Regime Jurídico de concessão e arrendamento nos portos brasileiros
Vanessa Rosa*
Os instrumentos jurídicos pelos quais a exploração de portos e de instalações portuárias pode ser transferida a empresas privadas estão devidamente previstos e regulados em Lei, cabendo-nos, neste artigo, analisar especificamente esses instrumentos e as regras a eles aplicáveis, investigando, assim, as formas pelas quais podem ser realizadas parcerias entre o Poder Público e a iniciativa privada no setor portuário brasileiro.
Para esse propósito, cumpre examinar sobretudo as Leis 8.630/93 e 10.233/01, bem como os Decretos 4.122/02 e 4.391/02, que as regulamentam. A Lei 8.630/93 dispõe sobre o regime jurídico de exploração dos portos organizados e das instalações portuárias, ao passo que a Lei 10.233/01 versa acerca da reestruturação dos transportes aquaviário e terrestre e cria a Agência Nacional de Transportes Aquaviários – ANTAQ, entre outras providências.
I. Concessão de Portos Organizados
De acordo com o supracitado artigo 21, da Constituição Federal, “Compete à União: ..... XII - explorar, diretamente ou mediante autorização, concessão ou permissão: ..... f) os portos marítimos, fluviais ou lacustres”. No caso da transferência, à iniciativa privada, da exploração e administração de porto organizado e da prestação dos respectivos serviços públicos envolvidos, o instrumento jurídico adequado e necessário será a concessão, a ser outorgada mediante prévia licitação e por contrato devidamente formalizado, consoante preconiza a Lei 10.233/01, especificamente em seu artigo 14, I, “a” e § 1º.
A outorga da concessão para a exploração de portos organizados é da competência da Agência Nacional de Transporte Aquaviário – ANTAQ, bem como a celebração do contrato correspondente e sua gestão e fiscalização. Vale notar que mesmo os contratos firmados antes da criação da agência devem estar reunidos sob sua administração, mantendo-se resguardados todos os direitos das partes.
Os atos de outorga de concessão de portos organizados devem ser perpetrados em observância à Lei 8.987/95 (ou seja, a lei que versa sobre concessões de serviços públicos em geral), bem como às regras aplicáveis contidas tanto na Lei 10.233/01 como nas regulamentações que sejam publicadas pela ANTAQ.
Faz-se oportuno analisar o conceito de “porto organizado”, a fim de tornar mais claro e preciso qual o objeto de uma concessão que vise à exploração de tal infra-estrutura pela iniciativa privada. À luz da mencionada Lei 8.630/93, em seu artigo 1º, § 1º, I, a definição para “porto organizado” é “o construído e aparelhado para atender as necessidades de navegação e da movimentação e armazenagem de mercadorias, concedido ou explorado pela União, cujo tráfego e operações portuárias estejam sob a jurisdição de uma autoridade portuária”.
Portanto, no caso de concessão à iniciativa privada, a empresa concessionária será a “autoridade portuária”, ou “Administração do Porto”, nos termos da Lei 8.630/93, estando as suas atribuições elencadas no artigo 33 de tal norma legal. Estará sob sua responsabilidade a administração do porto como um todo, devendo realizar as obras e investimentos previstos no contrato e que se fizerem necessários no curso da concessão, bem como fiscalizar as operações portuárias e arrecadar as respectivas tarifas, entre outras obrigações e direitos estabelecidos na referida Lei.
O contrato de concessão a ser celebrado entre a União e a empresa concessionária privada deve estar em plena consonância com as regras do edital e os estritos termos da proposta vencedora, além de ser obrigatório que contenha as cláusulas reputadas como essenciais na Lei 10.233/01, como, p.ex., aquelas concernentes ao prazo de vigência e condições de prorrogação; aos deveres relativos à exploração da infra-estrutura e à prestação dos serviços; às tarifas a serem auferidas; aos pagamentos, investimentos e garantias a serem executados pela concessionária; aos critérios para reversão de bens e ativos; aos procedimentos necessários para eventual transferência da concessão; às sanções aplicáveis em casos de infrações e às hipóteses de extinção da concessão, entre outros temas.
