito, como ciência humana, comporta abordagens multifacetadas, seja no aspecto dogmático, seja no axiológico, dentre outros, ousamos discordar, com a devida vênia, de tal decisão, que padece de vícios irremissíveis, nos aspectos formal e material, atentando contra princípios sobranceiros que constituem vigas mestras da nossa ordem constitucional e do direito internacional, no que atina à proteção dos direitos humanos.

A ação em tela tem sua matriz jurídico-constitucional, no artigo 102, §1º, da Magna Carta, que assim dispõe:

"A argüição de descumprimento de preceito fundamental, decorrente desta Constituição, será apreciada pelo Supremo Tribunal Federal, na forma da lei."

Vê-se que se trata de norma constitucional de eficácia limitada, vale dizer, para produzir efeitos depende de lei editada pelo legislador ordinário. Não foi por outro motivo, à mingua de legislação infraconstitucional, que o STF teve oportunidade de rejeitar determinada argüição, em 31 de maio de 1996, no Ag. Rg. na Pet. 1140, relator Ministro Sydney Sanches.

Onze anos depois da promulgação da atual Constituição, veio a ser editada a Lei nº. 9.882/99, que disciplina a matéria. Inobstante, mesmo com a colmatação da lacuna constitucional, a ação em tela tem suscitado controvérsias doutrinárias e jurisprudenciais, valendo salientar, como noticia o Juiz Federal Dirley da Cunha Junior, em Estudos de Direito Constitucional, Jus Podivm, pág 50, que, de 41 ADPF propostas até 22/06/03, nenhuma delas desafiou julgamento de mérito. A maioria não foi admitida e as que passaram pelo juízo de admissibilidade estão aguardando julgamento. Das 41 argüições, 22 foram extintas, sem qualquer exame de mérito, por diversos fundamentos, sendo oportuno destacar que tramita na Suprema Corte a ADIN 2231-DF, ainda não apreciada, em que se debate a constitucionalidade da própria Lei nº. 9.882/99, que regulou, como mencionado, o rito da ADPF.

Não se pode olvidar, entretanto, que se trata de um importante instituto processual e constitucional, a despertar a argúcia dos estudiosos, que visa proteger preceitos ou princípios fundamentais da CF, para cujo mister as outras ações constitucionais (ação direta de inconstitucionalidade; ação direta de constitucionalidade; ação direta de inconstitucionalidade por omissão etc) se mostrarem ineficazes ou emprestáveis (regra da subsidiariedade, prevista no art. 4, §1º, da citada Lei). Ela pode ser utilizada para controle de atos ou omissões do Poder Público, contrários a preceitos fundamentais da CF; contra direito municipal que, de igual forma, contrarie preceito fundamental da CF; contra lei inconstitucional anterior à CF; contra atos jurisdicionais etc. Constitui importante inovação no direito brasileiro, que encontra similar no recurso de amparo do direito espanhol e no Verfasssungsbeschwerd do direito alemão.

Contudo, por se tratar de um novel e complexo instituto, que clama por aprofundamento e maturação científica, deve reclamar parcimônia e moderação na sua utilização pelos operadores do direito, sobretudo por parte do STF.

Voltemos, então, à liminar do Min Marco Aurélio.

Em primeiro lugar, dois dos seus aspectos formais/processuais, com a devida vênia, revelam açodamento e espírito antidemocrático, incompatíveis, num Estado que se intitula Democrático de Direito, com as posturas dos principais protetores da Lei Maior, os Ministros do STF, sobretudo em se tratando de matéria recém gestada, que diz com interesses superiores da nação e da humanidade, em especial o direito à vida.

