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Aspectos sobre a retroatividade da lei em matéria acidentária

Muito se tem discutido a respeito da questão da retroatividade ou irretroatividade da lei acidentária, para beneficiar o segurado da Previdência Social.

5/8/2004

Aspectos sobre a retroatividade da lei em matéria acidentária


Allan Dalla Soares*

Muito se tem discutido a respeito da questão da retroatividade ou irretroatividade da lei acidentária, para beneficiar o segurado da Previdência Social.

A primitiva redação do artigo 86 da Lei 8.213, de 24/7/1991 – Lei de Benefícios – trazia uma diferenciação dos percentuais devidos a título de auxílio-acidente, nas bases de 30%, 40% ou 60% do salário de contribuição, para os segurados que tivessem, respectivamente, uma redução da capacidade laborativa, com a exigência de maior esforço físico, porém sem necessidade de reabilitação profissional; uma redução da capacidade laborativa, tal que impedisse o exercício da mesma atividade, porém não de outra de mesmo nível de complexidade, após a reabilitação, e, por fim, uma redução da capacidade que, além de impedir o retorno à mesma atividade, levasse o infortunado a reabilitar-se em uma atividade de nível de complexidade inferior àquela anteriormente exercida.

Na nossa visão, este era o melhor parâmetro para que o princípio da isonomia inserido no caput e no inciso I do artigo 5º da Constituição da República fosse devidamente cumprido, pois os iguais estavam sendo tratados de forma igual, e os desiguais, proporcionalmente de forma desigual, na medida de suas desigualdades. E esta visão independe de maiores explicações, porque fica claro perceber que o obreiro que teve apenas uma falange de um dos dedos da mão esquerda amputada, não pode ser tratado da mesma maneira daquele que teve o mesmo prejuízo em um braço inteiro. Os prejuízos funcionais são diferentes.

Hertz J. Costa1 entende que houve um verdadeiro “retrocesso na legislação acidentária”, com a alteração do artigo 86 da Lei 8.213/91, primeiro pela Lei 9.032, de 28/4/1995, e após pela Lei 9.528, de 10/12/1997, promulgadas para uma “tentativa de proteção da autarquia previdenciária, que sempre atravessou problemas financeiros”.

A primeira alteração consistiu em unificar os percentuais acima mencionados para um único percentual de 50%, independente do grau de redução da capacidade funcional do infortunado. Já a segunda, retirou o caráter de vitaliciedade do auxílio-acidente, que agora pode ser cancelado a partir do momento que o segurado passa a receber outra espécie de benefício, como a aposentadoria.

Até mesmo o auxílio-suplementar de 20% introduzido com o advento da Lei 6.367/76 já havia sido extinto pela Lei 8.213/91.

Com estas modificações, questiona-se qual seria a lei aplicável. A do momento da consolidação das lesões ou a lei nova, mais benéfica ao obreiro, pelo caráter puramente social da legislação?

A questão envolve o princípio tempus regit actum, caracterizado pelo artigo 6º da Lei de Introdução ao Código Civil e pelo inciso XXXVI do artigo 5º da Constituição da República, pelo qual a lei dispõe para o futuro, não podendo obrigar antes de ter existência.

De Plácido e Silva2 ensina que “a lei nova não alcança ou não atinge, com a sua eficácia, atos jurídicos que se praticam antes que viesse, bem assim os efeitos que deles se geraram”.

A regra, portanto, é da irretroatividade, sendo que o contrário é exceção a ela, seja quando a própria lei assim estabeleça, seja pela natureza e caráter da norma.

Ocorre que a lei infortunística possui caráter de ordem pública, devendo também ser considerada a natureza alimentar dos benefícios. Para Julio Fabbrini Mirabete3, a questão da retroatividade tem o fundamento de que “a lei nova presumidamente é mais ágil, mais adequada aos fins do processo, mais técnica, mais receptiva das novas e avançadas correntes do pensamento jurídico”.