Assim é que a concessão abrange a administração e exploração do porto organizado como um todo, o qual se constitui de instalações portuárias diversas. Essas instalações podem ser objeto de arrendamento mediante prévia licitação e celebração de contrato, figurando como partes, de um lado, a Administração do Porto arrendante (que poderá ser uma concessionária privada, caso a exploração do porto tenha sido concedida, ou uma autoridade administrativa, caso a União o explore diretamente ou mediante convênio com Estado ou Município), e de outro, uma empresa privada, a arrendatária.
Tal contrato de arrendamento de instalações portuárias está regulado pela Lei 8.630/93 e pelo Decreto 4.391/02, não se confundindo em seus contornos jurídicos com o contrato de concessão do porto organizado (embora ambos integrem o gênero dos contratos administrativos, estando sob regime público), valendo, portanto, examinar as suas peculiaridades.
II. Arrendamento de Instalações Portuárias
As instalações portuárias, inicialmente sob administração da empresa concessionária que explora o porto organizado (ou a autoridade pública que o faça, em casos em que não ocorreram concessões à iniciativa privada), podem ser arrendadas para exploração de empresas interessadas, estando os respectivos contratos de arrendamento regulados na Lei 8.630/93 e no Decreto 4.391/02, pelo qual, inclusive, foi instituído o “Programa Nacional de Arrendamento de Áreas e Instalações Portuárias”.
Inicialmente, cumpre esclarecer que o contrato de concessão de porto organizado e o contrato de arrendamento de instalações portuárias de modo algum se confundem, tendo este último âmbito mais limitado, restringindo-se à exploração (com ou sem construção, reforma e/ou ampliação) de determinada instalação portuária, ao passo que a administração do porto como um todo, inclusive dos contratos de arrendamento, ficam a cargo da empresa concessionária.
A celebração de tal espécie de contrato deve ser precedida de licitação, bem como de consulta à autoridade aduaneira e ao poder público municipal e de aprovação do Relatório de Impacto sobre o Meio Ambiente – RIMA.
A exploração de instalações aeroportuárias mediante arrendamento poderá ser para uso público ou para uso privativo (neste último caso, para movimentação apenas de carga própria ou de carga própria e de terceiros determinados). No caso de exploração para uso público, o objeto do arrendamento deve estar limitado à área do porto organizado.
A Lei 8.630/93, especificamente em seu artigo 4, § 4º, estabelece as cláusulas essenciais do contrato de arrendamento, valendo destacar as seguintes: especificação da área arrendada; prazo do arrendamento; forma e condições da exploração das instalações e dos serviços correlatos; critérios indicadores de qualidade do serviço a ser prestado; valor do contrato, compreendendo a remuneração pelo uso da infra-estrutura integrante da instalação arrendada; cronograma físico-financeiro de obras e investimentos a realizar; reversão dos bens aplicados no serviço; fiscalização das instalações, equipamentos e serviços; garantias a serem prestadas; responsabilidades por descumprimento do contrato; hipóteses de extinção; cumprimento de medidas necessárias à fiscalização aduaneira, entre outras disposições.
Sendo o contrato de arrendamento de natureza administrativa, é imprescindível que seu prazo tenha limite, de modo a não perpetuar a relação jurídica da Administração Pública com apenas uma empresa privada, privilegiando-a em detrimento de outras igualmente capazes e idôneas. Por essa razão, a Lei determina não apenas que o prazo deve ser fixado no contrato, mas também que o limite máximo de sua vigência é de 50 (cinqüenta) anos, contando-se já eventual prorrogação, a qual só poderá ocorrer uma única vez, por prazo máximo igual ao originalmente avençado e desde que haja previsão no edital e no próprio instrumento contratual.
Note-se também que o regime de reversão de bens a ser aplicado no arrendamento de instalações portuárias deve ser o mesmo aplicável às concessões de serviço público, previsto na Lei 8.987/95. Dessa forma, os investimentos realizados pela arrendatária nas instalações que integrem o porto organizado deverão reverter à União, devendo a empresa ser indenizada caso tais investimentos ainda não tenham sido amortizados.
