O patrimônio cultural imaterial como bem ambiental
Thais Leonel*
Introdução
Bem ambiental
Percebendo-se que a ciência não poderia prever, satisfatoriamente, todas as conseqüências das alterações introduzidas pelo homem no meio ambiente, principalmente das decorrentes de avanços tecnológicos, a Constituição Federal de 1988 (clique aqui) institui uma nova espécie de bem, pertencente a todos, mas não sendo de ninguém em específico, sendo assim,um bem de natureza difusa.
O art. 225 da Constituição afirma que "Todos tem direito ao meio ambiente ecologicamente equilibrado, bem de uso comum do povo e essencial à sadia qualidade de vida, impondo-se ao Poder Público e à coletividade o dever de defendê-lo e preservá-lo para as presentes e futuras gerações"
Este "bem" tem como característica fundamental ser essencial à sadia qualidade de vida dos cidadãos brasileiros1. Neste sentido, podemos dizer inclusive que "a grande finalidade do direito ambiental brasileiro é, sem dúvida, garantir vida, mas não qualquer vida. A Constituição Federal é clara quando fala em vida com qualidade. Logo em seu primeiro artigo, a Carta Constitucional trata de estabelecer os fundamentos da República Federativa, trazendo como princípios fundamentais e basilares, dentre outros, o da dignidade da pessoa humana. A garantia desta vida com qualidade não está apenas ligada ao princípio da dignidade da pessoa humana, como também intrinsecamente ligada aos preceitos do artigo 6º da mesma Carta, artigo este que prevê valores mínimos para o desfrute da vida digna. Isto é o que chamamos piso vital mínimo, que se traduz no mínimo necessário que um ser humano precisa para ter efetivada a garantia constitucional da dignidade e da vida com qualidade".2
O bem ambiental, como a própria Constituição Federal explicita, é bem de caráter difuso, de uso comum do povo, portanto insuscetível de apropriação privada. De fato, a expressão "uso" não guarda nenhuma semelhança com o conceito "privatista" de propriedade que encontramos no Código Civil (clique aqui), sendo esta uma das principais características do bem ambiental.
A estrutura constitucional do bem ambiental é resultante da somatória
de dois aspectos encontrados no art. 225 da CF/88. Assim, quase que matematicamente, obtemos a fórmula do bem ambiental, que se constitui em: bem de uso comum do povo + essencial à sadia qualidade de vida.
Para melhor esclarecer o conteúdo desta fórmula, vamos nos valer do precioso ensinamento de Celso Antonio Pacheco Fiorillo3, que preleciona:
"bem ambiental é, portanto, um bem que tem como característica constitucional mais relevante ser essencial ' A sadia qualidade de vida sendo ontologicamente de uso comum do povo, podendo ser desfrutado por toda e qualquer pessoa dentro dos limites constitucionais".
Observando o caráter difuso deste bem, que é de todos, mas não tem um dono específico, resta afirmar que o povo brasileiro, abarcado pelo princípio fundamental da soberania, é o titular deste direito que deve ser exercido fundamentado na dignidade da pessoa humana, viga mestra de toda nossa ordenação positiva. Logo, para que haja vida com dignidade deve haver também a efetivação do piso vital mínimo, valores essenciais garantidos por força do art. 6º da Constituição Federal. De acordo com o referido artigo, são direitos sociais (e essenciais) a educação, a saúde, o trabalho, olazer, a segurança, a previdência social, a proteção à maternidade e à infância,a assistência aos desamparados, valores estes considerados mínimos para satisfação de uma vida com dignidade.
Nosso entendimento4 é, portanto, de que o bem ambiental é aquele imprescindível para a existência do homem, ressalte-se de uma existência digna e saudável.
Apontamento acerca da expressão “cultura”
Antes porém de enfrentarmos a questão do bem ambiental cultural de natureza imaterial, faremos uma breve pausa, para comentarmos um pouco sobre a expressão cultura, tema que causa grande inquietação em antropólogos, sociólogos, entre outros.