E o mesmo ocorre com a lei acidentária, modificada por diversos fatores – que aqui não iremos abordar – entre eles o de beneficiar o segurado, que é a parte hipossuficiente economicamente, haja vista o caráter social da norma e o cunho alimentar da prestação. Trata-se de garantir de uma melhor forma o sustento do acidentado, com proteção e equilíbrio entre o direito e a vida, a saúde e o trabalho, princípios esculpidos no artigo 5º da LICC e no Título “Da Ordem Social” da Constituição, com maior proteção pelo Estado.

Certo é que o legislador, ao igualar os percentuais em um único de 50% levou em conta uma razão de justiça social. As normas de ordem pública visam a tutelar interesse amplo que, em regra, transcende aos conflitos dos particulares, aos conflitos encontrados no direito privado, interpessoal, sendo motivo para amparar a retroatividade da lei nova, mais benéfica ao obreiro, a ser aplicada tanto aos casos pendentes, como para ensejar ações revisionais de casos já terminados, atingindo situações ocorridas durante a vigência de leis menos benéficas.

A jurisprudência, assim como a doutrina, ainda não pacificou o entendimento a este respeito, encontrando-se decisões para ambos os lados. Contudo, vem inclinando-se para a retroatividade da lei nestes casos.

O Relator Ministro Felix Fischer da Terceira Seção do Superior Tribunal de Justiça, ao julgar o EREsp 338.107/SC4, concluiu, inclusive revendo seu posicionamento anterior, que “se a norma em matéria acidentária é de natureza pública, e se por isso deve ter aplicação geral a todos aqueles que se encontram na mesma situação, não se deve estabelecer distinção não prevista em lei apenas em favor dos que foram discutir seus direitos em juízo. Caso contrário, encontraremos sem muita dificuldade diversos exemplos de obreiros com o mesmo tipo de lesão, ocoridas na mesma época, e que receberão valores diferentes só porque um deles teve ‘a sorte’ de se ver obrigado a buscar corrigir em juízo erro na concessão do auxílio-acidente. Com base nessas considerações, reformulo a posição que adotei no REsp 240.476/ SC, DJ 29/5/2000 (já citado acima), por considerar necessária uma ampliação do entendimento consagrado na Terceira Seção, de maneira a estender a incidência da lei nova mais vantajosa não só aos benefícios pendentes, mas a todos os segurados, independentemente da lei vigente na dita do sinistro.”

No mesmo sentido podemos citar os seguintes julgados: STJ – EREsp 324.380/SC, 3ª S., Rel. Min. Fernando Gonçalves, 3/6/02; STF – AI 205.858, 2ª T., Rel. Min. Marco Aurélio, 5/2/98; STJ – Resp 223.145, 5ª T., Rel. Min. Felix Fischer, 25/10/99; STJ – Resp 178.080, 5ª T., Rel. Min. Jorge Scartezzini, 4/10/99; STJ – AgRg no AI 184.328, 6ª T., Rel. Min. Fernando Gonçalves, 24/8/98, entre outros.

Portanto, admite-se a retroatividade da lei acidentária para beneficiar o obreiro, por tratar-se de legislação de cunho social, além da natureza alimentar do benefício, aplicando-se tanto em relação aos casos pendentes de julgamento, quanto aos já transitados em julgado, com a possibilidade de revisão dos percentuais, sem falar-se em ofensa ao artigo 6º da Lei de Introdução ao Código Civil.
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1
in Acidentes do Trabalho na Atualidade – Síntese – 2003 – Porto Alegre – pág. 115.
2 in Vocabulário Jurídico, Forense, 12ª ed., pág. 523.
3 in Processo Penal – Atlas – 8ª ed. – São Paulo – 1998 – pág. 56.

4 DJU 18/6/2002.
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* Advogado em São Paulo, pós-graduando em Direito Processual Civil – Mackenzie/SP





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