Referimo-nos, em primeiro lugar, à denegação quanto à participação no processo em referência da Conferência Nacional dos Bispos do Brasil - CNBB, na condição de amicus curiae (amigos da corte), que intervêm como meros colaboradores, fornecendo subsídios de natureza vária, de molde a possibilitar a justiça e qualidade técnica das decisões do STF. É induvidosa a importância da participação de tal entidade em assunto de tamanha envergadura, num País que, de origem e prioritariamente, professa a fé cristã, notadamente em se tratando de matéria atinente ao direito à vida, mesmo que em confronto com outros valores, que mereceram prevalência na decisão sob exame, tais como autonomia da vontade, liberdade e dignidade da pessoa humana. Os argumentos esposados na decisão do emérito ministro, de índole processual, malgrado possam ter razoabilidade jurídica, não poderiam ter o condão de arredar de plano a valiosa contribuição que a CNBB poderia dar para o deslinde da questão, mesmo tendo em vista a opinião daqueles, principalmente dos internautas, que invectivam contras as omissões e conservadorismo dessa Entidade.

De outra parte, a lei prevê, na hipótese de apreciação de pedido liminar, a submissão prévia ao plenário da Corte, que decidirá por maioria absoluta, permitindo, a norma legal de regência, contudo, em caso de extrema urgência ou de recesso, que o relator decida monocraticamente, ad referendum do plenário. O ministro Marco Aurélio, alegando precedente do citado hábeas corpus -- em que a via crucis processual impediu, antes de decisão atempada do STF, o parto que não ultrapassara o período de sete minutos --- entendeu que a matéria era urgentíssima e decidiu isoladamente. Com a devida vênia do ilustre Ministro, inobstante a aflição e sofrimento que seguramente acometem uma mãe que sabe de antemão que dará a luz a um natimorto, a questão não é nova do ponto de vista científico e factual, tendo mobilizado, inclusive, a atenção de outros pretórios pátrios, como mencionado anteriormente. Padece, assim, pois, ao nosso sentir, do periculum in mora.

Demais disso, do ponto de vista filosófico, social, espiritual e, sobretudo, jurídico argumentos se aliam para apontar para um só caminho: a decisão deveria, mesmo em sede liminar, ter sido tomada pelo plenário da Corte e não por juiz isoladamente, que, se travestindo na condição de legislador, este sim eleito pelo povo, introduz uma nova hipótese de aborto permitido no direito positivo brasileiro.

No mérito, a decisão do Ministro teve como fundamentos nucleares, acatando arrazoado do autor da ação, os princípio da autonomia da vontade, liberdade e dignidade da pessoa humana, todos eles em detrimento do valor vida, valor-fonte, segundo o Professor Miguel Reale, ou melhor, o valor dos valores.

Nesse particular, vale transcrever o magistério de José Afonso da Silva, em Curso de Direito Constitucional Positivo, 22 edição, pág 196 e 197, em que traz à colação opinião de doutores da máxima suposição:

"Todo ser dotado de vida é indivíduo, isto é: algo que não se pode dividir, sob pena de deixar de ser. O homem é um indivíduo, mas é mais que isso, é uma pessoa. Além dos caracteres de indivíduo biológico tem os de unidade , identidade e continuidade substanciais”. No dizer de Ortega y Garsset, mencionado por Recaséns Siches, ‘lavida consiste em la compresencia, em la coexistencia del yo com mundo, de um mundo conmigo, como elementos inseperables, inescindibles, correlativos"

Omissis

No dizer de Jacques Robert: ‘O respeito à vida humana é a um tempo uma das maiores idéias de nossa civilização e primeiro princípio da moral médica. É nele que repousa a condenação do aborto, do erro ou da imprudência terapêutica, a não aceitação do suicídio. Ninguém terá o direito de dispor da própria vida, a fortiori de outrem e, até o presente, o feto é considerado como um ser humano."

O art. 5º, caput, da CF, consagra textualmente o direito à vida, sendo os demais direitos, civis, políticos, sociais, econômicos, culturais etc dele consectários.