Por que nós, que somos frágeis e possuidores de uma insignificante força física, que não temos asas, mas dominamos o ar, que não temos guelras, mas dominamos os mares, dominamos toda natureza e trasnformamo-nos em terríveis predadores? Isso só acontece por sermos os únicos a possuir cultura. Mas afinal o que é cultura?5
A expressão cultura, é proveniente do termo germânico Kultur, que era utilizado para simbolizar todos os aspectos espirituais de uma comunidade, e também da palavra francesa Civilization, que fazia referência às realizações materiais de determinado povo.6
Entretanto, foi Edward Tylor quem primeiramente sintetizou os dois termos, resultando no vocábulo inglês Culture, que abrangia os dois vocábulos anteriores, ou seja, que significava "todas as possibilidades de realização humana, além de marcar fortemente o caráter de aprendizado da cultura em oposição à idéia de aquisição inata, transmitida por mecanismos biológicos".7
Vários são os conceitos acerca da expressão 'cultura". Goffredo Telles Júnior8, em seu clássico estudo quanto ao fundamento da ordem jurídica, diz que cultura é “tudo aquilo que o homem acrescenta às cousas, quando pratica os atos designados pelo verbo cultivar” e continua ensinando que "pela cultura, o homem impõe uma ordem humana às cousas do mundo. O mundo da cultura é o mundo da natureza ordenada pelo homem, com a intenção de beneficiar o próprio homem. Que é a cultura dos campos? É uma certa ordenação dada aos campos para obter safras melhores. Que é a cultura da inteligência? É a ordenação de nossas percepções e juízos para um melhor conhecimento do mundo".9
Ousamos acrescentar neste ensinamento que, além de ser a cultura, ordenação de nossas percepções e juízos para melhor entender o mundo, esta também serve para exteriorizar e perpetuar esse mundo, que acontece de maneiras diferentes dependendo do tempo, da localização, da própria história de cada povo.
Nicola Abbagnano10 afere dois significados básicos para cultura, sendo que o primeiro e mais antigo significa a formação do homem, sua melhoria, bem como seu refinamento; já o segundo significado diz respeito ao conjunto dos modos de viver e pensar, cultivados, civilizados, polidos, que também costumam ser indicados pelo nome civilização.
Para Geertz, "cultura é um sistema de símbolos e significados.Compreende categorias ou unidades e regras sobre relações e modos de comportamento. O status epistemológico das unidades ou 'coisas' culturais não depende de sua observabilidade: mesmo fantasmas e pessoas mortaspodem ser categorias culturais".11
Assim, podemos verificar que a discussão sobre o tema é infindável e compreender o exato conceito de cultura "significa a compreensão da própria natureza humana, tema perene da incansável reflexão humana".12
Patrimônio cultural imaterial e sua tutela jurídica
Tema que curiosamente tem feito ecoar críticas e vozes dissonantes entre cidadãos brasileiros, o patrimônio imaterial vem gerando inúmeros questionamentos.
Até o ano de 2000, tínhamos apenas o tombamento como meio de proteção aos bens culturais. O tombamento é o processo pelo qual se declara ou até mesmo reconhece o valor cultural de determinados bens que, devido a suas características especiais, passam a ser preservados. Este instituto tem sido utilizado em nosso país há mais de sessenta anos, por força do Decreto Lei nº 25/37, protegendo e preservando os bens culturais de natureza material13, sendo inaplicável e até mesmo inadequado à preservação dos bens de natureza imaterial. Uma vez tombado, o bem recebe tutela do Estado, que se torna responsável por mantê-lo inalterado, para bem preservá-lo.
Acontece que não é apenas de aspectos físicos que a cultura de um povo se constitui. Existe uma porção intangível de "herança cultural", que estão contidas nas tradições, no folclore, nas línguas, nos saberes, dentre outros que é a própria fonte da identidade do povo14 brasileiro.
Segundo a Unesco, na Convenção para a Salvaguarda do Patrimônio Cultural Imaterial, "entende-se por ‘patrimônio cultural imaterial’ as práticas, representações, expressões, conhecimentos e técnicas – junto com os instrumentos, objetos, artefatos e lugares que lhe são associadas – que as comunidades, os grupos e, em alguns casos, os indivíduos reconhecem como parte integrante de seu patrimônio cultural. Este patrimônio cultural imaterial, que se transmite de geração em geração, é constantemente recriado pelas comunidades e grupos em função de seu ambiente, de sua interação com a natureza e de sua história, gerando um sentimento de identidade e continuidade, contribuindo assim para promover o respeito à diversidade cultural e à criatividade humana".15
Cabe lembrarmos que, a partir de 1988, a Constituição diz constituir patrimônio cultural brasileiro os bens de natureza material e imaterial, tomados individualmente ou em conjunto, portadores de referência à identidade, à ação, à memória dos diferentes grupos formadores da sociedade brasileira. Assim sendo, "a Constituição não faz restrição a qualquer tipo de bem, de modo que podem ser materiais ou imateriais, singulares ou coletivos, móveis ou imóveis".16
Diante disto, e segundo Paulo Afonso de Leme Machado17, fica claro que "o conceito de patrimônio cultural dado pela Constituição Federal permite uma proteção dinâmica e adaptável às contingências e transformações da sociedade.Daí a previsão de se resguardar as 'formas de expressão e os modos de criar, fazer e viver'."
Entretanto, como fazer para tutelar estes bens? Qual instrumento hábil, adequado e aplicável diante da dinâmica e mutabilidade desses bens?
