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Reiteração delituosa e a certeza da impunidade

Na edição de 26 de fevereiro de 2008, o CORREIO BRAZILIENSE publicou notícia de que a “Justiça decretou a quebra dos sigilos fiscal, bancário e de dados telefônicos e telemáticos” de diversas pessoas físicas e jurídicas, fato confirmado, posteriormente, pelo próprio magistrado, em entrevista a uma emissora de televisão, com o acréscimo da informação de que sua decisão havia sido dada em 19 de dezembro de 2007. A reportagem ganhou relevo porque, dentre os atingidos pela ordem judicial, havia pessoas de projeção nacional, no campo social e político.

26/3/2008


Reiteração delituosa e a certeza da impunidade

Aristides Junqueira Alvarenga*

Na edição de 26 de fevereiro de 2008, o Correio Braziliense publicou notícia de que a "Justiça decretou a quebra dos sigilos fiscal, bancário e de dados telefônicos e telemáticos" de diversas pessoas físicas e jurídicas, fato confirmado, posteriormente, pelo próprio magistrado, em entrevista a uma emissora de televisão, com o acréscimo da informação de que sua decisão havia sido dada em 19 de dezembro de <_st13a_metricconverter productid="2007. A" w:st="on">2007. A reportagem ganhou relevo porque, dentre os atingidos pela ordem judicial, havia pessoas de projeção nacional, no campo social e político.

O autor destas reflexões é advogado de uma delas, mas não se trata, aqui, de defender interesse individual desta, que, aliás, nenhum receio tem relativamente ao resultado das investigações judicialmente determinadas.

Mas, tendo em vista a ordem jurídico-constitucional vigente entre nós, a notícia jornalística aqui lembrada sugere lembranças outras, principalmente de cunho constitucional, como a imperiosa necessidade de observância das garantias individuais, a par da obrigatoriedade da persecução penal dos crimes que mais perturbam a boa convivência social, como os crimes contra a Administração Pública e contra a Administração da Justiça, quer praticados por funcionários públicos, quer por particulares.

Ora, a decisão judicial noticiada, oriunda da 1ª Vara Criminal da Circunscrição Judiciária Especial de Brasília, encontra-se em procedimento sigiloso, apartado do inquérito policial pertinente, cujo acesso àquele é negado, até mesmo, às pessoas contra as quais ela se dirige, conquanto tal conduta já tenha sido, recentemente, rechaçada pelo Supremo Tribunal Federal, mediante incisiva decisão do eminente ministro Celso de Mello, no HC 93.767 (clique aqui), relativamente a feito em tramitação na mesma 1ª Vara Criminal de Brasília.

De qualquer sorte, é obvio que a divulgação jornalística foi precedida de violação de sigilo praticada por funcionário público, o que constitui crime definido no artigo 325 do Código Penal (clique aqui).

Ressalte-se, neste ponto, que nenhuma responsabilidade pode ser atribuída à pessoa, física ou jurídica, que deu divulgação à matéria sigilosa e nem se pode exigir desta que revele a fonte da qual emanou o material sigiloso, por expressa vedação constitucional. E assim há de ser, eis que liberdade de imprensa é condição essencial à existência do regime democrático.

Sabe-se que o crime de violação de sigilo funcional é crime próprio, ou seja, só pode ser praticado por funcionário público, que, em razão de sua função, tem o dever de guardar segredo.

Sabe-se, também, que, no campo da persecução penal, mais especificamente na fase do inquérito policial, apenas três são, em regra, os atores aos quais se pode atribuir a autoria do delito : a autoridade policial, o membro do Ministério Público ou o Juiz, que, paradoxalmente, são os mesmos encarregados, por força de lei, de apurar e sancionar todo e qualquer crime.

É possível que tal paradoxo seja a causa da impunidade dos autores do delito de violação de sigilo funcional, fruto de cumplicidade, ou de temor reverencial entre os possíveis autores do crime. Por isso, não se tem notícia de condenação ou de ação penal por crime de violação de sigilo funcional, em casos como o ora apontado, cada vez mais ocorrentes.

O fato delituoso recentemente ocorrido é aqui lembrado, não para que seja mais um de muitos que ainda ocorrerão, por ausência de vontade quanto à sua persecução penal, fruto de corporativismo condenável, seja ele policial, do Ministério Público ou da Magistratura.

Se se brada contra a impunidade de várias espécies de delitos, principalmente aqueles contra a Administração Pública, que se brade, também, contra a impunidade do crime de violação de sigilo funcional, que, também é crime contra a Administração Pública.

Urge que se encontrem mecanismos procedimentais e processuais eficientes a coibi-lo.