Já o §2º do art. 5º da CF não exclui da categoria de direito fundamental outros decorrentes do regime e de princípios adotados na Magna Carta, bem os constantes de tratados internacionais de que o Brasil seja parte. Neste último aspecto, alguns constitucionalistas chegam a afirmar que os direitos fundamentais provenientes de tratados de que o Brasil seja signatário, ao contrário da teoria geral sobre a hierarquia dos tratados no direito brasileiro, igualados á lei ordinária, gozam de status de norma constitucional.

Desse modo, só para exemplificar e sem mais delongas, a Declaração Universal dos Direitos Humanos, em seu artigo terceiro, contempla o direito à vida; de igual forma o art. 4º da Convenção Americana dos Direitos Humanos.

O art. 1º do CCB pontifica o início da personalidade jurídica com o nascimento com vida, sem deixar de proteger o direito do nascituro, desde a concepção. Já o art. 11 estabelece que os direitos da personalidade, dentre eles o principal, o direito à vida, são intransmissíveis e irrenunciáveis.

Conquanto pairem dúvidas, em tema de direito constitucional, sobre a pertinência ou abrangência da técnica de hermenêutica constitucional intitulada ponderações de interesses, que os alemães denominam guterabwagung e os anglo-saxônicos balancing, o fato é que, em algumas e não poucas hipóteses, o interprete se ver forçado a empreende-la, sobretudo em matéria constitucional, à vista de tensões entre princípios altaneiros, em que se deve fazer prevalecer um em detrimento do outro, sem sacrificar totalmente o preterido, observando-se as peculiaridades do caso concreto, já que os métodos da cronologia (norma posterior derroga a anterior) e o da especialidade (norma especial revoga a geral) são imprestáveis para solução de conflitos constitucionais, conforme ensina Daniel Sarmento, em A Ponderação de Interesses na Constituição Federal, 3 edição, págs. 40 e 102. Esse mesmo Autor reporta-se a tratadistas que condenam metodologicamente a ponderação de interesses, entendendo que haveria usurpação de poderes pelo juiz em face do legislador, consoante escólios de Wlather Murhy, James Flemin, Fredrich Muller e outros (ob cit pág 146). Mas é induvidoso que, em determinadas hipóteses, se dela na se lançar mão, poderá incorrer-se no non liquet (ausência de julgamento) que à coletividade e ao Estado certamente não interessa. Sabemos que pelo princípio da unidade da Constituição não a hierarquia entre normas constitucionais do ponto de vista dogmático, mas pode-se cogitar, com certeza, da prevalência axiológica dos princípios em face das regras, ou desses em face de outros de menor estatura. O próprio constituinte originário contemplou, facilitando a vida dos interpretes, algumas hipóteses de ponderação de interesses: propriedade privada/função social da propriedade; livre iniciativa/função social da empresa; publicidade e livre manifestação do pensamento/proteção da privacidade e da intimidade; prisão provisória/princípio da inocência; vida/pena de morte em caso de guerra declarada etc.

No caso em tela, o desate da questão sem dúvida desaguará na ponderação de interesses. Com efeito, a decisão do Ministro Marco Aurélio, que parece delimitar, de uma certa forma o tema, sem exauri-lo, dado a sua inexigibilidade, esta assentada nos princípios da autonomia da vontade, liberdade e dignidade da pessoa humana, no que toca aos direitos da mãe, e , de outro lado, em contraponto, o direito á vida do feto anencefálico, preterido no caso concreto.

Quanto aos primeiros princípios retro-apontados, dúvidas não podem haver de que não merecem prosperar. É fazer sobrepuja-los em relação ao direito á vida, inalienável e irrenunciável. Não se pode cogitar de liberdade ou autonomia da vontade da mão de referência ao direito à vida do feto, ainda que este esteja condenado a morrer em breve espaço de tempo.

No que atina à dignidade da pessoa humana, esta, como cediço, é corolário do direito á vida. Pode haver vida sem dignidade, mas não pode haver dignidade sem vida. E vida, em hipóteses tais, existe sim, e independente da vida da mãe ou de quem quer que seja.