Como pudemos aferir, o tombamento não é hábil para preservar e garantir os bens de natureza imaterial, vez que torna o bem, objeto da tutela, inalterado.
Neste sentido, a Constituição Federal esclarece no § 1º do artigo 216 que o Poder Público, com a colaboração da comunidade, promoverá e protegerá o patrimônio cultural brasileiro, por meio de inventários, registros, vigilância, tombamento e desapropriação, e de outras formas de acautelamento. Verificamos que este rol é exemplificativo, o que permite uma certa liberdade para que o legislador possa criar outros instrumentos que respondam e possam ser hábeis para a preservação do patrimônio cultural.
Então, a partir do dia 4 de agosto de 2000, o Decreto nº. 3.551 instituiu o registro de bens culturais de natureza imaterial que constituem patrimônio cultural brasileiro, criando o Programa Nacional do Patrimônio Imaterial, dentre outras coisas, que efetiva a garantia de tutela constitucional do bem ambiental cultural de natureza imaterial.
O procedimento consiste na identificação e sistematização de conhecimento referente ao bem cultural e na reunião da mais ampla documentação de todos os seus aspectos culturais relevantes, ou seja, um inventário. Após essa fase de instrução técnica, o processo de registro é encaminhado ao Presidente do IPHAN – Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional, que o submeterá ao Conselho Consultivo do Patrimônio Cultural. Se aprovado, o bem é inscrito num dos Livros de Registro, recebendo, assim, o título de "Patrimônio Cultural do Brasil".18
Temos quatro Livros de Registros, quais sejam: Livro de Registro dos Saberes, onde serão inscritos conhecimentos e modos de fazer enraizados no cotidiano das comunidades (art. 1º, § 1º, I); o Livro de Registro das Celebrações, onde serão inscritos rituais e festas que marcam a vivência coletiva do trabalho, da religiosidade, do entretenimento e de outras práticas da vida social (art. 1º, § 1º, II); o Livro de Registro das Formas de Expressão, onde serão inscritas manifestações literárias, músicas, plásticas, cênicas e lúdicas (art. 1º, § 1º, III); o Livro de Registro de Lugares, onde serão inscritos mercados, feiras, santuários, praças e demais espaços onde se concentram e reproduzem práticas culturais coletivas(art. 1º, § 1º, IV).
O Decreto também deixa claro quem possui legitimidade para provocar a instauração do processo de registro, a saber, o Ministro de Estado da Cultura, as instituições vinculadas ao Ministério da Cultura, as Secretarias de Estado, de Município e do Distrito Federal e as sociedades ou associações civis.
Importante frisar que o objetivo da inscrição num dos Livros de Registro, é a continuidade histórica do bem e sua relevância nacional para a memória, a identidade e a formação da sociedade brasileira.
Assim, vale ressaltar que este Decreto não tem intenção de engessar, imobilizar ou alterar qualquer forma de expressão, modo de saber, viver ou fazer dentre outras, mas, antes, identificar e perpetuar os bens culturais de natureza imaterial.
As candidaturas do Samba-de-Roda do Recôncavo Baiano e do Círio de Nazaré lançaram oficialmente o Programa Nacional do PatrimônioImaterial.
O Samba-de-Roda, datado de 1860, é precursor de todo um gênero musical, influenciando o samba carioca, que no decorrer do século XX se configura num dos maiores símbolo de brasilidade. O Círio de Nazaré, famosa procissão realizada no segundo domingo de outubro, em Belé do Pará, reúne cerca de um milhão e meio de fiéis. Além destes, também já estão registrados como Patrimônio Cultural Brasileiro, o Ofício das Paneleiras das Goiabeiras, em Vitória/ES, a Arte Kusiwa –Pintura Corporal e Arte Gráfica dos índios Wajãpi, Amapá, dentre outros.
Após a inauguração do Projeto Nacional da Propriedade Imaterial, muitas candidaturas já estão sendo solicitadas e encaminhadas ao IPHAN, revelando que este Decreto veio efetivar o próprio art. 216 da Constituição Federal, quando permite a tutela e a preservação destes bens, não apenas para imobilizá-los, mas antes imortalizá-los não só para as presentes, mas também para as futuras gerações (art. 225 da CF/88, in fine).19
A Propriedade cultural imaterial como bem ambiental
Pudemos verificar a existência de uma nova espécie de bem, pertencente a todos, mas não tendo um dono específico. Verificamos também que este bem, além de ser de uso comum do povo, é essencial à sadia qualidade de vida e, quando falamos em vida com qualidade, não podemos deixar de invocar um dos preceitos fundamentais da Constituição Federal, que é a dignidade da pessoa humana, atrelado ao conteúdo do art. 6º da mesma Carta.
