Migalhas de Peso

Os velhos carrapatos

Achei esta fábula, num livro antigo: "uma raposa, ao cruzar o rio, foi arrastada para um fosso, onde ficou, com muitos carrapatos agarrados a seu corpo. O ouriço, com dó da raposa, indagou-lhe se podia livrá-la dos carrapatos.

10/8/2004

Os velhos carrapatos


Alfredo Attié Jr.*

Achei esta fábula, num livro antigo: "uma raposa, ao cruzar o rio, foi arrastada para um fosso, onde ficou, com muitos carrapatos agarrados a seu corpo. O ouriço, com dó da raposa, indagou-lhe se podia livrá-la dos carrapatos. A raposa não consentiu, pois aqueles já se haviam saciado e pouco sangue ainda sugavam. Se os retirar, disse, outros virão famintos e vão extrair o resto de sangue que possuo". Segundo li, Esopo contou-a aos gregos de Samos, para que desistissem de matar um demagogo, acusado de roubar as riquezas da cidade. Perecendo o corrupto antigo, novos viriam e levariam os bens restantes.

Parece que certos gregos pensaram em tudo. As fábulas, por exemplo, guardam uma sabedoria valiosa, são lugar-comum de nossas conversas, até modos simples de pensar, que têm a virtude de nos livrar de qualquer censura, mental ou social. Além disso, facilitam a reflexão das contradições, que se formam do material de que nossas vidas são feitas: interesses e paixões e nossas disputas para alcançá-los.

Se digo logo que é bom preservar a figura de velhos políticos para o bem da sociedade, achariam que faço graça. Sobretudo em época de luta pela moralização da cena pública, que às vezes parece mesmo séria e sincera e outras, nem tanto. Mas, de algum modo, a prática política e social acaba levando a isso: faz-se um barulho enorme e, no final, acontece algo mais ameno, a própria preservação do velho coronel, só que por acordo de que não participamos os interessados: a população. A acomodação se faz apenas pela classe política, algo como favores trocados pela moeda de um ostracismo light. Fingimos que não percebemos isto e nos contentamos com o chavão da impunidade. Achando que todo caminho é reto, toda intenção, direta, toda ação, sincera.

A política, porém, que está tão longe de nossa prática diária, oferece múltiplos caminhos e raciocínios. Talvez a falta de imaginação política seja um de nossos maiores defeitos. Quem não imagina, enxerga um campo restrito, pois, de perto, as picadas não oferecem saídas. A fábula permite-nos pensar o contraste: o bom e o mau se cruzam, num raciocínio quase tão complexo quanto a vida. Secamente, você é obrigado a engolir a verdade, mesmo desagradável, e sorri.

Quantos de nossos velhos carrapatos abandonaram o dorso da raposa? Estão todos aí, sugando-lhe vagarosamente as forças, comprazendo-se de vê-la no fosso. Mantêm-na viva, fazem-na acreditar na sua necessidade e nos males menores que lhe causam, prevenindo-a contra novos aventureiros.

Concorrem, mas têm uma ética comum: o discurso de um sempre pode ser usado contra o outro, dando a impressão de que são antídotos, uns em relação aos outros, mesmo que sejam só venenos, de perversidade, qualidades e graus diversos.

O ouriço passa pela raposa, sente que sofre, oferece auxílio, mas a raposa teme: o pouco de sangue, de vida e esperança que lhe resta é bastante. A retórica do ouriço é frágil, sua intenção enfim é apenas tirar carrapatos, não a salvação do rego. O leitor não reconhece aí a triste história política da sociedade brasileira? Algum se habilita a recontar a fábula e lhe oferecer uma lição diversa, uma saída honrosa para o destino da raposa?
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* Doutor em filosofia política da USP e juiz de direito





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