Os limites da ação civil pública e do Ministério Público
Mário Gonçalves Júnior*
Como dissemos em outro estudo (A Tutela dos Interesses Metaindividuais Trabalhistas), foi-se o tempo de resolver conflitos no varejo. A época é de soluções por atacado, proteger os grupos diretamente, e indiretamente, proteger o indivíduo. A população mundial cresceu tanto nas últimas décadas que seria sandice achar que as infinitas lesões de direitos individuais pudessem ser resolvidas pelo Estado, a tempo e a modo.
A tendência de ampliar a substituição processual dos Sindicatos, a partir do final do ano passado, quando o Enunciado 310 do TST foi cancelado, é coerente com a realidade atual e finalmente insere o Direito Processual do Trabalho nessa nova era.
É bem verdade que o Enunciado 310 não foi substituído por outro mas apenas cancelado, e esse “silêncio” (vácuo sumular) não permite concluir que daqui em diante a substituição processual será desmedida e ilimitada. Certamente virão limites, paulatinamente construídos pela jurisprudência, cabendo papel fundamental também às instâncias inferiores nesse debate, posto que é do confronto entre várias decisões antagônicas que a jurisprudência do TST se cristaliza (artigos 896, “a”, e 894, “b”, da CLT).
Já dissemos também (“in” O Cancelamento do Enunciado 310 do TST) que os Sindicatos, enquanto “corpos intermediários” da sociedade, necessitavam da ampliação da substituição processual, que até então era sufocada pelo Enunciado 310.
Mas, como toda liberdade, tem campo de atuação e competência que não podem ser desmesuradas. A sociedade se desenvolve e evolui somente com o equilíbrio e harmonia de seus muitos “centros de poder”, até porque alguém já pontuou, arguciosamente, que o poder não encontra limites em si mesmo, capaz que é de pacificar e resolver, como desestruturar e aniquilar. Daí porque, também, a asfixia de tutela é tão nefasta quanto a overdose de conflituosidade (Substituição Processual: da asfixia à overdose?).
Esse equilíbrio se faz delimitando as competências dos “corpos intermediários” e evitando transformar qualquer instrumento de atuação desses entes em panacéia. O Sindicato tem seu papel, que não se confunde com o do Estado (Ministério do Trabalho, Casas Legislativas etc.), que não se confunde com o do Ministério Público. Uns não podem invadir a seara dos outros, conquanto seja de se esperar que colaborem e que, em determinadas situações, o mesmo foco possa interessar, sob prismas diferentes, a cada uma dessas instituições.
Lembra ANA PAULA REPOLÊS TORRES, mestranda em Direito Constitucional pela Faculdade de Direito da UFMG, que “a consideração dos indivíduos pela sociologia clássica só é realizada na medida em que os mesmos sejam importantes para formar o social, sendo a sociedade considerada, por exemplo, como conglomerado de indivíduos. Para (...) Durkhein, típico representante da teoria organicista, o indivíduo, isto é, a parte, somente é relevante para se garantir a harmonia do todo social. Na medida em que a sociedade passa por uma divisão do trabalho social, o mencionado sociólogo afirma que a solidariedade deixa de ser mecânica, baseada nas semelhanças e em uma homogeneidade ética e cultural, para ser uma solidariedade orgânica, com cada um realizando a função que lhe cabe para o perfeito funcionamento do todo social” (A Questão da Obediência às Normas na Perspectiva da Teoria dos Sistemas de Niklas Luhmann, www.mundojuridico.com.br).
O Ministério Público do Trabalho não é um super ou sobrepoder, tanto assim que a jurisprudência aponta no caminho de estabelecer limites à sua atuação, principalmente no manejo das ações civis públicas. Não é onipotente porque nenhum “corpo intermediário” pode se colocar sobre os demais. Os sindicatos, por exemplo, têm também prerrogativas e responsabilidades gizadas, como as tem também o próprio Estado, desde que se concebeu a idéia de Estado de Direito.
A ação civil pública, de fato, ainda é o melhor instrumento que o sistema dispõe para enfrentamento dos desafios das sociedades de massa.