O arrendamento de instalação portuária situada nos limites da área do porto organizado e destinada a uso público será precedido de licitação, cuja abertura poderá ser requerida à Administração do Porto por interessado na construção e exploração de tal instalação. O respectivo contrato de arrendamento, portanto, será celebrado com o vencedor do certame.
Já a exploração de instalação portuária destinada a uso privativo será concedida mediante autorização, por ato unilateral da União, à pessoa jurídica que demonstrar capacidade para seu desempenho, por sua conta e risco. Tal autorização será formalizada por meio de contrato de adesão, que deverá conter muitas das cláusulas essenciais ao contrato de arrendamento de área para uso público. Note-se ainda que as instalações exploradas para uso privativo serão fiscalizadas pelas autoridades aduaneira, marítima, sanitária, de saúde e de polícia marítima.
Vale mencionar ainda que é juridicamente possível também o arrendamento de terrenos e instalações portuárias, localizadas dentro da área do porto organizado, para utilização não afeta às operações portuárias. Para tanto, faz-se necessária não apenas o devido procedimento licitatório como também prévia consulta à administração aduaneira.
Embora a celebração de contratos de arrendamento seja de competência da Administração do Porto, a Agência Nacional de Transporte Aquaviário – ANTAQ, criada em 2.002, deverá também participar e acompanhar, ainda que indiretamente, de tais negócios jurídicos existentes no âmbito do porto organizado.
Nesse sentido, o Decreto 4.391/02, que instituiu o Programa Nacional de Arrendamento de Áreas e Instalações Portuárias, dispõe que este integrará o Plano Geral de Outorgas de Exploração de Infra-Estrutura Aquaviária e Portuária e de Prestação de Serviços de Transporte Aquaviário, a ser apresentado pela ANTAQ ao Ministério dos Transportes. Ademais, determina também que a execução de tal programa caberá à autoridade portuária, que deverá atender, por sua vez, as normas a serem editadas pela ANTAQ (além das Leis pertinentes, inclusive a 8.666/93, que rege as licitações e contratos administrativos em geral).
Saliente-se que, nos termos de tal decreto, as licitações para arrendamento de instalações aeroportuárias deverão ser precedidas de estudos que compreendam a análise econômico-financeira, o valor mínimo da remuneração do bem a ser arrendado e o exame da rentabilidade do empreendimento. Tais estudos serão procedidos por empresas regularmente contratadas, mediante licitação, para fazê-los, devendo ser produzidos relatórios detalhados com base nos quais o edital será elaborado e publicado, instaurando-se o certame.
Previamente à tal instauração, entretanto, esses relatórios deverão ser analisados pela ANTAQ e também encaminhados, juntamente com os estudos de impacto ambiental, também obrigatórios, ao Tribunal de Contas da União, para conhecimento.
As medidas previstas no Decreto 4.391/02 visam, certamente, à maior segurança jurídica e planejamento no âmbito dos arrendamentos de áreas e instalações portuárias, embora possam, na prática, causar delongas excessivas e anti-econômicas nas contratações. No entanto, tendo em vista ser recente a criação da ANTAQ e do referido Programa Nacional de Arrendamento, aos poucos tais questões deverão ser equacionadas de modo a não causar procedimentos licitatórios intermináveis, resultando em não atendimento às necessidades operacionais em tempo razoável.
III. Agência Nacional de Transporte Aquaviário – ANTAQ
Consoante já afirmado, a ANTAQ foi criada por meio da Lei 10.233, de 6 de junho de 2.001, a qual dispõe também sobre a reestruturação dos transportes aquaviário e terrestre, bem como foi instituído o Conselho Nacional de Integração de Políticas de Transportes, a Agência Nacional de Transportes Terrestres (ANTT) e o Departamento Nacional de Infra-Estrutura de Transportes (DNIT).