Por outro lado, se é indiscutível a prevalência do interesse público, consistente na obrigatoriedade da persecução penal de condutas criminosas, sobre interesses individuais, não se pode olvidar que as garantias individuais asseguradas pela Constituição da República também hão de ser respeitadas.

Mais uma vez, evoque-se lição do eminente Ministro Celso de Mello, na mesma decisão já aludida - HC 93.767 :

"Nem se diga, por absolutamente inaceitável, considerada a própria declaração constitucional de direitos, que a pessoa sob persecução penal (em juízo ou fora dele) mostrar-se-ia destituída de direitos e garantias. Esta Suprema Corte jamais poderia legitimar tal entendimento, pois a razão de ser do sistema de liberdades públicas vincula-se, em sua vocação protetiva, a amparar o cidadão contra eventuais excessos, abusos ou arbitrariedades emanados do aparelho estatal.

Cabe relembrar, no ponto, por necessário, a jurisprudência firmada pelo Supremo Tribunal Federal em torno da matéria pertinente à posição jurídica que o indiciado – e, com maior razão, o próprio réu- ostenta em nosso sistema normativo, e que lhe reconhece direitos e garantias inteiramente oponíveis ao poder do Estado, por parte daquele que sofre a persecução penal:"

O inciso XII do art. 5º de nossa Lei Maior (clique aqui) fixa, como regra, a inviolabilidade do sigilo da correspondência e das comunicações telegráficas, de dados e das comunicações telefônicas. A exceção admitida restringe-se à hipótese de investigação criminal ou de instrução processual penal, sempre mediante ordem emanada de magistrado, que verificará a necessidade da violação.

Não se pode ter como necessária a violação que visa à descoberta de algum ilícito penal. Ela só tem cabimento, quando, já existentes indícios de ocorrência de delito, seja necessário corroborar tais elementos indiciários.

Essa é a exegese precisa da disposição constitucional, emanada do Supremo Tribunal Federal, há mais de uma década, mas, infelizmente, nem sempre observada pelo juiz responsável pela ordem judicial de violação de sigilo.

Com efeito, já decidiu o Supremo Tribunal Federal, pela pena fulgurante do Ministro Sepúlveda Pertence, no Inquérito nº. 901-6-DF, ao indeferir o pedido de quebra do sigilo bancário formulado pelo Ministério Público:

"Certo, ao decidir a petição 577 (caso Magri), de 25.3.92, Velloso, RTJ 148/366, o Tribunal - embora o filiasse à garantia constitucional da intimidade (CF, art. 5º, XII) - assentou a relatividade do direito ao sigilo bancário, que há de ceder a interesses públicos relevantes, quais os da investigação criminal; por isso, afirmou-se a recepção pela ordem constitucional vigente do art. 38, § 1º, da L. 4.595/64, que autoriza a sua quebra por determinação judicial.

Do mesmo julgado se extrai, contudo, segundo penso, que não cabe autorizar a ruptura do sigilo bancário, senão quando necessária, por sua pertinência, a informação do procedimento investigatório em curso sobre suspeita razoavelmente determinada de infração penal, incumbindo a demonstração de tais pressupostos ao requerente da autorização respectiva.

Ao contrário, entendo, não pode, a disclousure das informações bancárias, servir de instrumento de devassa exploratória, isto é, não destinada à apuração de uma suspeita definida, mas, sim, à busca da descoberta de ilícitos insuspeitados" (DJ de 23 de fevereiro de 1995, Seção I, p. 3505/3506).

Assim, não havendo nenhum indício de autoria de crime, não há como se admitir a violação do sigilo bancário, fiscal, dados etc.

Reiterando o ensinamento do Ministro Sepúlveda Pertence, acima transcrito, não se pode pretender descobrir prática de crime, a partir da quebra de sigilo, sendo necessária a existência prévia de indícios de sua ocorrência e de que aquele, a suportar a quebra do sigilo, participou dolosamente de fato delituoso.

Infelizmente, por ter sido vedado o conhecimento do pedido e da decisão que ordenou a quebra dos sigilos dos investigados, não é possível saber se foi observado o pré-requisito de existência de indício de crime. Por isso, não se pode afastar a presunção de que tenha havido abuso na autorização judicial, cuja pretensão seja, de fato e apenas, espiolhar a existência de algum crime insuspeitado.

Em suma, a notícia jornalística, lembrada no início, está a revelar que ela foi mero fruto de um crime de violação de sigilo funcional, que é crime contra a Administração Pública e de persecução por via de ação penal pública incondicionada, por parte do Ministério Público, para que não se continue a lamentar a certeza da impunidade.

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*Advogado do escritório Aristides Junqueira Advogados Associados S/S.

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