A questão é que a casuística por vezes sugere que o Ministério Público do Trabalho possa mais do que efetivamente pode. Mas não pode. São necessárias cautela e reflexão, caso a caso, para identificar se há, mesmo, direitos ou interesses coletivos ou se o Ministério Público não está simplesmente reunindo numa mesma ação (civil pública) a somatória de interesses individuais episódicos e assimétricos se comparados ao universo dos trabalhadores onde as supostas lesões jurídicas ocorrem.
Mesmo havendo interesses plurais, uma vez restritos ao grupo de trabalhadores de uma determinada empresa ou estabelecimento, não sendo uniformes e permanentes, a sua defesa judicial cai melhor nas mãos dos sindicatos, que, aliás, têm esse função por determinação constitucional (artigo 8o., III):
“AÇÃO CIVIL PÚBLICA. INTERESSES INDIVIDUAIS HOMOGÊNEOS. MINISTÉRIO PÚBLICO DO TRABALHO. ILEGITIMIDADE. Conquanto irrefutável o cabimento de ação civil pública na Justiça do Trabalho, trata-se de instituto concebido eminentemente para a tutela de interesses coletivos e difusos, quando desrespeitados os direitos sociais constitucionalmente garantidos. Ao órgão do Ministério Público do Trabalho não é dado manejá-la em defesa de interesses individuais homogêneos, cuja metaindividualidade exsurge apenas na forma empregada para a defesa em juízo. Embora de origem comum, trata-se de direitos materialmente divisíveis, razão pela qual a reparação decorrente da lesão sofrida pelo titular do direito subjetivo é sempre apurável individualmente. Exegese que se extrai da análise conjunta dos artigos 129, inciso III, da Constituição da República de 1988 c/c 83 da Lei Complementar n. 75/93.
Embargos de que não se conhece”.
(TST-E-RR, Processo 596.135/99, Acórdão SBDI-1, Rel. Min. Georgenor de Souza Franco Filho, julgado em 30/9/2002, publicado no DJU de 25/10/2002).
“Não tem o Ministério Público, portanto, legitimidade para promover, por via da ação civil pública, a defesa de interesses coletivos, como tais considerados os de que seja titular “grupo, categoria ou classe de pessoas ligadas entre si ou com parte contrária por uma relação jurídica de base” (art. 81, parágrafo único, inc. II, da Lei 8.078/90), e de interesses ou direitos individuais homogêneos (inc. III), situações que comportarão ações individuais ou coletivas, de iniciativa das associações a que se refere o inc. IV do art. 82 do referido diploma legal, cuja sentença, quando favorável, aproveitará a todos os filiados da entidade, nesse sentido havendo ser entendida a expressa erga omnes contida no art. 16 da Lei n. 7.347/85”.(RE 213.613-0, Min. Ilmar Galvão, DJ de 7/4/2000).
“Não há que se confundir pluralidade de pessoas com interesses difusos ou coletivos. Neste há indivisibilidade e naquele a individualidade, pouco importando o seu número, eis que não perdem sua identidades próprias”.(TRT 2a. Região, AD 497/95, Rel. Juiz Argemiro Gomes, in DOE 5/10/98).
E quando o Ministério Público percorre as dependências de uma empresa, para saber, por exemplo, se há quantidade suficiente de chuveiros, ou se alguns empregados trabalham em horas extras proibidas (mesmo que sejam episódicas e não ocorram com todos os trabalhadores), “farejando” ilegalidades aqui e acolá, esparsas e restritas – tal e qual perdigueiro que se embrenha no mato à caça de coelhos e raposas -, depois reunidas numa ação civil pública, faz as vezes de Fiscal do Trabalho, ou seja, se imiscuindo em tarefa que é da alçada do Ministério do Trabalho, de acordo com o artigo 626 da CLT (“Incumbe às autoridades competentes do Ministério do Trabalho, ou àquelas que exerçam funções delegadas, a fiscalização do fiel cumprimento das normas de proteção ao trabalho”).
Não é salutar para o Direito, nem para a sociedade, que uns institutos e órgãos sobrepujem os demais, criando disfunções e tumores que, com o tempo, vão se tornando difíceis de isolar.
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* Advogado do escritório Demarest e Almeida Advogados