Como as demais agências reguladoras até então criadas no Brasil, a ANTAQ tem natureza de pessoa jurídica de direito público integrante da Administração Federal indireta e submete-se a regime autárquico especial, estando vinculada ao Ministério dos Transportes. Sendo uma autarquia especial, a agência tem independência administrativa, autonomia financeira e funcional e mandato fixo de seus dirigentes.
Os portos organizados estão abrangidos na esfera de competência da ANTAQ, juntamente com a navegação fluvial, lacustre, de travessia, de apoio marítimo, de apoio portuário, de cabotagem e de longo curso; assim como os terminais portuários privativos, o transporte aquaviário de cargas especiais e perigosas e a exploração da infra-estrutura aquaviária.
Especificamente no âmbito dos portos organizados, cumpre destacar as principais competências atribuídas à ANTAQ, de forma a verificar sobretudo a participação da Agência nas concessões e arrendamentos levados a efeito no setor portuário.
Assim, cabe à ANTAQ: propor ao Ministério dos Transportes o plano geral de outorgas de exploração de infra-estrutura portuária; elaborar e editar normas e regulamentos referentes à exploração de infra-estrutura portuária; reunir, sob sua administração, os instrumentos de outorga de infra-estrutura portuária firmados antes da vigência da Lei que criou a agência; aprovar, após comunicação ao Ministério dos Transportes, as propostas de revisão e de reajuste de tarifas apresentadas pelas Administrações portuárias; estabelecer normas e padrões a serem atendidos pelas autoridades portuárias; publicar os editais, conduzir as licitações e celebrar e gerir os contratos de concessão de portos organizados; e cumprir e fazer cumprir as cláusulas relativas aos bens reversíveis à União.
À luz de tais disposições, bem como das regras abordadas nos itens anteriores, constata-se que a participação da ANTAQ nas concessões e nos arrendamentos realizados no âmbito do setor portuário é distinta. Nas concessões, a própria ANTAQ instaurará os certames e celebrará os respectivos contratos, em nome da União (titular da exploração dos portos organizados), gerindo-os durante toda a execução contratual, ao passo que nos arrendamentos, a agência apenas participará editando normas sobre a matéria e a aprovando programas gerais, sendo que a licitação e o contrato ficarão sob responsabilidade direta da autoridade portuária (ou seja, da Administração do Porto, seja uma entidade administrativa ou uma concessionária privada).
Há que se considerar ainda que a ANTAQ tem também a competência lega expressa “de supervisão e de fiscalização das atividades desenvolvidas pelas Administrações Portuárias nos portos organizados” (artigo 51-A, caput, da Lei 10.233/01), o que significa que a agência acompanhará estritamente os atos da empresa concessionária e também as atividades concernentes aos arrendamentos realizados, mesmo não sendo, neste último caso, a parte contratante da avença.
Os portos brasileiros, em muitos casos, já encontram-se sob administração e exploração da iniciativa privada mediante concessão, bem como muitas de suas áreas e instalações estão sob arrendamento a empresas devidamente contratadas para tal escopo. Com a criação da ANTAQ, o setor vem sendo regulado e fiscalizado de modo que possa atender com mais eficiência e satisfatoriedade tanto aos interesses dos usuários e de empresas privadas aptas a serem parceiras do Estado, como ao interesse público primordial de desenvolver e modernizar tal relevante setor de infra-estrutura, revertendo-se em benefícios à coletividade e ao erário público.
Sendo recente a criação da ANTAQ, a sua participação efetiva nas concessões e arrendamentos poderá ser verificada e avaliada com o tempo e com o aprimoramento constante de suas atividades, de forma a trazerem efetivamente mudanças positivas. As atividades da agência podem ser porventura modificadas num futuro próximo, em decorrências de eventual alteração da legislação referente a agências reguladoras como um todo, embora os termos gerais dos negócios jurídicos entre Poder Público e iniciativa privada na esfera portuária possam permanecer tal como vigentes atualmente.
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* Advogada do escritório Felsberg, Pedretti, Mannrich e Aidar - Advogados e Consultores Legais
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