Em parecer da lavra do Promotor de Justiça Herman Lott, publicado no site Migalhas de 16/07/04, á vista de um caso concreto, assevera o articulista, trazendo á colação comentário da Professora Márcia Pimentel, PHD em ciências, que a vida começa com a concepção, disso não divergindo o Deputado Hélio Bicudo, citado no mesmo trabalho, segundo o qual:

"... pois, a partir do momento em que o óvulo é fecundado pelo espermatozóide, inicia-se uma nova vida, que não é aquela da mãe, e sim a de um novo organismo que dita seu desenvolvimento, sendo dependente do ambiente intra-uterino, da mesma forma que somos dependentes do oxigênio; cada ser humano é um evento genético único..."

O mesmo jurista, no parecer aludido, cita o comovente testemunho de uma mãe que deu a luz a um feto anencefálico, no qual revela os momentos de dor, mas também a profunda alegria e crescimento espiritual de ter podido viver com Pedro no seu ventre e após 04 dias do seu nascimento:

"...Pedro Couto dos Santos Monteiro viveu 4 dias por mim e pelo meu marido, o vi fazer xixi, evacuar, chorar. Dei para o meu filho o melhor que eu tinha para lhe dar, o direito de nascer e de se sentir amado, mesmo que não filho fisicamente perfeito que todo pai e toda mãe esperam ter"

Vale ainda menção ao artigo de autoria de Hector Velarde, Sacerdote católico, publicado no site Migalhas de 26/07/04, onde, manifestando-se contrariamente ao aborto em hipóteses tais, averba:

"Enquanto há vida, ainda que haja dor, deve prevalecer o amor. Isso nos torna humanos. Inúmeras são as famílias que descobrem esse tesouro por conviver com essa dura realidade".

Desse modo, reconhecendo o sofrimento impingido a mãe em tais caso, solidarizamo-nos com ela, mas somos forçados a opinar, com base em argumentos jurídicos, filosóficos, espirituais etc, que, quando em confronto tal aflição com a vida, ainda que breve, de um ser humano, devemos ficar com esta. Esperamos que assim pensem os eméritos Ministros da Suprema Corte.

Mais três decisivos argumentos militam em favor do que vem de ser exposto. O primeiro deles diz com a impossibilidade do Judiciário fazer as vezes de legislador, criando uma hipótese de aborto não prevista na lei. Configura usurpação de poder, invasão de competência do legislativo e atentado flagrante ao sobranceiro princípio da separação de poderes, cláusula pétrea e intangível, conforme a dicção do art. 60, §4º, inciso III, e art. 2º, todos da Lei Maior.

Os onze Ministros do STF, conquanto ilustres, não foram ungidos na pia batismal do voto popular (expressão cunhada pelo eminente jurista e Ministro do STF, Carlos Ayres Brito), seja como constituinte originário, seja como derivado. Assim não podem substituir o legislador.

Não é por outro motivo que a Suprema Corte, em hipóteses de mandado de injunção e ação direta de inconstitucionalidade por omissão, com muito acerto ao nosso sentir, evitando a judicialização da política e reverenciando o princípio da separação dos poderes, apenas recomenda ao legislador que edite a norma, o qual, é de se reconhecer, não vem cumprindo o seu primitivo e indeclinável mister.

Assim, se se pretender incluir essa nova hipótese de aborto ou homicídio uterino, como designou o preclaro jurista Ives Gandra Martins, no Jornal do Brasil de 15/7/04, que o faça através de lei, seguramente de constitucionalidade bastante discutível.