Quando analisamos o artigo 216 da Constituição Federal, resta claro que os bens de natureza material e imaterial, tomados individualmente ou em conjunto, portadores de referência à identidade, à ação, à memória dos diferentes grupos formadores da nossa sociedade brasileira constituem patrimônio cultural brasileiro. Logo, toda e qualquer manifestação de saber, qualquer tradição, forma de expressão, modo de viver, celebração que fizer referência à identidade, ação ou memória da nossa sociedade está intrinsecamente associada ao art. 6º e ao preceito fundamental da dignidade da pessoa humana, art. 1º, III ambos da nossa Carta Constitucional. A satisfação desta vida digna reclama a efetivação destes preceitos fundamentais plugados, neste caso, aos artigos 215, 216 e 225 da Constituição Federal, o que só é possível por sermos um Estado Democrático de Direito.
Portanto, há de se afirmar que as pessoas humanas exercitam sua cidadania não só em decorrência da aplicação concreta dos preceitos constitucionais, mas particularmente gozando plenamente do exercício dos direitos culturais e do acesso às fontes de cultura nacional.20
Sem dúvida, a proteção dos valores culturais e dos bens ambientais culturais tornam-se imprescindíveis sendo que sua desproteção acaba por aniquilar as raízes formadoras de uma nação, golpeando o povo em sua forma mais severa, a saber, não só em face de sua dignidade (violentando claramente o que estabelece o art. 1º, III, da CF/88) como em decorrência de sua própria identidade personificada e do meio em que vive.21
Destarte, a própria Constituição Federal evidencia o caráter imprescindível de tutela de referidos bens, não apenas por tratar-se de bens formadores de uma sociedade, verdadeiros bens ambientais, mas antes, por fazerem a existência do ser humano, uma existência digna.
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1 Quando falamos em cidadãos brasileiros estamos nos referindo a TODOS os brasileiros e estrangeiros residentes no país, protegidos e albergados pela soberania nacional.
2 Thaís Leonel, "Bem cultural de natureza imaterial: a tutela jurídica do movimento chamado Tropicália no direito ambiental brasileiro", Fiuza Editores, no prelo
3 Curso de Direito Ambiental, 4ª ed., p.51.
4 Neste sentido, Consuelo Yatsuda Moromizato Yoshida, Agravo de Instrumento nº 192.647; e Celso Antonio Pacheco Fiorillo, Curso de Direito Ambiental Brasileiro, 4º ed., pp. 52-55
5 Vide, Roque de Barros Laraia, Cultura: um conceito antropológico, p. 24.
6 Idem, p. 25.
7 Ibidem.
8 Direito Quântico – ensaio sobre o fundamento da ordem jurídica, p. 313.
9 idem
10 Dicionário de filosofia, p. 225
11 apud Roque de Barros Laraia, Cultura – um conceito antropológico, p. 63.
12 Roque de Barros Laraia, Cultura: um conceito antropológico, p. 63.
13 Cfm. § 2º do artigo 1º do Decreto Lei nº. 25/37, equiparam-se aos bens a que se refere o presente artigo e são também sujeitos ao tombamento os monumentos naturais, bem como os sítios e paisagens que importe conservar e proteger pela feição notável com que tenham sido dotados pela natureza ou agenciados pela indústria humana. Assim, resta claro que os bens sujeitos ao tombamento não se restringem aqueles provenientes de atividade humana.
14 Vale ressaltar que comungamos com o entendimento de Celso Antonio Pacheco Fiorillo, que diz ser povo, o conjunto de indivíduos que falam a mesma língua, têm costumes e hábitos assemelhados, afinidades de interesses, história e tradições comuns. Vide Curso de Direito Ambiental, p. 11.
15 Página do Ipahn (clique aqui), consultada em 8/10/2004.
16 Celso Antonio Pacheco Fiorillo, Curso de Direito Ambiental Brasileiro, 4ª ed., p. 193.
17 Direito Ambiental Brasileiro, p. 854
18 Página do Ipahn (clique aqui), consultada em 8/10/2004.
19 A título de curiosidade, vale lembrar o caso da Fábrica de Vinho de Caju Tito Silva na Parnaíba. A fábrica, fundada em 1892, uma das primeiras a produzir o vinho de caju, mas já desativada, foi tombada em 1996, mantendo-se preservados apenas máquinas e prédio. Entretanto, o modo de fazer o vinho, verdadeiro bem cultural foi esquecido e perdeu-se ao longo dos anos.
20 Celso Antonio Pacheco Fiorillo, O direito de antena em face do direito ambiental no Brasil, p. 42
21 Ibid. p. 51.
________________*Mestre em Direito pela Universidade Metropolitana de Santos – UNIMES. Advogada. Integrante do Conselho Editorial da Revista Brasileira de Direito Ambiental, editada pela Editora Fiuza
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