Outro falacioso argumento daqueles que se perfilam em abono à tese do Ministro Marco Aurélio, diz respeito ao fato de que o Estado Brasileiro é laico, a teor do art. 19 , I, da CF. Olvidam, adrede, o espírito de religiosidade que permeia a sociedade brasileira e o mundo, desde os seus primórdios. Ignoram, ainda, os detratores, diversos dispositivos da Carta Magna que protegem a liberdade de crença e a fé, a exemplo dos incisos VI, VII e VIII, do art 5º. E o que é pior, fazem tabula rasa de noção elementar colhida na Ciência Política, segunda a qual nação é uma coisa e estado é outra. Nação é o vínculo espiritual, emocional, valorativo, cultural que une os habitantes de um Estado. Este é a organização política da sociedade, formado pelo povo, território e soberania, destinado a garantir a paz social e coexistência pacífica dos homens. O Estado brasileiro pode até ser laico, mas a sociedade ou a nação não o é. Vivem intensamente a espiritualidade, sob diversas matizes, repudiando, majoritariamente, tentativas como essa, em que, à vista de uma má-formação do envoltório corporal, se intenta malbaratar, ás escâncaras, o espírito, a essência, que nele habita, em contínuo processo de evolução, para o qual até minutos de vida fora do útero podem representar muito ou anos luz em termos de maturidade e crescimento espiritual, inclusive para os pais, colhidos que foram pela providência divina.

Nesse diapasão, não é demais lembrar Robério Nunes dos Anjos, ilustre Procurador da República, em Direito Constitucional, pág 71, Jus Podivm, para quem, na esteira do |moderno Direito Constitucional,"Fator importante a ser considerado quando da hermenêutica constitucional é o preâmbulo da constituição, onde geralmente estão princípios e valores adotados pelo legislador constituinte."

Fazendo coro com o Autor, não podemos olvidar que "Nós representantes do povo brasileiro, reunidos em assembléia Nacional Constituinte para instituir um Estado Democrático (...) promulgamos, sob a proteção de Deus, a seguinte Constituição da República Federativa do Brasil." Aí está a vocação do povo brasileiro para a religiosidade ou espiritualidade estampada na CF de 1988.

Outro argumento refutável, em prol desse tipo de aborto, é o da precisão científica na avaliação dessa patologia e a validade dos laudos médicos. Ignora-se a falibilidade humana, inclusive dos que lidam com a ciência.

Nesse particular, transcrevemos as palavras do filósofo e psicólogo Adenauer Novaes, em Filosofia e Espiritualidade, pág. 10:

"Percebi que ciência é apenas conhecimento provisório a respeito de algo e não é nem chega à verdade. O que se pensa ser a verdade, na realidade, tem se tornado algo improvável, do qual não se tem certeza e restrito a uma questão de probabilidade."

De fato, assiste razão ao ilustre Autor quando constatamos que a humanidade passou da física newtoniana, para a tória da relatividade e desta para a física quântica, cada qual ampliando os horizontes do conhecimento e agregando conquistas, conceito e noções das precedentes. Não negamos que o direito deve acompanhar, como em outros segmentos, os avanços da ciência. Absolutamente não. Apenas achamos que as coisas devem se processar com cautelas, comedimentos e muito estudo, sem temeridades e com respeito absoluto à ética.

Uma decisão dessas, ao nosso modesto sentir, não deve prescindir de uma ampla discussão com a sociedade organizada, inclusive com os cientistas, juristas e filósofos, e a decisão que vier a ser tomada deverá sê-lo pela via legislativa, ordinária, ou, de preferência, pelo poder constituinte reformador, mediante emenda à Constituição. Não por decisão judicial do STF, cujos os membros estariam investidos na condição de semi-deuses, com todo respeito que devotamos a essa colenda Corte de justiça.

Para arrematar, mais do que um argumento, fica uma preocupação, já manifestada por alguns que se debruçaram sobre o tema: precedentes perigosos podem surgir do acatamento dessa ADPF, como a interrupção de gravidez em outro casos de má-formação genética de fetos, eutanásia e interrupção da vida quando nos depararmos com pessoas em estado vegetativo.

Que Deus ilumine e guie os Ministros da Suprema Corte nesse caso de importância nacional, que transcende o simples direito positivo.
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Procurador do Município de Salvador e advogado militante





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